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Um Rio Chamado Tempo, Uma Casa – Mia Couto

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Academic year: 2019

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"Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e não mais lutando por dinheiro e poder, então nossa sociedade poderá enfim evoluir a um novo

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Ao Fernando e à Maria de Jesus, meus pais À Patrícia, minha mulher

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No princípio, a casa foi sagrada isto é, habitada não só por homens e vivos como também por mortos e deuses

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Capítulo um

NA VÉSPERA DO TEMPO

Encheram a terra de fronteiras, carregaram o céu de bandeiras. Mas só há duas nações – a dos vivos e a dos mortos. JUCA SABÃO

A m orte é com o o um bigo: o quanto nela existe é a sua cicatriz, a lem brança de um a anterior existência. A bordo do barco que m e leva à Ilha de Luar-do-Chão não é senão a m orte que m e vai ditando suas ordens. Por m otivo de falecim ento, abandono a cidade e faço a viagem : vou ao enterro de m eu Avô Dito Mariano.

Cruzo o rio, é j á quase noite. Vej o esse poente com o o desbotar do últim o sol. A voz antiga do Avô parece dizer-m e: depois deste poente não haverá m ais dia. E o gesto gasto de Mariano aponta o horizonte: ali onde se afunda o astro é o m pela dj am bo, o um bigo celeste. A cicatriz tão longe de um a ferida tão dentro: a ausente perm anência de quem m orreu. No Avô Mariano confirm o: m orto am ado nunca m ais pára de m orrer.

Meu Tio Abstinência está encostado na am urada, fato com pleto, escuro envergando escuridão. A gravata cinza sem elha um a corda ao despendurão num poço que é o seu peito escavado. Rasando o convés do barco, as andorinhas parecem entregar-lhe secretos recados.

Abstinência é o m ais velho dos tios. Daí a incum bência: ele é que tem que anunciar a m orte de seu pai, Dito Mariano. Foi isso que fez ao invadir o m eu quarto de estudante na residência universitária. Sua aparição m e alertou: há anos que nada fazia Tio Abstinência sair de casa. Que fazia ali, após anos de reclusão? Suas palavras foram m ais m agras que ele, a estrita e não necessária notícia: o Avô estava m orrendo. Eu que viesse, era o pedido exarado pelo velho Mariano. Abstinência m e instruiu: rápido, fizesse a m ala e em barcássem os no próxim o barco para a nossa Ilha. – E m eu pai? – perguntei enquanto escolhia roupas. – Está na Ilha, esperando por nós. Depois, o Tio nada m ais falou, afivelado em si.

Nem se esboçou para m e aj udar a em pacotar os m iúdos haveres. Fom os, pela cidade, ele um pouco à frente, com seu andar em pinado m as tropeçado de salam aleques. Sem pre foi assim : ao m ínim o pretexto, Abstinência se dobrava, fazendo vénia no torto e no direito. Não é respeito, não, explicava ele. É que em todo o lado, m esm o no invisível, há um a porta. Longe ou perto, não som os donos m as sim ples convidados. A vida, por respeito, requer constante licença.

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novo dos três, m uito se dava a exibir, alteado e sonoro, pelas ruas da capital. Não frequentara m ais a sua ilha natal, ocupado entre os poderes e seus corredores. Nenhum dos irm ãos se dava, cada um em individual conform idade.

O Tio Abstinêncio, este que cruza o rio com igo, sem pre assim se apresentou: m agro e engom ado, ocupado a trançar lem branças. Um certo dia, se exilou dentro de casa. Acreditaram ser arrem esso de hum ores, coisa passatem porária. Mas era definitivo. Com o tem po acabaram estranhando a ausência. Visitaram -no. Sacudiram -no, ele nada.

– Não quero sair nunca m ais. – Tem m edo de quê?

– O m undo j á não tem m ais beleza.

Com o aqueles am antes que, depois de zanga, nunca m ais se querem ver. Assim era o am uo do nosso tio. Que ele tinha tido caso com o m undo. E agora doía-Ihe de m ais a decadência desse rosto de quem am ara. Os outros riram . O parente sofria de tardias poesias?

– Você, Abstinêncio, é um a pessoa m uito im pessoal. Tem m edo da vida ou do viver?

– Me deixem , irm ãos: esta é a m inha natureza.

– Ou, se calhar, o Mano Abstinêncio não recebeu foi suficiente natureza. E deixaram -no, só e único. Afinal, era escolha dele. Abstinêncio Mariano despendera a vida inteira na som bra da repartição. A penum bra adentrou-se nele com o um bolor e acabou ficando saudoso de um tem po nunca havido, viúvo m esm o sem ter nunca casado. Houve noiva, dizia-se. Mas ela falecera em véspera. Nessa anteviuvez, Abstinêncio passou a envergar um a tarj eta de pano preto, guarnição de luto sobre a lapela. Todavia, do que se conta, sucedia o seguinte: a pequena tarj a crescia durante as noites. Manhã seguinte, o paninho estava acrescido de tam anho, a pontos de toalha. E, no subsequente, um lençol j á pendia do som brio casaco. Parecia que a tristeza adubava os pesarosos panos. Na fam ília houve quem logo encontrasse a adequada conveniência: que ali estava um a m anufactura têxtil, m otivo não de perda chorosa, m as de ganhos chorudos. Diz-se, sem m ais que o dizer.

Não sou apenas eu e o Tio Abstinêncio que atravessam os o rio para ir a Luar-do-Chão: toda a fam ília se estava dirigindo para os funerais. A Ilha era a nossa origem , o lugar prim eiro do nosso clã, os Malilanes. Ou, no aportuguesam ento: os Marianos.

Nenhum país é tão pequeno com o o nosso. Nele só existem dois lugares: a cidade e a Ilha. A separá-los, apenas um rio. Aquelas águas, porém , afastam m ais que a sua própria distância. Entre um e outro lado reside um infinito. São duas nações, m ais longínquas que planetas. Som os um povo, sim , m as de duas gentes, duas alm as.

– Tio? – Sim ?

– O Avô está m orrendo ou j á m orreu? – É a m esm a coisa.

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rebuliço nem os ruídos coloridos das vendedeiras de peixe. Minha alm a balouça, m ais m urcha que a gravata do Tio. Houvesse agora um a tem pestade e o rio se reviravirasse, em ondas tão altas que o barco não pudesse nunca atracar, e eu seria dispensado das cerim ónias. Nem a m orte de m eu Avô aconteceria tanto. Quem sabe m esm o o Avô não chegasse nunca a ser enterrado? Ficaria sobrado em poeira, nuveado, sem aparência. Sobraria a terra escavada com um vazio sem pre vago, na inútil espera do adiado cadáver. Mas não, a m orte, essa viagem sem viaj ante, ali estava a dar-nos destino. E eu, seguindo o rio, eu m ais m inha intransitiva lágrim a.

O calor m e faz retirar da cabina. Vou para o convé_ onde se m isturam gentes, cores e cheiros. Sento-m e na ré, num a escada j á sem uso. O rio está suj o, peneirado pelos sedim entos. É o tem po das chuvas, das águas verm elhas. Com o um sangue, um ciclo m ênstruo vai m anchando o estuário.

– Está livre, esse chãozito? Um a velha gorda pede licença para se sentar. Leva um tem po a aj eitar-se no chão. Fica em silêncio, alisando as pernas. As roupas são velhas, de antigo e encardido uso. Contrasta nela um lenço novo, com as colorações todas do m undo. Até a idade do rosto lhe parece m inguar, tão de cores é o lenço.

– Está-m e a olhar o lenço? Este lenço fui dada na cidade. Agora é m eu. Aj eita um a vaidade na cabeça, saracoteando os om bros. Depois, fica estudando o Tio Abstinência. – Esse aí é seu parente? – É m eu tio.

A velha m e contem pla, então, com cuidado. Seus olhos se estreitam chinesam ente. Em seguida, volta a olhar Abstinência. Com para-nos, sem dúvida. Depois ela m e estende o braço, abrindo um sorriso.

– Me cham o Miserinha. É nom e que foi dado, m as não da nascença. Com o esse lenço que recebi.

De novo, a sua atenção pousa no Tio. Seu olhar parece m ais um m odo de escutar. Que seria que ela retirava de m eu parente? Talvez sua definhada postura. Sabe-se: a dor pede pudor. Na nossa terra, o sofrim ento é um a nudez – não se m ostra aos públicos. Abstinência se com porta em sua m elancolia. A velha coloca a m ão sobre a testa cortinando os olhos, atenta aos tintins dos gestos de Abstinêncio.

– Esse hom em vai carregado de sofrim ento. – Com o sabe?

– Não vê que só o pé esquerdo é que pisa com vontade? Aquilo é peso do coração.

Explica-m e que sabe ler a vida de um hom em pelo m odo com o ele pisa o chão. Tudo está escrito em seus passos, os cam inhos por onde ele andou.

– A terra tem suas páginas: os cam inhos. Está m e entendendo? – Mais ou m enos.

– Você lê o livro, eu leio o chão. Agora, m ais j unto, m e diga: o fato dele é preto?

– Sim . Não vê?

– Eu não vej o cores. Não vej o nenhum a cor.

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– tudo outonecido, desverdeado. Aos poucos lhe foram escapando as dem ais cores.

– Já não vej o brancos nem pretos, tudo para m im são m ulatos. Se conform ara. Afinal, não é o cego quem m ais espreita à j anela? Lhe fazia falta, sim , o azul. Porque tinha sido a sua prim eira cor. Na aldeiazinha onde crescera, o rio tinha sido o céu da sua infância. No fundo, porém , o azul nunca é um a cor exacta. Apenas um a lem brança, em nós, da água que j á fom os.

