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A Preponderância do Território na Delimitação do Self

2.2 Como Evoluiu a Autodeterminação

2.2.4 A Preponderância do Território na Delimitação do Self

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cadeia de transmissão privilegiada do povo e das suas aspirações.34 (Pointier, 2004: 43)

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remetendo-se este princípio para as delimitações territoriais existentes à data do exercício de autodeterminação. Este último aspeto foi ainda reforçado pela Organização da Unidade Africana (OUA, atual União Africana [UA]) em 1964, para as descolonizações em África. A resolução da OUA foi motivada sobretudo pelo receio de que os processos de descolonização dessem azo à abertura de uma ‘caixa de Pandora étnica’, caso cada grupo de identidade africano decidisse reivindicar autodeterminação, e, portanto, tinha por objetivo a preservação da paz interestatal no continente, o que, não obstante toda a conflitualidade étnica civil, tem sido razoavelmente conseguido (Kacowicz, 1997: 381; Mbembe, 2002: 64 ss).

É preciso ver, contudo, que esta solução é mais antiga, sendo uma reabilitação do princípio romano de uti possidetis ita possidetis, o qual aponta para a preservação do status quo independentemente do modo como a posse foi alcançada (Shaw, 1997;

Castellino, 1999). Mas a recuperação deste princípio no pós-descolonização é mais do que um mero expediente técnico para resolver o complicado problema da determinação da entidade titular do direito de autodeterminação. As suas afinidades com aspetos estruturais da civilização ocidental são flagrantes: Georges Scelle, vê-o como uma “obsessão com o território”, ligado a uma “conceção corporal ou proprietária”36 do território (1958 apud Cassese, 1995: 342). O princípio transporta o pressuposto de que o território é um património exclusivo: primeiro do soberano, transitando depois para o povo (Mayall, 1999: 476). Nesta conceção, a comunidade política define-se a partir de um território – uma área geográfica e os recursos que nela estão contidos – bem delimitado por fronteiras que incluem e excluem. Ao mesmo tempo, há aqui também uma articulação com uma abordagem liberal da terra

36 Tradução livre da autora. No original: “obsession with territory” e “bodily or proprietary conception”, respetivamente (Scelle 1958 apud Cassese, 1995: 342).

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como um bem que se possui, usa, explora, troca, vende37. Significa isto que a rutura com o colonialismo não foi acompanhada por uma rutura com o paradigma liberal, dando isso azo a formas mais camufladas e estruturais de colonialismo (Grovogui, 1996; Pureza, 1998: 30). Como é que esta situação aconteceu?

A Declaração da ONU sobre a Concessão da Independência aos Países e Povos Coloniais (Resolução da AG 1514 [XV] de 1960) reconheceu formalmente que todos os povos tinham um direito de autodeterminação, mas um conflito surgiu quanto à determinação de a quem, exatamente, é que se iria aplicar esse direito. A

‘tese Belga’ defendia que o direito deveria ser aplicado a todos os povos, mesmo àqueles situados no interior de Estados já independentes. Ao invés, a ‘tese da água salgada’, ou ‘tese da água azul’, tentou limitá-la ao conjunto da população habitante de um território colonizado por alguma potência ocidental, desse modo tentando institucionalizar uma conceção de colonialismo em termos de separação geográfica e de diferença étnica face ao país colonizador (Cassese, 1995: ch. 4; Lâm, 2000: 117 ss). Foi esta última tese que vingou, produzindo um efeito de reprodução das fronteiras coloniais e obscurecendo muitas situações de opressão que, de outro modo, poderiam ser institucionalmente consideradas coloniais.

O problema jurídico com o conceito [de autodeterminação] é que a ideia de ‘governo colonial’ tem vindo a ser interpretada restritivamente para referir europeus brancos a exercerem direitos de terra sobre povos não brancos nos seus territórios. […] [O] princípio jurídico internacional de autodeterminação, hoje, não aceita facilmente que um povo possa ser sujeito a colonialismo por pessoas de cor semelhante.38 (Castellino, 1999:

526)

37 Sobre a analogia entre soberania moderna e direitos de propriedade privada, veja-se Ruggie (1986).

38 Tradução livre da autora. No original: “The legal problem with the concept [of self-determination]

is that the idea of ‘colonial rule’ has come to be narrowly interpreted to refer to white Europeans exercising land rights over non-white peoples and their territories. […] [T]he international legal principle of self-determination today does not readily accept that a people could be subjected to colonialism by people of similar color to them.” (Castellino, 1999: 526)

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Estes efeitos foram ainda reforçados pela subordinação do direito de autodeterminação dos povos ao princípio da integridade territorial dos Estados. No parágrafo 6 da Resolução 1514 afirma-se que “[q]ualquer tentativa destinada à rutura total ou parcial da unidade nacional e da integridade territorial de um país é incompatível com os propósitos e os princípios da Carta da ONU”39. Note-se que este parágrafo poderia ser interpretado por referência a uma época pré-colonial – e, nesse caso, dizer respeito à implantação territorial de uma etnia ou comunidade política – ou poderia ser interpretado por referência às delimitações traçadas pelo poder colonial e, portanto, atuais e estritamente territoriais (Lopes, 2003: 63). Foi esta última a interpretação adotada na prática política. A OUA fez dela lei (AHG/Resolução 16[I] de 1964), ao reconhecer a tangibilidade das fronteiras legadas pelo colonialismo e declarar a sua inviolabilidade, tendo tido a objeção apenas da Somália e de Marrocos, países justamente com pretensões de restaurar uma projetada unidade pré-colonial com base em argumentos étnicos e históricos.

