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Vista de Do alto das dunas às margens do rio: a paisagem e a literatura na cidade de Natal (1929-1970)

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Academic year: 2023

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REVISTA BIBLIOGRÁFICA DE GEOGRAFÍA Y CIENCIAS SOCIALES

Universidad de Barcelona ISSN: 1138-9796.

Depósito Legal: B. 21.742-98 Vol. XX, núm. 1.122

5 de junio de 2015

Recibido: 19 de septiembre de 2013 Devuelto para revisión: 17 de diciembre de 2014 Aceptado: 10 de abril de 2015

Do alto das dunas às margens do rio: a paisagem e a literatura na cidade de Natal (1929-1970)

Raimundo Pereira Alencar Arrais

Universidade Federal do Rio Grande do Norte (Brasil)

[email protected]

Do alto das dunas às margens do rio: a paisagem e a literatura na cidade de Natal (1929-1970) (Resumo)

Sob o ponto de vista de sua organização espacial e de sua paisagem, a cidade de Natal do século XX pode ser estudada a partir da criação literária que a elegeu como objeto. A obra de dois autores em particular, a poetisa Palmira Wanderley, no final dos anos 1920, e o cronista Newton Navarro, entre as décadas de 1950 e 70, fornecem elementos para a reconstituição das mudanças espaciais, das transformações sociais e da emergência de novos sujeitos sociais na cena urbana. Este trabalho procura, ademais, restabelecer a relação entre os textos de natureza literária e as forças que interferiram na evolução material da cidade num período da história urbana de Natal: da emergência dos ideais de modernidade urbanística, nos anos 1920, ao período pós-Guerra, quando se começa a orientar a organização espacial da cidade visando sua inserção no mercado do turismo.

Palavras chave: cidade, Natal, paisagem, literatura, turismo.

From the top of dunes to the banks of river: landscape and literature of Natal (1929-1970) (Abstract)

From the point of view of his spatial organization and landscape, the Natal city of twentieth century can be studied from the literary creation that elected her as the object.

The work of two authors in particular, the poetess Palmira Wanderley, in late 1920, and the chronicler Newton Navarro, between the 1950s and 70s, provide elements for the reconstruction of spatial changes, social changes and emergence of new socials subjects in urban scene. This paper seeks, moreover, to restore the relationship between the texts of literary nature and the forces that interfere in the material evolution of the city within the Natal’s urban history: the emergence of the ideals of urban modernity, in the 1920s, to the postwar, when begins to direct the spatial organization of the city aimed at inserting the tourism market.

Keywords: city, Natal, landscape, literature, turism.

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Durante muito tempo, a história da cidade de Natal foi concebida como uma história de acúmulos, como marcha contínua na direção do futuro. Fosse o acúmulo de bens e aquisições diversas que se designava como progresso material e espiritual; fosse, pelo contrário, o acúmulo que levava a uma espécie de fadiga e decadência da civilização urbana. Dessas duas tendências, a primeira parece ter tentado mais os observadores da cidade.

Neste artigo vamos adotar um princípio que nos auxilie na prevenção de uma abordagem triunfalista da história das cidades. Tal princípio consiste em considerar que as cidades, em suas manifestações históricas, abrigam dentro delas eventos e fenômenos que destoam da evolução geral ou dominante na sua história – se é que essa evolução existe. Uma expressão disso é que dentro da cidade convivem tempos distintos, perceptíveis, sobretudo, nos seus momentos mais sensíveis de mutação, quando ocorre uma perda da “concordância dos tempos”. Nessa situação,

os processos que concorrem para a formação e renovação dos espaços urbanos, como os elementos que estruturam a dinâmica deles, se situam em registros diversos – econômicos, sociais, políticos, institucionais, espaciais – que não apresentam nem as mesmas durações nem os mesmos ritmos.1

Mesmo em períodos dominados pela rotina, a cidade se movimenta dentro de um tecido de ritmos e memórias distintas, por vezes contrastantes.2 Em cada presente podem tomar forma projetos de retorno ao passado, imagens que se alimentam do futuro, ou o conjunto de desejos sociais que mobilizam legisladores, urbanistas, artistas, como também gente que atua na cidade simplesmente vivendo suas vidas rotineiras.