– Agora, sabe o que faço? Venho perto do rio e escuto as ondas: e, de novo, nascem os azuis. Com o, agora, estou escutar o azul.

Miserinha se levanta. O balanço do barco lhe faz tontear o corado. E lá se afasta. oasso atordoado.

A gorda m ete os pés pelos vãos. Entre a m ultidão vai perdendo destaque. Já se vislum bra o contorno escuro da Ilha. O barco vai abrandando os m otores. Me deixo, brisa no rosto, a espreguiçar o olhar na ondeação. É quando vej o o lenço flutuar nas ondas. É, sem dúvida, o pano de Miserinha. Um alvoroço no peito: a velha escorregara, se afundara nas águas? Era urgente o alerta, parar o barco, salvar a senhora.

– Tio, a m ulher caiu no rio!

Abstinêncio fica perturbado. Ele que nunca se alterava ergue os braços, alvoroçado. Espreita as ondas, m ãos crispadas na borda da em barcação. Urge que sej a dado o alarm e. Vou em purrando para m e chegar à sala de com ando. Mas, logo, alguém m e sossega: – Não caiu ninguém , foi o vento que levantou um lenço.

Sinto, então, um puxão no om bro. É Miserinha. A própria, cabeça descoberta, cabelo branqueado às m ostras. Se j unta a m im , rosto no rosto, num segredo: – Não se aflij a, o lenço não tom bou. Eu é que lancei nas águas.

– Atirou o lenço fora? E porquê?

– Por sua causa, m eu filho. Para lhe dar sortes.

– Por m inha causa? Mas esse lenço era tão lindo/ E, agora, assim desperdiçado no rio...

– E depois? Há lugar m elhor para deitar belezas? O rio estava tristonho que ela nunca vira. Lhe atirara aquela alegria. Para que as águas recordassem e fluíssem divinas graças.

– E você, m eu filho, vai precisar m uito de boa proteccão.

Um a gaivota se confunde com o pano, as patas roçando o falso peixe. E logo se j untam outras, invej osas, em barulhação. Quando reparo, j á Miserinha se retira, dissolta no m eio das gentes.

A Ilha de Luar-do-Chão deve estar a um toque do olhar, tam anha é a agitação. O Tio Abstinência se aproxim a, endireitando-se solene contra o vento.

– Estava falando com essa velha? – Sim , Tio. Falava.

– Pois não fale. Não deixe que ela chegue perto. – Mas, Tio...

– Não há m as. Essa m ulher que não se chegue.

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Fico com Tio Abstinêncio a ver a gente descer. Ele se guarda sem pre para últim o. Há-de m orrer depois de todos, dizia o Avô.

A noite está m ais espessa, a lancha que nos vem buscar parece flutuar no escuro. Antes de entrarm os na em barcação Abstinêncio m e faz parar, m ão posta sobre o m eu peito: – Agora que estam os a chegar, você prom eta ter cuidado.

– Cuidado? Porquê, Tio?

– Não esqueça: você recebeu o nom e do velho Mariano. Não esqueça. O Tio se m inguou no esclarecim ento. Já não era ele que falava. Um a voz infinita se esfum ava em m eus ouvidos: não apenas eu continuava a vida do falecido. Eu era a vida dele.

Capítulo dois

O DESPERTO NOME DOS VIVOS O mundo já não era um lugar de viver. Agora, já nem de morrer é. AVÔ MARIANO

A lancha que nos vem buscar a bordo é diferente das outras. Nela está m eu pai, Fulano Malta, sentado sobre um a caixa de m adeira. Quando m e vê, deixa-se ficar im ovente, fosse dem asiado o esforço de sim plesm ente estar ali. Inclino-m e para o saudar. – Está triste, pai? – Não. Estou sozinho.

– Estou aqui, pai.

– Faço-m e falta, sem você, m eu filho.

Se ergue, necessitado, quem sabe, de um am paro. Ainda j ulguei que buscasse o conforto de um abraço. Mas não. Finge que atenta num a qualquer gaivota. Tam bém olho o pássaro: suas asas em floração rectificam a nossa frágil condição. Mão no rem o, gesto firm e, m eu velho suspira, em consolo: – Ninguém vive de ida e volta.

A seu lado, reparo então, está um indiano. Reconheço-o, é o m édico da Ilha, o Doutor Am ílcar Mascarenha. O m édico divide-se entre Luar-do-Chão e a cidade. Desta vez, ele viaj ara no m esm o barco e, sem notar, desem barcáram os j untos. Ele m e saúda com um m eneio do chapéu.

– O m édico é porquê? – pergunto a Abstinêncio, que está a m eu lado. – Para confirm ar.

– Confirm ar o quê? – Olha, j á estam os a chegar.

Na praia esperam -nos. É a fam ília, quase com pleta. Os hom ens à frente, pés banhados pelo rio, acenam -nos. As m ulheres atrás, braços de um as cruzando braços de outras com o que segurando um só corpo. Nenhum a delas m e olha no rosto.

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Hom em trança, o rio destrança.

Estava escrito o respeito pelo rio, o grande m andador. Acatara-se o costum e. Só então Abstinência e m eu pai avançam para os abraços. Voltando-se para m im , m eu tio autoriza: – Agora, sim , receba os cum prim entos! Nada dem ora m ais que as cortesias africanas.

Saúdam -se os presentes, os idos, os chegados. Para que nunca haj a ausentes. Palavras que apertam tanto quanto o entrecruzar de braços das m ulheres que nos esperam .

Depois das circunstâncias, atravessam os o m ercado do peixe. As vendedeiras estão j á arrum ando os apetrechos, desm anchando as tendas. Os últim os peixes são vendidos ao desbarato. Daqui a um as horas estarão podres.

– Aj ude-m e, m eu filho.

Ainda pensei ser um a vendedeira, assediando-m e. Mas é Miserinha que m e pede que a conduza, entre a m ultidão.

– Vá olhando os céus, vej a se está passar um pássaro.

Meu tio faz-m e sinal para que m e afaste da gorda. Mas não a posso deixar sem cum prir esse favor de atravessar o m ercado. Olho para o céu. Passa a lenta garça, de regresso às grandes árvores.

– Vej a, Miserinha, um a garça! – Isso garça não é. É um m angondzwane. É um pássaro-m artelo, bicho coberto de lendas e m aldições. Miserinha reconhecia-o sem deixar de olhar para o chão.

– Fique atento a ver se ele canta.

Passa sem cantar. Um frio m e golpeia. Ainda m e lem bro do m au presságio que é o silêncio do m angondzwane. Algo grave estaria para ocorrer na vila.

– Suba no ganda-ganda! Nem tem po tenho de m e despedir. Me em poleiro no atrelado do tractor, vou circulando entre cam inhos estreitos de areia. Até há pouco a vila tinha apenas um a rua. Cham avam -lhe, por ironia, a Rua do Meio. Agora, outros cam inhos de areia solta se abriram , num em aranhado. Mas a vila é ainda dem asiado rural, falta-lhe a geom etria dos espaços arrum ados. Lá estão os coqueiros, os corvos, as lentas fogueiras que com eçam a despontar. As casas de cim ento estão em ruína, exaustas de tanto abandono. Não são apenas casas destroçadas: é o próprio tem po desm oronado. Ainda vej o num a parede o letreiro j á suj o pelo tem po: "A nossa terra será o túm ulo do capitalism o". Na guerra, eu tivera visões que não queria repetir. Com o se essas lem branças viessem de um a parte de m im j á m orta.

Dói-m e a Ilha com o está, a decadência das casas, a m iséria derram ada pelas ruas. Mesm o a natureza parece sofrer de m au-olhado. Os capinzais se estendem secos, parece que em palharam o horizonte. À prim eira vista, tudo definha. No entanto, m ais além , à m ão de um olhar, a vida reverbera, cheirosa com o um fruto em verão: enxam es de crianças atravessam os cam inhos, m ulheres dançam e cantam , hom ens falam alto, donos do tem po.

Cruzam o-nos com um luxuoso autom óvel enterrado no areal. Quem traria viatura da cidade para um a ilha sem estrada? – Olha, é o Tio Ultím io! – e acenam .

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negócios e vai politicando consoante as conveniências. A política é a arte de m entir tão m al que só pode ser desm entida por outros políticos. Ultím io sem pre espalhou enganos e parece ter lucrado, acum ulando alianças e influências. No entanto, ele ali se apresenta frágil, à m ercê de um a pobre m ão. No tractor com entam vastam ente o carro afocinhado, rodas enfronhadas na areia. Mas não param . Ainda há alguns que insistem nos deveres solidários. Mas Fulano Malta é term inante: – Ele que se desenterre – é sua arreganhada sentença.

Por fim , avisto a nossa casa grande, a m aior de toda a Ilha. Cham am os-lhe Ny um ba-Kay a, para satisfazer fam iliares do Norte e do Sul. "Ny um ba" é a palavra para nom ear "casa" nas línguas nortenhas. Nos idiom as do Sul, casa se diz "kay a".

Mesm o ao longe, j á se nota que tinham m andado tirar o telhado da sala. É assim , em caso de m orte. O luto ordena que o céu se adentre nos

com partim entos, para lim peza das cósm icas suj idades. A casa é um corpo – o tecto é o que separa a cabeça dos altaneiros céus. Sobre m im se abate um a visão que m uito se irá repetir: a casa levantando voo, igual ao pássaro que Miserinha apontava na praia. E eu olhando a velha m oradia, a nossa Ny um ba-Kay a, extinguindo-se nas alturas até não ser m ais que nuvem entre nuvens.