Tudo isto significou que o direito foi negado a grupos étnicos ou culturais no interior dos Estados. Um dos problemas que daqui decorre é que, num contexto de fronteiras congeladas – e que, com frequência, foram traçadas de modo ignorante e meramente administrativo – e, ao mesmo tempo, de centralização do poder no Estado, fica obstruída a possibilidade, considerada justa à luz da ideia geral de autodeterminação, de identidades fortes e resilientes às fronteiras impostas fundamentarem uma comunidade política internacionalmente reconhecida como legítima.

39 Tradução livre da autora. Na versão em inglês: “Any attempt aimed at the partial or total disruption of the national unity and the territorial integrity of a country is incompatible with the purposes and principles of the Charter of the United Nations.” (Resolução da AG 1514 [XV] de 1960: parágrafo 6)

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Desenvolvimentos normativos posteriores na ONU e na OUA estenderam o direito de autodeterminação a povos sob dominação estrangeira e racial, mas continuaram a subordinar o direito dos povos à integridade territorial dos Estados e a constituir a autodeterminação como direito a uma estadualidade de estilo ocidental.

A tensão profunda entre estas duas visões – uma visão comunitarista em que o direito de autodeterminação na prática se expande no sentido de privilegiar os direitos dos povos e uma visão que se opõe a tal expansão, justamente reiterando a subordinação da autodeterminação à integridade territorial dos Estados – é recorrente na história do direito de autodeterminação (Cassese, 1995: 1; Falk, 2002: 48-50).

Depois do seu confronto na adoção da Resolução 1514, revelou-se também no longo processo de debate e negociação que decorreu até à adoção da Declaração da ONU sobre os Direitos dos Povos Indígenas (Resolução da AG 61/295 de 2007), processo em que a questão do direito de autodeterminação destas comunidades foi o ponto mais controverso e difícil.

Nesse processo, o movimento indígena desafiou o enquadramento preponderante da autodeterminação dos povos como estadualidade e a sua subordinação à integridade territorial dos Estados. De facto, a independência política não é o objetivo da maioria dos povos indígenas. Não obstante, ainda assim tentaram obter um direito jurídico de autodeterminação externa que melhorasse a sua posição na negociação dos termos das suas relações com os Estados, sobretudo em questões de controlo dos seus territórios ancestrais. De um modo geral, os Estados opuseram-se a tal direito, e o resultado final foi um compromisso entre ambas as posições (Lâm, 2000: 51-76; Knop, 2002: 248-274). Assim, a Declaração combina o já clássico artigo sobre autodeterminação (Artigo 3) com um outro que qualifica as

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formas que a autodeterminação indígena poderá assumir (Artigo 4). O Artigo 3 diz:

“Os povos indígenas têm o direito de autodeterminação. Em virtude desse direito, eles determinam livremente o seu estatuto político e dedicam-se livremente ao seu desenvolvimento económico, social e cultural.”40 Se substituirmos ‘povos indígenas’

por ‘todos os povos’, esta é a formulação que encontramos na Resolução 1514 (XV) (parágrafo 2), nos dois Pactos Internacionais sobre Direitos Humanos de 1966 (Artigo 1, parágrafo 1, em ambos), na Declaração sobre os Princípios do Direito Internacional Referentes às Relações de Amizade e Cooperação entre os Estados de 1970 (Resolução da A.G. 2625 [XXV], parágrafo 1) e na Declaração de Viena sobre Direitos Humanos de 1993 (A/Conf. 157/23, parágrafo 2). Não obstante, o Artigo 4 da Declaração sobre os Direitos dos Povos Indígenas diz:

Os povos indígenas, no exercício do seu direito de autodeterminação, têm o direito a autonomia ou autogoverno em matérias relacionadas com os seus assuntos internos e locais, bem como com os modos e meios para financiar as suas funções autónomas.41

Note-se que um equivalente deste artigo que qualifica o direito de autodeterminação dos povos indígenas não surge nesses outros documentos normativos que se dirigem a ‘todos os povos’. Este artigo reforça o efeito do princípio da integridade territorial (aliás, também ele enunciado na Declaração, no Artigo 46, parágrafo 2), ao mesmo tempo que sinaliza uma viragem mais geral no entendimento institucional da autodeterminação.

40 As traduções oficiais para português desta formulação costumam usar a fórmula “dispor deles mesmos”, em vez do termo “autodeterminação”. Por isso, optei aqui por traduzir eu mesma, a partir da versão em inglês: “Indigenous/All peoples have the right to self-determination; by virtue of that right they freely determine their political status and freely pursue their economic, social and cultural development”.

41 Tradução livre da autora. Na versão em inglês: “Indigenous peoples, in exercising their right to self-determination, have the right to autonomy or self-government in matters relating to their internal and local affairs, as well as ways and means for financing their autonomous functions.”

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2.3 A Autodeterminação no Sistema Internacional