Mas a paisagem e a personalidade da cidade não são somente o resultado da produção do poder municipal, dos técnicos e planejadores, do capital e da ação cotidiana de seus moradores. Podemos dizer que a cidade é o resultado também das formas de subjetivação que se projetam sobre o seu tecido material, mas que não chegam a se materializar no mapa, não interferem no seu destino, ficam como potencialidades.

Noutras palavras, a cidade do presente é constituída também pelo que ela poderia ter sido.

Adotando neste estudo semelhante ponto de partida estaremos, assim, nos reportando não a uma história dos triunfos, mas a uma história dos desejos que se voltaram para as formas materiais da cidade de Natal e de sua gente, que se volatizaram nas palavras, se desvaneceram sem fecundar projetos de intervenção urbanísticos sobre a cidade. Assim, para tentar mostrar essa história de fracassos que acompanha a história urbana de Natal, como a história urbana de qualquer outra cidade, procuraremos percorrer um intervalo de pouco mais de meio século de sua história, urdindo uma narrativa que, “sem distinguir entre os grandes e os pequenos” acontecimentos, “leva em conta a verdade de que nada do que um dia aconteceu pode ser considerado perdido para a história”.3

1 “Les processus qui concourrent à la formation et au renouvellement des espaces urbains, comme les éléments qui en structurent les dynamiques, se situent dans les registres divers – économiques, sociaux, politiques, institutionnels, spatiaux-qui n´ont ni les mêmes durées ni les mêmes rythmes” (Lepetit;

Pumain, 1999, p. VI-VII, tradução nossa).

2 Sobre o assunto, cf. BOSI, 1994, especialmente o capítulo 4, “A substância social da memória”.

3 Benjamin, 1993, p. 223.

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Aqui será examinada, portanto, a produção simbólica da cidade. Produção que se apresenta sob a forma de registros escritos, deixados por observadores que viveram na cidade de Natal entre as décadas de 1920 e o final do século XX. Estes a observavam e fizeram dela matéria de sua literatura. Nesse empreendimento, será mantida uma aproximação entre os textos literários herdados e outras forças que interferiram na sua evolução espacial.

Os dois autores natalenses que vamos examinar neste trabalho – Palmira Wanderley, no final dos anos 1920, e Newton Navarro, entre os anos 1950 e 70 – se diferenciam um do outro não apenas por suas personalidades, estilos e gêneros literários que praticam, mas também pelo fato de se inscrevem historicamente em momentos distintos da história urbana de Natal, e que suas vozes adquiriram uma natureza e uma tonalidade compreensível dentro de momentos específicos da evolução espacial da cidade. Eles passam a ser representativos no meio em que nasceram e atuaram não apenas porque suas obras ecoam opiniões, ideias e formas de sentir que circulavam na cidade da qual irromperam, mas também porque elas disseminam certas ideias e modos de apreciação do mundo, concorrendo assim para produzir uma sensibilidade que pode generalizar-se, alcançando outras pessoas. É nesse sentido que eles carregam um forte “peso da história”.