Desem barcam os do tractor, aos m olhos. A grande casa está defronte a m im , desafiando-m e com o um a m ulher. Um a vez m ais, m atrona e soberana, a Ny um ba-Kay a se ergue de encontro ao tem po. Seus antigos fantasm as estão, agora, acrescentados pelo espírito do falecido Avô. E se confirm a a verdade das palavras do velho Mariano: eu teria residências, sim , m as casa seria aquela, única, indisputável.

À porta está Tia Adm irança, irm ã de m inha Avó. Era m uito m ais nova que Dulcineusa, filha de um outro casam ento. Dizíam os, brincando, que ela era irm ã afastada. Em Luar-do-Chão não há palavra para dizer m eia-irm ã. Todos são irm ãos em totalidade.

Adm irança é a prim eira pessoa que m e beij a. Seus braços m e apertam , dem orados. Com o corpo, Adm irança fala tristezas que as palavras desconhecem .

– Por que dem oraste tanto? – Não fui eu, Tia. Foi o tem po. No quintal e no interior da casa tudo indicia o enterro. Vive-se, até ao detalhe, a véspera da cerim ónia. Na casa grande se acotovelam os fam iliares, vindos de todo o país. Nos quartos, nos corredores, nas traseiras se aglom eram rostos que, na m aior parte, desconheço. Me olham , em silenciosa curiosidade. Há anos que não visito a Ilha. Vej o que se interrogam : eu, quem sou? Desconhecem -m e. Mais do que isso: irreconhece-m --m e. Pois eu, na circunstância, sou u-m aparente parente. Só o luto nos faz da m esm a fam ília.

Sej a eu quem for, esperam de m im tristeza. Mas não este estado de ausência. Não os tranquiliza ver-m e tão só, tão despedido de m im . Em África, os m ortos não m orrem nunca. Excepto aqueles que m orrem m al. A esses cham am os de "abortos". Sim , o m esm o nom e que se dá aos desnascidos. Afinal, a m orte é um outro nascim ento.

– Venha, m eu filho, que está relam pej ar.

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enchente, esprem idos um contra o outro com o duas paham as, essas árvores que se estrangulam , num abraço de raízes e troncos. De encontro ao peito, sinto os seus seios provocantes. Provoquentes, diria m eu Avô Mariano.

– Cuidado com os relâm pagos – insiste ela.

Olho a noite e não vislum bro faiscação. O céu está lim po de escuro. Adm irança nota a m inha incredulidade. .

– Não sabe? Aqui há desses relâm pagos que não fazem luz. Esses é que m atam m uito.

A Tia cam inha agora à frente. Aprecio o quanto o seu corpo acedeu à redondura, m as se conserva firm e. Acontecendo com o o chão: por baixo, subj az a ardente lava, fogo acendendo fogo.

– Vá, vam os ver a Avó, ela pediu para lhe ver assim que você chegasse... Param os à porta do quarto da Avó Dulcineusa. Antes de entrarm os, m inha tia faz de conta que m e aj eita a cam isa. E m e avisa: a Avó não estava m uito bem , subm ersa ao peso da tristeza. Com eçara a desvairação m esm o antes do falecim ento. Mas, agora, ela se agravara. Se equivocava em nom es, trocava lugares.

Entram os, nos respeitos. A Avó está sentada no cadeirão alto, parece estatuada em deusa. Ninguém é tão vasto, negra em fundo preto. O luto duplica sua escureza e lhe acrescenta volum es. Em redor, com o se fora um presépio, estão os filhos: m eu pai, Abstinêncio e Ultím io, que acaba de entrar. A voz grave de Dulcineusa torna o com partim ento m ais estreito: – Já alguém deitou água à casa? Todos os dias a Avó regava a casa com o se faz a um a planta. Tudo requer ser aguado, dizia ela. A casa, a estrada, a árvore. E até o rio deve ser regado.

– Tenho que ser eu a lem brar-m e de tudo. Estou tão sozinha. Apenas tenho este m iúdo! Aponta para m im . O dedo perm anece estendido, com o que em acusação, enquanto as carnes lhe estrem ecem , pendentes do antebraço. Só então reparo nas m ãos da Avó. Já quase não lem brava seus dedos cancrom idos, queim ados pelo trabalho de descascar fruto de caj u. Dulcineusa m e aponta aquele dedo desunhado e é com o se m e espetasse um a vaga culpa.

– Só este m iúdo – repete com voz sum ida. Tia Adm irança faz m enção de sair. Deixava a Avó na com panhia estreita de seus directos filhos.

– Você fica, Mana Adm irança! – ordena Dulcineusa. E virando-se para m im : – Me diga, m eu neto, você, lá na cidade, foi iniciado? Tio Abstinêncio tosse, em delicada introm issão. – É que eles lá na cidade, m am ã...

– Ninguém lhe pediu falas, Abstinência.

O inquérito tem exacta finalidade. Querem saber se eu j á atingi a idade do luto. De novo, a m atriarca espeta seus inquisitivos olhares em m im : – Me deixe que lhe pergunte, m eu neto Mariano, você foi circuncidado? Abano a cabeça, negando. Meu pai nota o m eu em baraço. Calado, ele m e sugere paciência, com um sim ples revirar de olhos. A Avó prossegue: – Me responda ainda m ais: você j á engravidou algum a m oça? Abstinência interfere, um a outra vez: – Mam ã, o m oço tem m aneiras dele para... – Quais são seus nam oros? – insiste a velha. Um constrangim ento nos encolhe a todos. Meu pai brinca, adiantando: – Ora, m am ã, o m elhor é ele falar de suas doenças.. .

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Não chego a pronunciar palavra. A conversa rodopia no círculo pequeno dos donos da fala, em obediências e respeitos. Tudo lento, para se escutarem os silenciosos presságios. Após longa pausa, a Avó prossegue: – Falo tudo isso, não é por causa de nada. É para saber se você pode ou não ir ao funeral.

– Entendo, Avó.

– Não diga que entende porque você não entende nada. Você ficou m uito tem po fora.

– Está certo, Avó.

– Seu Avô queria que você com andasse as cerim ónias.

Meu pai se levanta, incapaz de se conter. Abstinência o puxa para que se volte a sentar, em calada subm issão. No rosto de m eus tios disputam zanga e incredulidade. O Avô terá m esm o dito que eu iria exercer as prim azias fam iliares? Que eu seria chefe de cerim ónia, sabendo que isso era grave ofensa contra a tradição? Havia os m ais-velhos, com m ais com petência de idade.

– Bom , falta saber se ele está m esm o m orto.

– Está m orto – sentencia Dulcineusa. – Tem que ser você, Marianinho, a m estra r a cerim ónia.

– Qual cerim ónia? – pergunta Abstinência. – Se ele não estiver realm ente m orto, de que cerim ônia estam os a falar? A Avó agita o braço para fechar o assunto. Ordena silêncio, quer que todos se voltem a sentar.

– Eu não confio em m ais nenhum . Só em você, m eu neto, só em você eu deito fianças.

Faz chocalhar um saco que traz preso na cintura. E pergunta: – Sabe o que é este saco? – Não sei, Avó.

– É aqui onde escondo as chaves todas da Ny um ba-Kay a. Você vai guardar estas chaves, Mariano.

Faço m enção de m e desviar do encargo. Com o podia aceitar honras que com petiam a outros? Mas Dulcineusa não cede nem concede.

– Tom e. E guarde bem escondido. Guarde esta casa, m eu neto! . Estendeu-m e o braço para que eu recolhesse o m olho de chaves. E eu, boca fechada, aceitando os com andos de m inha Avó. Estar calado ou estar sem falar é a m esm a coisa? A Avó se acanhava com esse sentim ento fundo e antigo, um m edo fundado no que ela j á vira e agora adivinhava repetir-se. Que outros da nossa fam ília viriam disputar os bens, reclam ar heranças, abutrear riquezas.

– Hão-de vir os outros, os da fam ília de Mariano. Virão buscar as coisas, disputar os dinheiros.

– Havem os de falar com eles, Avó.

– Você não conhece a sua raça, m eu filho. Eles olham para m im e vêem um a m ulher. Sou um a viúva, você não sabe o que é isso, m iúdo.

Ser-se velha e viúva é ser m erecedora de culpas. Suspeitariam , certam ente, que a Avó seria autora de feitiços. O estado m oribundo de Mariano seria obra de Dulcineusa. De repente, a Avó se converteria num a estranha, intrusa e rival.

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entrego a si essas chaves.

O suor escorre no peito da m atriarca, as gotas se apressam no abism o entre os volum osos seios. Abstinêncio com um gesto pede licença. Ele receia que a sua m ãe se estej a desgastando dem asiado, no abafado do quarto.

– A senhora, agora, com o viúva... – Eu sem pre fui viúva. – Mas a m am ã não pode...

– Agora m e deixem , m eus filhos. Me deixem que estou sendo cham ada. A Avó parece vencida por um repentino cansaço. A cabeça se abate sobre o om bro esquerdo e em erge em fundo sono. Todos perm anecem em silêncio, vigiando a velha m ãe. Nem passam uns m inutos, porém , quando Dulcineusa desperta, confusa.

– Quero ir-m e em bora – reclam a. – Para onde, m am ã? – Para casa. – Mas a senhora j á está em sua casa...

Que não, que não estava. Seu olhar revela essa inexplicável estranheza: perdera fam iliaridade com o seu próprio lar.

– Levem -m e, m eus filhos, lhes peço. Levem -m e para m inha casa. Os filhos se entreolham , em baraçados. Para onde? O olhar de Dulcineusa faz m edo, em foco de inavistáveis seres.

– Minha irm ã? Onde está m inha irm ã? Levem -m e para casa de m inha irm ã.

– Mam ã, sua irm ã Adm irança está aqui, a senhora não tem outra irm ã... Adm irança tom a conta de Dulcineusa e m anda que nos retirem os. Ela deitaria a velha m atriarca na devida cam a, quem sabe despertaria m ais tranquila? Que ela m uito teria que ganhar repouso. Pois lhe com petia a ela e só a ela tratar do am ortecido esposo: lavá-lo, barbeá-lo, m udar-lhe as roupas.

Retiram o-nos do quarto. O Tio Abstinência encosta-se na porta, usando o corpo todo para a fechar. É ele quem com enta: – Para m im , estes delírios dela é tudo fingido.

– Fingido com o? – A m am ã tem m edo de ser alcunhada de feiticeira. Na sala onde nos j untam os está sentado o m édico. Todos olham gravem ente Am ílcar Mascarenha. Com o sem pre, o goês usa chinelos, o que faz com que as calças pareçam ainda m ais curtas. A seu lado está um copo com vinho tinto. Sentam o-nos e perm anecem os em silêncio. Até que o m eu pai, esfregando a testa com um lenço, decide falar: – E então, doutor? – Então, o quê? O m édico sacode a cabeça, sem expressão. Vezes sem conta j á se tinha debruçado sobre o Avô, tom ado o pulso, levantado a pálpebra, apalpado o peito. Um a vez m ais se suj eitava ao repetido interrogatório: – Ele está m orto, doutor?

– Clinicam ente m orto.

– Com o clinicam ente? Está m orto ou não está? – Eu j á disse: ele está em estado cataléptico.

(19)

– Respira m as a um nível quase im perceptível. E o pulso está tão fraco que não o sentim os.

Silêncio enchendo um vazio tenso. O m édico sacode a últim a gota do copo a sugerir reabastecim ento. Tio Ultím io agita nervosam ente a cabeça. É visível que não gosta do goês. Meu pai, cam inhando em círculos pela sala, vai passeando a sua im paciência. Abstinência é o único que perm anece im passível.

– Esse tipo não sabe nada – desabafa Ultím io. – Respeite o doutor, m ano – corrige Abstinência.

– Então, ele que m e esclareça um a coisa: eu estou clinicam ente vivo? – Peço um pouco m ais de vinho, m eus senhores.

– Não sirvam nada a esse gaj o. Este tipo nem m erece apelido. Que doutor é você, afinal?

O Tio Ultím io repete, m artelando um desdém : clinicam ente m orto, clinicam ente m orto! Abstinência, olhar distante, ainda sorri: – Só o nosso pai é que nos fazia um a coisa dessas...

– Esse Mariano! – lam entam em coro.

Enquanto vivo se dizia m orto. Agora que falecera ele teim ava em não m orrer com pletam ente. Desta feita, é Fulano Malta que exige esclarecim ento: – O que pode acontecer agora, doutor? Ele reanim a, volta à vida? Ou com eça por aí a apodrecer?

– Não sei, nunca vi um caso destes...

– Não sabe, não sabe – reclam a Ultím io. – Mas eu preciso definir a m inha vida, tenho coisas a fazer lá na capital, os m eus negócios, m inhas obrigações políticas.

– Francam ente, Mano Ultím io, num a altura destas, falar de negócios... – Não podem os ficar aqui um a eternidade à espera que o pai m orra de vez. Olha, para m im ele j á está m orto. Sem pre esteve m orto.

– Se calhar o m elhor é levá-lo para a m orgue. – Qual m orgue? Aqui nem hospital há.

– Mas o pai não pode ficar assim , nem se enterra nem ressuscita. Podíam os, por exem plo, colocá-lo na câm ara frigorífica da Pesca-Mar.

– Desculpa, Ultím io, não estou a ver o pai congelado no m eio de corvinas, garoupas e cam arão. Então é que ele m orria de vez...

O doutor pede calm a e tem po. E m ais um copo, por especial obséquio. Vai definindo com palavras sem pre profissionais o estado do Avô Mariano. Ele era portador assintom ático de vida. E nisso, disse o m édico, o m oribundo não diferia m uito de outros, acreditados com o bem vivos. Com o, por exem plo, o Tio Abstinêncio. E ri-se, de bem consigo m esm o.

– Explique outra coisa, doutor. Ainda hoj e o senhor desatou a cheirar a boca do nosso pai, parecia um cão a farej ar. Era para quê aquele farej o? – São diligências de rotina. Um m édico faz isso com o procedim ento...

– Fala a verdade, doutor...

– Eu acho que senti um cheiro estranho... – Estranho? – Um cheiro de veneno.

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eu m e esgueiro daquele quarto. Na m inha cabeça a decisão aflorava: iria ao encontro do proibido, iria espreitar o m eu Avô Mariano.

Capítulo três

UM LENÇOL DE AMORES

Acordar não é de dentro. Acordar é ter saída. JOÃO CABRAL DE ME!O NETO

Logo na prim eira noite após a sua m orte, depositaram Dito Mariano num caixão. Sobre aquela m esm a m esa o encaixotaram , acreditando ter ele superado a últim a fronteira. A Avó Dulcineusa intentou cham ar o padre. Mas a fam ília, razoável, se opôs. O falecido nunca aceitaria óleos e rezas. Respeitassem esse descrer. Dulcineusa não respeitou. A coberto da noite, ela se infiltrou na casa acom panhada pelo padre. E olearam o defunto, tornando-o escorregadio para as passagens rum o à eternidade.

Na m anhã seguinte, porém , o corpo apareceu fora do caixão, posto sobre o afam ado lençol. Com o tinha saído? A suspeita perpassou para toda a fam ília. Aquela não era um a m orte, o com um fim de viagem . O falecido estava com dificuldade de transitação, encravado na fronteira entre os m undos. A suspeita de feitiço estava instalada na fam ília e contam inava a casa inteira.

Por isso, m e aproxim o com receio do lugar fúnebre. A sala onde depositaram o Avô está toda aberta aos céus. A luz e o escuro aproveitam a ausência de tecto. Aflige-m e aquela desprotecção. E se chover, se a nuvem se despej ar sobre o indefeso corpo de Mariano? Ali se exibe o Avô, todo estrelinhado. Ele que não dorm ira nunca senão no chão está agora escarrapousado num a m esa m ais m agra que ele. Mariano sem pre se defendeu de adorm ecer no leito. Cam a era só para nam orar. Conform e dizia: incorre-se no risco de cair ou, ainda pior, de nunca m ais descer. Preferia ter a terra toda por cam a.

– É com o banheira, ninguém m e viu entrar num a.

Para Dito Mariano, a banheira era um a outra espécie de cam a. Se havia que se lavar, ele queria a água bem viva, a correnteza do rio, o despenho da chuva.

Tudo isso parece agora distante, um cacim bo denso m e separa desse tem po. Visto de m ais perto, o Avô parece apenas descansar. No sono engendra um outro sono, o fatal fingim ento da m orte? Ou tivesse no escuro interior de si um a m orte verdadeira m as insuficiente? Certo, sim , ele dava desacordo de si. E até, salvo sej a, um riso lhe transflora nos lábios. Com o se fosse um a vigília às avessas, com o se ele, divertido, nos presenciasse j á falecidos.

(21)

A conversa era um cantar de sapo. Pois ele, sem pre m ais sedento que sedentário, não tardava:_– Você leve este dinheirito, desloque-se à tenda e m e abasteça de um a derrubadeira.

Estendia-m e a m ão m as era gesto vazio. Nos seus dedos não constava nem m oeda nem nota. O dono do bar, o m ulato Tuzébio, j á sabia da fiança. E tinha a dose preparada. A derrubadeira – a xidiba ndoda – era a m ais viril aguardente. Na garrafa, Tuzébio m etia um as gotas de ácido, desses m ungidos de um a bateria de carro.

– É para activar o m otor de arranque – ria o Avô.

Aquele era um tem po sem guerra, sem m orte. A terra estava aberta a futuros, com o um a folha branca em m ão de criança. Vovô Mariano era apenas isso: o pai de m eu pai. Hom em desam arrado, gostoso de rir, falando e sentindo alto. O preferido de sua conversa: as m ulheres. Me fazia crer que conservava a potência. Se preservava m acho, porque, dizia ele, nunca tinha apanhado inj ecção. E estendia o dedo sábio: – Nunca aceite, filho. Aquela agulha lhe entra no corpo e você am olece m ais que bananeira m orta.

Me segredara prom essa: não m orrer antes de possuir a centésim a m ulher. As am antes todas, sem excepção, ele as desfrutara na m esm a cam a, sobre o m esm o lençol. Um as tantas vezes m e estendeu o infalível pano: – Cheire! Cheira a quê?

– Não sei, Avô.

– Cheira à vida, m oço. Cheira à vida.

Esse m esm o lençol lhe dava agora assento ao corpo, na solidão da sala fúnebre. Custa-m e vê-lo definitivam ente deitado, dói-m e pensar que nunca m ais o escutarei contando histórias. Ter um avô assim era para m im m ais que um parentesco. Era um de orgulho nas raízes m ais antigas. Ainda que fosse um a rom anteação das m inhas origens m as eu, deslocado que estou dos m eus, necessitava dessa ligação com o quem carece de um Deus.

Tanto m e em brenho em m atutação que nem dou conta de um vulto que se aproxim a, a escondido do escuro.

– Quem está aí? A voz inquisitiva de Dulcineusa m e sobressalta. Afinal, a ideia dos fantasm as, esses m al-m orridos, está ainda bem presente em m im , citadino que sou.

– Sou eu, Avó. Sou eu, seu neto Mariano. – Não tenho neto vivo, estão todos m ortos. – Avó, sou eu, Marianinho...

– Não conheço. E não m e cham e de Avó!

– Ainda há pouco estive falando consigo e seus filhos, Fulano, Abstinêncio e Ultím io.

– Meus filhos j á m orreram . Estou sozinha nesse m undo, só eu. – Não está sozinha, Avó, aqui consigo estão tantas pessoas.

– Não há pessoa viva na nossa terra. É tudo um cem itério. Um cem itério é tudo o que há agora.

(22)

– Você é m eu neto Mariano? – Sou sim , Avó. – E está vivo?

– Estou sim , Avó. Isto é, creio que sim . Ou, com o diria o Avô, m ais e m enos, subindo m ais que descendo.

– Os outros não vão gostar de lhe ver aqui. – Vou j á sair, Avó.

– Não vá. Sente-se aqui, m eu filho. Quero falar-lhe um as lem branças. Lem bra-m e quando eu era m ais m iúdo, quando ainda residia na Ilha e m inha m ãe era viva. Desde que eu nascera o Avô Mariano m e havia escolhido para sua preferência. Herdara seu nom e. E ele, vaidoso, até m e trazia às costas, que é coisa interdita para um hom em .

Depois m inha m ãe m orreu, decidiram m andar-m e para a cidade. A Avó lem brava o dia de m inha partida para a cidade. Recordava tudo desse adeus: os ares da tarde, as cores do céu, o precoce despertar da lua. E, sobretudo, o ter surpreendido o velho Mariano a chorar.

– Seu Avô nunca chorara antes.

Ela se aproxim ara, carinhosa, para enxugar as lágrim as ao m arido. E ele, violento, lhe tinha prendido a m ão. Não toque em m im agora, que estas águas devem tom bar no chão, assim ele disse. Vendo a agonia em Dito Mariano, eu ainda tentara um consolo: – Eu volto, Avô. Esta é a nossa casa.

– Quando voltares, a casa j á não te reconhecerá – respondeu o Avô. O velho Mariano sabia: quem parte de um lugar tão pequeno, m esm o que volte, nunca retom a. Aquele não seria o lugar de m inhas cinzas. Assim fora com os outros, assim seria com igo. E o vaticínio dele se foi cum prindo. Na cidade, fiquei um tem po com os Lopes, um casal de portugueses que trabalhara na Ilha. Depois, a fam ília se quotizou para m e pagar um quarto na residência universitária. Enquanto estudante liceal eu visitava a Ilha com frequência. Depois, essas visitas foram escasseando, até que deixei de vir.

A Avó suspende as lem branças e m e afaga o rosto. Mas logo ela se em enda com o se tom asse consciência da repugnância que m e podem causar as suas m ãos lazarentas.

– Desculpe, m eu neto. Isto não são dedos... Já não m e fazem im pressão aqueles dedos gastados, tão terno é o seu gesto. Lhe seguro a m ão e a trago de volta para o m eu rosto. Beij o os seus dedos. Ela sente-se beij ada na alm a.

– Agora, m eu neto, lhe quero perguntar a coisa m ais séria. – Pergunte, Avó.

– Algum a vez Mariano lhe falou no am or que ele tinha por m im ? – Bem , que eu m e lem bre...

– Me fala disso, m eu neto, m e fala disso.

O que sabia eu? Meu Avô falava-m e, sim . Mas sem pre carregado de m entira. De todas as vezes que eu visitara a Ilha, o Avô se gloriava das suas m uitas conquistas. Nada que eu pudesse agora invocar para Dulcineusa. O que ele insistia era o m andam ento: – Fazer am or, sim e sem pre. Dorm ir com m ulher, isso é que nunca.

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Dorm ir, isso é que é íntim o. Um hom em dorm e nos braços de m ulher e a sua alm a se transfere de vez. Nunca m ais ele encontra suas interioridades. Por isso, de noite, puxava a esteira para fora do quarto e se deitava na sala. Lem bro a m ão batendo no peito, enquanto repetia com orgulho: – Nunca dorm i com m ulher, é verdade. Mas dorm i em m ulher. E isso pouco hom em fez.

Dito Mariano am ava Dulcineusa? Essa era a m inha crença, O particípio sem passado. Recordava-m e das conversas entre eles, j á velhos que eram . A Avó Dulcineusa sentada na berm a da cam a: – Você j á não sonha com igo, hom em ? – Sonho, sim .

– Mentira, não sonha.

– E com o sabe, Dulcineusa? – Porque, ultim am ente, não tenho andado bonita.

No seguido, logo ele se levantava e a abraçava com o se a tivesse visto pela prim eira vez. E os dois se m ilagravam . No rosto de Dulcineusa se apagava a ruga. Essa m esm a ruga que sublinha agora a sua ansiedade.

– Me diga, m eu neto: ele dizia que m e am ava? – Quer dizer, falava de m odo indirecto.

– Eu preciso que m e conte isso, m eu neto. Lhe explico: este enviuvar m e parece quase um casam ento.

– Um casam ento?

– É o que eu sinto, sem Mariano. A alegria de só agora casar com ele. – Isso não é pecado, Avó. Até é bonito...

– Me apetece, pela prim eira vez, subir a bainha, baixar o decote, usar pó-de-arroz.

O m odo com o os dois se encontraram era história na fam ília. Mariano repetia vezes sem conta esse episódio. Mas com variações tantas que nunca se podia em penhar crédito. – Fosse eu assim , velho, quando lhe encontrei e eu lhe teria am ado m elhor. Não tanto, m as m elhor, m uito m elhor.

Dulcineusa fingia um desdenho: – Há tanta vizinha e logo você foi notar em m im .

Mariano j á não seria m uito m oço quando a conheceu. A Avó era operária na fábrica de caj u, descascadora dos ácidos frutos. Nessa altura, as m ãos dela ainda não tinham sido com idas pelas corrosivas seivas do caj u. Dito Mariano possuía um gato, treinado para os indevidos fins. O bichano era lançado em plenas vielas nocturnas e se infiltrava pelos quintais até detectar um a m oça solteira, disposta e disponível. Durante consecutivas noites, o gato insistiu em se im iscuir na casa de Dulcineusa. Não havia dúvida: era ela a escolhida. Mariano com eçou a aparecer no pátio de Dulcineusa com desculpa de com prar castanha de caj u. Ela ainda era m agrita, bem cabida nos panos, lenço adornando a cabeça, brinco de m issangas na orelha.

Dulcineusa sorria, m atreiram ente, quando o via surgir. Mas ele não se afigurava em fraqueza. Om bros em pinados, pescoço hasteado. A frase lustrada, tão bem escolhida quanto o sapato. A Avó, m esm o assim , resistia: – Não sou nam orável, Mariano.

– E se eu lhe pedir um beij o?

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– Eu espero, então.

Vantagem de pobre é saber esperar. Esperar sem dor. Porque é espera sem esperança. Mariano sofria sem pressa. Isso, ele m e ensinara: o segredo é dem orar o sofrim ento, cozinhá-lo em lentíssim o fogo, até que ele se espalhe, diluto, no infinito do tem po. Todos confirm avam : Mariano era um hom em garganteador m as generoso e de recto princípio.

– Sou tão bom que até perdi o carácter – adm itia ele. – A bondade m e destem peram entou.

Dulcineusa não se conform ava, porém , com essa generosidade que ele dirigia para todos m enos para ela. Por que m otivo nunca lhe dedicara flores, não lhe trouxera panos, nem lhe dirigira carinhos? – Não se dá nom e às estrelas – ripostava Mariano.

O Avô defendia-se na tradição. Hom em que se queira m acho não pode dar nem receber carinhos em público. Nam oros são assuntos privados. Dulcineusa acabou resignando. Pior para ela era Mariano recusar desfazer-se do tal gato. A m ulher bem queria dar despacho ao m al-afam ado bichano. Por que razão ele m antinha precisão no serviço do detector de m oças, até hoj e a Avó cism ava.

Um suspiro lhe rem ata a angústia. As m em órias lhe fazem bem . A Avó afaga um a m ão com a outra com o se entendesse rectificar o seu destino, desenhado em seus entortados dedos.

– Agora, m eu neto, m e chegue aquele álbum . Aponta um velho álbum de fotografias pousado na poeira do arm ário. Era ali que, às escondidas, ela vinha tirar vingança do tem po. Naquele livro a Avó visitava lem branças, doces revivências.

Mas quando o álbum se abre em seu colo eu reparo, espantado, que não há fotografia nenhum a. As páginas de desbotada cartolina estão vazias. Ainda se notam as m arcas onde, antes, estiveram coladas fotos.

– Vá. Sente aqui que eu lhe m ostro.

Finj o que acom panho, cúm plice da m entira. – Está ver aqui seu pai, tão novo, tão clarinho até parece m ulato? E vai repassando as folhas vazias, com aqueles seus dedos sem aptidão, a voz num fio com o se não quisesse despertar os fotografados.

– Aqui, vej a bem , aqui está sua m ãe. E olhe nesta, você, tão pequeninho! Vê com o está bonita consigo no colo? Me com ovo, tal é a convicção que deitava em suas visões, a ponto de os m eus dedos serem cham ados a tocar o velho álbum . Mas Dulcineusa corrige-m e.

– Não passe a m ão pelas fotos que se estragam . Elas são o contrário de nós: apagam -se quando recebem carícias.

Dulcineusa queixa-se que ela nunca aparece em nenhum a foto. Sem rem orso, em purro m ais longe a ilusão. Afinal, a fotografia é sem pre um a m entira. Tudo na vida está acontecendo por repetida vez.

– Engano seu. Vej a esta foto, aqui está a Avó. – Onde? Aqui no m eio desta gente toda? – Sim , Avó. É a senhora aqui de vestido branco. – Era um a festa? Parece um a festa.

(25)

acreditando na quela falsidade.

– Não m e lem bro que m e tivessem feito um a festa.. . – E aqui, vej a aqui, é o Avô lhe entregando um a prenda.

– Mostre! Que prenda é essa, afinal? – É um anel, Avó. Vej a bem , com o brilha esse anel! Dulcineusa fixa a inexistente foto de ângulos diversos. Depois, contem pla longam ente as m ãos com o se as com parasse com a im agem ou nelas se lem brasse de um outro tem po.

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Capítulo quatro

AS PRIMEIRAS CARTAS

O importante não é a casa onde moramos. Mas onde, em nós, a casa mora. AVÔ MARIANO

Fico aloj ado no m esm o quarto de Abstinência e Adm irança. O Tio Abstinência pretendia regressar naquela m esm a noite para a sua cabana. Há anos que ele não deitava pé fora. Mas convenceram -no a pernoitar por ali. Ficasse apenas por um sono. Instalaram j untos Abstinência e Adm irança, por razão de higiene. Os dois são m uito parentes, podem partilhar lençóis. Além do m ais, eles se conhecem há tanto que se irm andaram , incapazes de tentação. É assim que dizem : o boi sem cauda pode passar pelo capim em cham as. Não há, pois, risco de subirem as horm onas a nenhum dos m eus tios. Seria fatal se, neste tem po de luto, houvesse nam oros na casa. Durante as cerim ónias se requer a total abstinência. Caso contrário, o lugar ficaria para sem pre poluído.

Acordo antes de ser m anhã. Um a poeira – será a luz? – infiltra-se para além dos cortinados. Renasce em m im essa estranha sensação que m e acontece só em Luar-do-Chão: o ar é um a pele, feita de poros por onde escoa a luz, gota por gota, com o um suor solar.

Levanto-m e e dou uns passos à volta, sem direcção. Diz m eu pai que, ao acordar, se deve rodar para desfazer as voltas do sono. Enquanto espalho as roupas que trazia am arfanhadas na m ochila, noto que há um a folha escrita por cim a da secretária. Leio, intrigado:

Ainda bem que chegou, Mariano. Você vai enfrentar desafios maiores que as suas forças. Aprenderá como se diz aqui: cada homem é todos os outros. Esses outros não são apenas os viventes. São também os já transferidos, os nossos mortos. Os vivos são vozes, os outros são ecos. Você está entrando em sua casa, deixe que a casa vá entrando dentro de si.

Sempre que for o caso, escreverei algo para si. Faça de conta são cartas que nunca antes lhe escrevi. Leia mas não mostre nem conte a ninguém.

Quem escrevera aquilo? Quando tento reler um a tontura m e atravessa: aquela é a m inha própria letra com todos os tiques e retiques. Quem fora, então? Alguém com letra igual à m inha. Podia ser um , entre tantos parentes. Caligrafia não é hereditária com o o sangue? Vou pelo corredor, agora vazio. Procuro afastar o sentim ento que a carta revolvera dentro de m im . Olho a fotografia na parede: toda a fam ília cabe em retrato? Não as nossas, fam ílias africanas, que se estendem com o túneis de form igueiro. Na im agem , são m ais os ausentes que os estam pados. Ali figura o Avô Mariano, brioso e rectilongo. Im pressiona são os seus olhos, acesos, fosforeados.

– Essa foto j á está tão velha! É Tia Adm irança que chegou sem que m e apercebesse. Gesto decidido, ela retira a m oldura da parede. E explica: bolor dos retratos não se lim pa com pano. Estende-se no sol, a luz é que lim pa.

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Adm irança suspira: – Tom asse eu banho assim , nua à luz do Sol. Ela derruba as alças do vestido a expor os om bros. Repara que estou fixado nela, debruça-se sobre a velha fotografia.

– Me custa olhar essa im agem . Pois foi assim que seu Avô se apagou. – Foi assim com o? – Quando tirávam os um retrato. Me custa ainda recordar.

Por fim , alguém m e dizia com o falecera o Avô. Acontecera do seguinte m odo: a fam ília se reunira para posar para um a fotografia. Alinharam todos no quintal, o Avô era o único sentado, bem no m eio de todos. O velho Mariano, alegre, ditava ordens, distribuía uns e outros pelos devidos lugares, corrigia sorrisos, arrum ava alturas e idades. Dispararam -se as m áquinas, deflagraram os flashes. Depois, todos risonhos, se recom puseram e se dispersaram . Todos, m enos o velho Mariano. Ele ficara, sentado, sorrindo. Cham aram -no. Nada. Ele perm anecia com o que congelado, o m esm o sorriso no rosto fixo. Quando o foram buscar notaram que não respirava. O seu coração se suspendera em definitivo retrato.

Cham aram , acto descontínuo, o m édico da vila. O goês Am ílcar Mascarenha inclinou-se sobre o Avô e nele recolheu sinais. Voltou a erguer-se, com pausa e circunstância, e sim plesm ente sacudiu a cabeça, em negação da pergunta não feita. Os soluços com eçaram m as ficaram contidos. Não se chora alto, a lágrim a é um a serpente que, desperta, nos engole de cim a e de baixo.

Adm irança relem bra o episódio e se arrepia. Árvore dá som bra, pessoa dá assom bro. Os botões do vestido, em desleixo, deixam vislum brar os seios volum osos. Estrem eço. Me custa confessar m as a Tia Adm irança m e acende de m ais o rastilho. Tantas vezes a recordo, m ulherosa, seu corpo e seu cheiro.

Esta a m em ória que m ais guardo: no quintal da Ny um ba-Kay a ela está de cócoras, a m ão esquerda apertando o pescoço da galinha. A faca rebrilha na m ão direita. As pernas, bem desenhadas, estão a descoberto entre as dobras da capulana. Ela parece saber que espreito. Entreabre as pernas com o se procurasse m elhor conforto. O m esm o gesto que degola a galinha afasta o últim o pano, desocultando m ais o corpo. O seu olhar m e pede cum plicidade: – Não diga nada ao Avô! Não diga que fui eu que m atei a galinha! O Avô era o m unum uzana, o m ais-velho da fam ília. Com petia-lhe por tradição a tarefa de m atar os anim ais. Estam os transgredindo os m andos, eu e m inha preferida tia. E isso traz m ais tem pero ao m om ento.

A galinha atravessa o pátio saltitando sem pescoço, interrom pendo-m e a visão das coxas de Adm irança. O sangue, em esguicho cego, averm elha a lem brança. Até que a ave despescoçada, j á vencida, se aninha a nossos pés. Adm irança toca as m inhas pernas a apanhar apoio para se reerguer. Enquanto se levanta ela roça em m im , toda aproxim ada, ancas e seios. Entre nós, apenas a faca gotej ando verm elho. A voz de Adm irança, afogueada: – Caram ba, Maria no, quase eu lhe espetava essa faca!

Tio Abstinência passa por m im e m e afasta das lem branças. Ele se detém e, com o que procurasse as exactas palavras, balança o corpo antes de inqui rir: – Você foi à sala, ver o corpo do Avô?

(28)

– Já sabe, você m e prom eteu no barco...

– Deixe o m oço, Abstinência – intercede Adm irança, m aternal. Decido sair, voltear-m e pelas cercanias. A m anhã despertara envolta em cacim ba. O ar parecia espesso, quase líquido. Am eaçava chover m as o chuvisco se arrependeu. Abstinência até com entara: – Esta terra j á nem tem clim a.

Agora, o horizonte clareou, está um sol de lim par neblinas. Os convidados não paravam de desem barcar. Num barco especialm ente fretado haviam chegado os m ulatos – é o ram o da fam ília que foi para o Norte. Ainda com entei com a Tia Adm irança: – Não sabia, Tia, que tínham os assim tanto m ulato na fam ília.

– Meu filho, neste m undo, todos som os m ulatos.

A casa grande é pequena para todos. Uns, os m ais im portantes, ficam no edifício da Adm inistração. Entre os irm ãos, tios e prim os há até m em bros do Governo. Estranham ente, m eu pai acom odou-se num a casa fora do m uti fam iliar. Nem casa será: um a m odesta cabana, oculta entre as acácias.

É para lá que m e dirij o, ao encontro de m eu pai, Fulano Malta. Atravesso o átrio e ultrapasso a sebe de espinhosas. Cham o-o de fora, com respeito. Não há resposta. Vou entrando, olhos negociando com a obscuridade. Me apercebo, por cim a da cabeceira, de um revólver. Fulano Malta nunca pecou por desprevenção.

Mas eu j am ais lhe conhecera arm a. Agora o surpreendia, preparado para o que desse e não viesse. E por que m otivo se prevenia, xicuem bo na alm ofada e pistola na cabeceira? Meu pai esperava a em boscada de quem ? Só então dou conta que m eu velho dorm e no chão. Quase tropeço nele. Levanta-se estrem unhado, m ão agitando-se no escuro à procura da pistola. Im plora, braços tapando o rosto: – Não m e m ate, não fui eu! Não sei nada, não disse nada...

Quando se apercebe que sou eu, fica um tem po a ganhar fôlego, sentado com as m ãos sobre os j oelhos, cabeça tom bada entre os om bros.

– Não durm o na Ny um ba-Kay a que é para não atrair. – Atrair quem ? .

Eu sabia que a pergunta era desvalida. Meu pai não queria espalhar poeira em chão nunca pisado. – Eles vão vir aqui, m eu filho. Eles vão vir. – Mas que eles, pai? Quem são? – Você há-de saber. No devido tem po você vai saber.

– Saber o quê? – Não m e com pete dizer. Só sopro em vela que eu m esm o acendi.

Tinha sido sem pre assim . Fulano Malta sem pre se explicara por enigm as. Esperar que m udasse era com o pedir ao caj ueiro que endireitasse os ram os.

– Só vou dizer o seguinte: essa gente m ata. Mataram o velho Sabão. – O velho Sabão foi m orto?

– Sim , m ataram -lhe. Ele que era um hom em a abarrotar de coração. Juca Sabão era para m im um a espécie de prim eiro professor, para além da m inha fam ília. Foi ele que m e levou ao rio, m e ensinou a nadar, a pescar, m e encantou de m il lendas. Com o aquela em que, nas noites escuras, as grandes árvores das m argens se desenraízam e cam inham sobre as águas. Elas se banham com o se fossem bichos de guelra. Regressam de m adrugada e se reinstalam no devido chão. Juca j urava que era verdade.

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que Sabão se encom endou de um a expedição: queria subir o rio até à nascente. Ele desej ava decifrar os prim órdios da água, ali onde a gota engravida e com eça o m issanguear do rio.

Juca Sabão m uniu-se de m antim entos e encheu a canoa com os m ais estranhos e desnecessários acessórios, desde bandeiras a cornetas. Dem orou um as tantas sem anas. Regressou e fui o prim eiro a recebê-lo, nas escadas do cais. Olhou-m e, cansado, e disse: – O rio é com o o tem po! Nunca houve princípio, concluía. O prim eiro dia surgiu quando o tem po j á há m uito se havia estreado. Do m esm o m odo, é m entira haver fonte do rio. A nascente é j á o vigente rio, a água em flagrante exercício.

– O rio é um a cobra que tem a boca na chuva e a cauda no m ar. Assim proferindo, Juca Sabão m e pediu que m e aproxim asse. Seus dedos m e fecharam as pálpebras com o se faz aos falecidos. Certas coisas vem os m elhor é com os olhos fechados. Neste m om ento, é com o se ainda sentisse suas m ãos sobre o m eu rosto.

Meu pai, Fulano Malta, espera um m om ento para que m e recom ponha da notícia. Ele sabe quanto eu ainda estou ligado ao velho Sabão.

– E quem m atou? Quem foi que o m atou, pai? Meu velhote lá tinha suas desconfianças. Não as desam arrou. Junto ao corpo de Sabão tinham encontrado um a pistola. A polícia recolhera a arm a e a guardara na esquadra.

Estranham ente, a pistola desaparecera nessa m esm a noite. Fulano Malta sacode a cabeça, cheio de confiança: – Ocultaram provas, m eu filho! Para proteger gente graúda.

Com um gesto m e convida a sair. Lá fora frescava m ais. Na entrada da casa, sobre um a arm ação suspensa em troncos de cim bire, está pendurada um a gaiola. Aquilo m e dá um aperto no peito.

– Ainda se lem bra?

– Lem bro, pai. Sem pre o pai pendurou gaiola na varanda. Mas sem pre estava vazia.

– Nunca consegui m eter nada lá dentro – riu-se Fulano. Meu pai esperava que, voluntário, um pássaro viesse e se aloj asse na j aula. A m ania, antiga, não passara. A gaiola m etaforizava o seu destino, essa clausura onde ave nenhum a partilhara da sua solidão.

De repente, m eu pai cala-se. Lá longe desponta seu irm ão m ais novo, Ultím io. Apressado, ele ainda m e disse: – Receba você esse seu tio. Eu não estou, não quero ver esse gaj o.

– Mas, pai, ele é seu irm ão.

– Eu lhe pergunto um a coisa, Mariano. Esse Ultím io está aqui, na nossa casa? – Não, ele está a dorm ir na Adm inistração.

– Esses que estão lá com ele – acrescenta Fulano apontando a casa do Governo –, esses são ladrões, os dedos deles estão cheios de pontas.

– Se quer esconder-se, vá lá para dentro, pai. Que ele está m esm o a chegar.

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– Se aprecia bem o chapéu é fora da cabeça. Faço sinal para que se cale, pois Ultím io j á se apresenta, com seus m odos de pertence dor. O Tio m e saúda em cum plicidade.

– Onde está m eu irm ão Fulano? – Saiu. Não sei para onde. – Ainda bem que o encontro, sobrinho. Assim , a sós.

Ultím io logo se espraia no cadeirão da varanda. Fica um tem po a m edir a extensão do m undo.

– É bonito, não é, Tio? – Bonito? Isto tudo tem um valor.

Que eu não sabia, m as havia gente rica, algibeirosa, olhando com cobiça para a nossa Ilha. Pelo seu gabinete passavam gulosos requerim entos. E ele não dorm ia de olho fechado. Já havia dado despacho a investidores interessados em iniciar em Luar-do-Chão um negócio de m inas, pesquisa de areias pesadas. E até j á havia apalavrado a nossa casa, a Ny um ba-Kay a, prom etido as terras fam iliares.

– A nossa casa, Tio? Vender a Ny um ba-Kay a? – Sim , está tudo rodando sobre as esferas. – Mas a casa, lem bra o que dizia o Avô?

– Falo-lhe de tudo isto, porque você, sendo fam ília e um a pessoa estudada, bem que podia fazer parte do em preendim ento.

– Vou pensar, Tio, vou pensar...

Depois, ele m e convida a regressarm os j untos. Acom panho-o, m enos por vontade que por receio que m eu pai dê sinais de si. O Tio Ultím io parece desconfiado. Se ocupa em pisar cauteloso, evita areia, saltita sobre os charcos. De repente, por detrás das dunas, deflagra a gritaria. Vozes e vultos correndo das palhotas.

– É o carro! – gritam .

Aproxim am o-nos, abrim os cam inho num aj untam ento. O Tio Ultím io engole em seco, deglutindo um deserto. Alguém atacou a viatura, partindo os vidros e vazando os pneus.

– Quem fez isto? Filhos da puta, quem fez isto? Ultím io clam a e am eaça. Ergue os braços, prom etendo vinganças, ecoando lam úrias: – Só para m e prej uizar. Maldita invej a, é isso que não nos deixa crescer.

Escapo-m e dali, m e apressando entre os atalhos. Quando reentro em casa não encontro vivalm a. Todos foram para o cam inho de areia assistir à desgraça, consolando Ultím io. De soslaio, parece-m e ouvir um ruído. Entro na sala fúnebre e nada vej o senão o aquietado corpo do velho Mariano. Lá está o desfinado, entre flores e velas. Subo para o quarto. De novo, sobre a cabeceira, um a outra carta. A trem ênda em m inhas m ãos não m e aj uda a ler:

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folha escrita mas um vazio que você mesmo irá preencher, com suas caligrafias. Como se diz aqui: feridas da boca se curam com a própria saliva. Esse é o serviço que vamos cumprir aqui, você e eu, de um e outro lado das palavras. Eu dou as vozes, você dá a escritura. Para salvarmos Luar-do-Chão, o lugar onde ainda vamos nascendo. E salvarmos nossa família, que é o lugar onde somos eternos.

Comece em seu pai, Fulano Malta. Você nunca lhe ensinou modos de ele ser pai. Entre no seu coração, entenda aquela rezinguice dele, amoleça os medos dele. Ponha um novo entendimento em seu velho pai. Às vezes, seu pai lhe tem raiva? Pois lhe digo: aquilo não é raiva, é medo. Lhe explico: você despontou-se, saiu da Ilha, atravessou a fronteira do mundo. Os lugares são bons e ai de quem não tenha o seu, congénito e natural. Mas os lugares nos aprisionam, são raízes que amarram a vontade da asa.

A Ilha de Luar-do-Chão é uma prisão. A pior prisão, sem muros, sem grades. Só o medo do que há lá fora nos prende ao chão. E você saltou essa fronteira. Se afastou não em distância, mas se alonjou da nossa existência.

Antes, seu pai estava bem consigo mesmo, aceitava o tamanho que você lhe dava. Desde a sua partida ele se tornou num estranho, alheio e distante. Seu velhote passou a destratá-lo? Pois ele se defende de si mesmo. Você, Mariano, lhe lembra que ele ficou, deste lado do rio, amansado, sem brilho de viver nem lustro de sonhar.

Sempre foi um revoltado, esse Fulano Malta. No tempo colonial, ele até recusou ser assimilado. Abstinêncio e Ultímio aceitaram logo, se inscreveram, preencheram papeladas. Fulano não. Para seu pai, a outra margem do rio, lá onde iniciava ser cidade, era o chão do inferno. Mas tudo isso que ele dizia era como o chifre do caracol: nascia só da boca. Pois, no escondido da noite, ele sonhava visitar aquelas luzes do lado de lá. Calcava o sonho, matava a viagem ainda no ovo da fantasia.

Agora, em seu próprio filho, Fulano assistia à sua pequenez, pisava a casca desse ovo. Você o convertia em humano. Uma primeira coisa do humano é a inveja. Era o que ele sentia consigo. É isso que ele sente até agora.

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fundezas, as páginas abertas agitando-se como se fossem braços. E seu pai, no desvairo do medo, o que viu foi corpos sem vida náufragos ondeando na respiração do rio. E fugiu, aterrorizado. Até hoje ele acredita que esses maldiçoados livros estão flutuando no rio Madzimi.

Você, agora, deve ensinar o seu pai. Lhe mostre que ainda é filho. Para que ele não tenha medo de ser pai. Para que ele perca um medo ainda maior: o de ter deixado de ser seu pai.

Capítulo cinco

A MORTE ANUNCIADA DO PAI IMORTAL A mãe é eterna, o pai é imortal.

DIZER DE LUAR-DO-CHÃO

A anónim a carta m e atirava para um assunto que, em m im , nunca teve resolução: m eu velhote, Fulano Malta, segundo filho de Dito Mariano. Que sabia eu dele? Era m ais o adivinhado que o confirm ado. Em m iúdo tinha sido sacristão. Padre Nunes, um sacerdote português, dele ganhara am izade.

Contudo, um dia m eu pai bebeu o vinho que se guardava por trás do altar. Quando acendia as velas no altar acabou pegando fogo à igrej a. Aquelas cham as se fixaram na lem brança dele com o se fossem labaredas dos infernos.

Aos poucos se foi afastando das obrigações religiosas. Nunes ainda o tentou dissuadir. E nunca m ais raspou j oelho pelo chão. O padre ainda insistiu: – Qual a valia dessa devoção? Se a pedra é pontuda você j á não aj oelha? Ninguém nunca m e contou com o ele e m inha m ãe se conheceram . Era assunto interdito em nossa casa. Com o tam bém era proibido falar-se no m odo com o a m ãe veio a falecer. Que se tinha afogado, isso sabia-se vagam ente.

A paixão adolescente de Fulano por Mariavilhosa não foi capaz de lhe trazer venturas. Nem o casam ento lhe foi suficiente. Pois seu viver se foi am argando e ele, m al escutou que havia guerrilheiros lutando por acabar com o regim e colonial, se lançou rio afora para se j untar aos independentistas. A fam ília ficou sem saber dele durante anos. Já derrubado o governo colonial, Fulano Malta regressou. Vinha fardado e todos o olhavam com o herói de m uitas glórias. Seguiu-se um ano de transição, um longo exercício na entrega dos poderes da adm inistração portuguesa para a nova governação.

Nesse enquanto, m inha m ãe engravidara. Em seu rosto se anunciavam as gerais felicidades. Até que um dia aconteceram os ensaios para os festej os da independência que seria declarada dali a um m ês. Treinava-se para o verdadeiro desfile a ter lugar na capital, aquando das cerim ónias centrais. Minha m ãe, Dona Mariavilhosa, gabava as belezas de seu m arido enquanto dava brilho aos seus fardam entos. Até peúga nova ela aprontara para o seu hom em . Seu Fulano seria o m ais elegante no ensaio da parada m ilitar, anunciada para essa tarde.

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j untar à m ultidão, nem acreditava que o herói libertador se som breava no resguardo do lar, alheio ao m undo e ao glorioso m om ento.

– Que faz, Fulano? Não vai desfilar? – Porquê?

– Porquê? Você não devia estar no ensaio das com em orações? – Para com em orar o quê?

– A independência! Ou não está feliz com a independência? Meu pai não respondeu. Ele queria dizer que a independência que m ais vale é aquela que está dentro de nós. O que lhe apetecia celebrar era o viverm os por nosso m ando e gosto. Em vez disso, porém , m eu velho apenas encolheu os om bros: – Estou feliz, sim . Muito feliz.

– E então?

– Mas vou ficar aqui, a fazer com panhia a m inha m ulher. Faz anos que não assisto um poente j unto com ela.

A m ão dele pousou sobre a barriga da m ulher. Ela dem orou um instante, em silêncio. Depois, sorriu, orgulhosa pela escolha dele.

Mais noite, porém , m inha m ãe insistiu que ele fosse aos preparativos da festa. Não tardaria que, nos céus da Ilha, se erguesse a bandeira, m astroada, altiprum ada. Mas Fulano escusou-se. A esposa, Mariavilhosa, vincou palavra: com o seria possível ficar indiferente com a subida da bandeira, o pano de toda espera, o desfraldar de toda esperança? Fulano não se esforçou a explicar. Palavras foram estas poucas: – Se é para aclam ar bandeira eu escolho o redondo de sua barriga.

A esposa entendia? Ela sacudiu vagam ente a cabeça. Ainda disse: – Daqui a um m ês a bandeira vai subir. Quem sabe se isso acontece quando eu estiver a dar à luz este nosso filho? Nenhum dos dois, contudo, podia adivinhar o que estava guardado para esse anunciado dia. Naquele m om ento, m eu velho se sentou, grave. E falou. Aqueles que, naquela tarde, desfilavam bem na frente, esses nunca se tinham sacrificado na luta.

E nunca m ais Fulano falou de políticas. O que dele a vida foi fazendo, gato sem sapato? Saí da Ilha, m inha m ãe faleceu. E ele m ais se internou em seu am argor. Eu entendia esse sofrim ento. Fulano Malta passara por m uito. Em m oço se sentira estranho em sua terra. Acreditara que a razão desse sofrim ento era um a única e exclusiva: o colonialism o. Mas depois veio a Independência e m uito da sua despertença se m anteve. E hoj e com provava: não era de um país que ele era excluído. Era estrangeiro não num a nação, m as no m undo.

Poucos foram os m om entos que conversám os. No sem pre, m eu pai foi severa descom panhia: nenhum a ternura, nenhum gesto protector. Quando m e retirei de Luar-do-Chão, ele não se foi despedir. – Despedida é coisa de m ulher – ainda lhe escutei dizer.

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Meu velho vinha à cidade pedir apoio a seu irm ão, o enriquecido Ultím io. Não im agino o que ele acreditava ser seu direito: se um em prego, um negócio, um a facilidade de parente. Sei que, logo na prim eira tarde, visitou o Tio Ultím io. O que os dois falaram nunca se soube. O que se passara, no entanto, rasgara o coração de m eu velho. Um a últim a porta nele se fechara.

Regressado a casa, m eu pai se costurou em silêncio. Dias seguidos ele se conservou fechado no quarto. Im possivelm ente, os dois desconvíviam os. Nos evitávam os, existindo em turnos.

Certa vez, ele anunciou que ia visitar os Lopes, m eus padrinhos portugueses. Tarde de m ais. Meu velho desconhecia que eles j á tinham regressado a Portugal. Razões de discordância com o novo regim e, assim se acreditava. Ninguém sabia de outros, m ais privados, m otivos. Enquanto vivi em casa dos Lopes testem unhei que Dona Conceição sem pre que podia regressava à nossa Ilha. Nem pretexto carecia: volta e não-volta, lá estava ela no ferry -boat cruzando o rio rum o a Luar-do-Chão. O que a fazia regressar? Um roer de saudade? Para Frederico Lopes, o m arido, aquilo era pretexto de zanga e desconfiança. Pairava entre o casal um a tensão de que eu só fugazm ente m e apercebia. Recordo que, certa vez, deparei com um a fotografia de m inha m ãe na m esa-de-cabeceira do casal. Me espantei por ver ali, em oldurado, o rosto de Mariavilhosa. Dona Conceição m e passou o braço enquanto apontava o retrato: – Era linda, não era? O seu m arido Frederico acabara de entrar no aposento e interrom peu a conversa. A voz lhe estrem ecia quando falou: – Era linda m as não é aqui o lugar onde essa foto deve estar...

– Você sabe m uito bem , Frederico, o m otivo desta fotografia estar aqui. Ou não sabe? Um a tensão quase insuportável dom inava o quarto. Esse m al-estar tornou-se num a carga explosiva na im inência de deflagrar. Até que Conceição com pareceu, um a noite, lágrim a escorrendo no rosto escurecido. A m ancha sob o olho não deixava dúvida sobre a causa do escondido soluço dela. Lopes m e deu ordem para que os deixasse a sós e fosse entreter horas no j ardim vizinho.

– E leve essa foto que é a da sua m ãe.

No dia seguinte, j untei à m oldura todos os m eus haveres e saí de casa dos portugueses. Não tardou a que eles se retirassem do país, retom ando a Lisboa para sem pre. Tudo isso m eu pai desconhecia, longe que estava da cidade. Fulano Malta escutou as novidades sobre os Lopes e, desde então, pareceu ficar m ais ausente, m ais enclausurado em seu aposento.

Certa noite, ao chegar a casa deparei com Tio Ultím io. Tinha vindo visitar-nos. Trouxera um a garrafa de uísque e um a lata de castanha de caj u. Saudei-o, com reservado espanto. Nunca ele batera em m inha porta. Anunciou-se: viera encontrar-se com seu irm ão Fulano, entendera acalorar palavra com ele. Meu pai estava afundado no velho sofá, um copo com gelo tilintando na sua m ão. Era óbvio que j á tinham trocado azedum es, havia um a atm osfera que ainda pesava. Um silêncio se dem orou, óleo viscoso fazendo em perrar as falas. Ultím io levantou-se para se servir de castanha. Ficou de pé, m astigando ruidosam ente. Meu pai lhe atirou, então: – Esse caj u não lhe faz lem brar nada? – Nada...

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