Do ponto de vista de sua história literária, a cidade de Natal emerge como uma totalidade espacial em Roseira Brava e outros versos, o segundo livro da poetisa Palmira Wanderley, publicado no Recife, em 1929. Na primeira parte do seu livro mais festejado (mereceu menção honrosa da Academia Brasileira de Letras) e mais expressivo, intitulada “Rosas de sol e de espuma”, a poeta imprime pinceladas rápidas, sob a forma de versos soltos, para descrever a cidade a partir de certas áreas que correspondem às unidades administrativas da cidade: os bairros. Nessa primeira parte, pode-se dizer que “a poetisa desenha um mapa lírico de Natal, poetizando os bairros, as praias, o rio, a lagoa e logradouros históricos, registrando com lirismo e imagens plásticas a beleza natural, ainda preservada, de seu tempo”.4

Depois de um poema genérico sobre Natal, sucedem os poemas dedicados, na sequência, a Petrópolis, Areia Preta, Rocas, Tirol, Refoles, Alecrim, Barro Vermelho, Passo da Pátria, lagoa Manoel Felipe e Praia do Meio. Na época da publicação do livro, apenas Petrópolis, Tirol e Alecrim gozavam da condição de bairros, os dois primeiros ainda frequentemente designados como Cidade Nova.5 Cada um desses bairros ou lugares mereceu um poema, recebendo uma descrição filtrada na perspectiva lírica da autora. Alguns desses lugares, que iremos destacar aqui, aparecem envolvidos nos eflúvios de uma memória dos tempos felizes.

Em “Petrópolis é a colina do sonho”, esse bairro é descrito como o “mais belo de Natal”. Adotando a perspectiva topográfica do alto do monte Petrópolis, de onde a cidade é apreendida, observa-se a ponta extrema da cadeia de dunas que corre de norte a sul, separando a praia e a cidade, seus olhos alcançam um panorama de Natal. Olhando

4 Duarte; Macedo, 2001, p. 208.

5 Pela indicação desses dados e de várias notas de jornal usados neste artigo, agradeço a Gabriela Fernandes de Siqueira, que desenvolve uma Dissertação no PPGH-UFRN sob o título “Por uma Cidade Nova: construção e ocupação do bairro Cidade Nova (1901-1929)”.

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a leste, a poeta contempla o mar; olhando na direção oposta, ela acompanha a bacia dos rios Jundiaí-Potengi desaguando nos pés da Fortaleza dos Reis Magos. Daquele ponto, o eu lírico “olha a vida do alto, olha a cidade”. E, quando o eu lírico contempla o rio, é como se desprendessem do interior dessa passagem certas lembranças infantis que se combinam com a saudade e com o canto abundante dos pássaros, produzindo a sensação da passagem irremediável do tempo, a sensação de que “o tempo que se foi não volta mais!”.6

O Barro Vermelho, “Barro vermelho ninho de poesia”. Se lhe aparece como um bairro

“triste e desolado”, é em boa parte porque se impregnou da memória literária de Auta de Souza, poetisa de vida breve7, que alcançou o ponto mais sublime da lírica local com um volume, Horto, publicado em 1900, um ano antes de morrer: “houve um tempo em que foi o Hôrto preferido/ Da grande poetisa Auta de Souza”).8 Nesse ambiente poético, impregnando-se de uns tons fantásticos, o imaginário dos moradores conservava a antiga lenda dos “veados de Santo Humberto”, que as imaginações locais acreditavam enxergar sobre as dunas: “e ainda hoje quem passar no Morro Branco, pelo lado de oeste, sendo mau homem e mau christão, à meia noite, em tempo de lua, verá, entre árvores escuras, ou no meio d´uma clareira illuminada, silenciosos e sinistros, os três veados fantásticos...”, escrevia Câmara Cascudo.9

O Tirol desperta evocações de leituras depositadas no fundo da memória da poetisa. O fato está enunciado no título do poema consagrado ao lugar: “Tirol é direitinho uma paisagem bíblica”. Chega aos ouvidos da poetisa o aboio de vaqueiro e o mugido dos bois. Os sabiás da mata dão ao lugar o aspecto de paisagem campestre, sem faltar o elemento pitoresco das lavadeiras caminhando na direção da lagoa Manoel Felipe. Os bangalôs, os morros e as lendas se associam, na mente da poetisa, à Palestina. O Tirol

“é cisma, é prece, é solidão, desmaio...”. Contemplando a paisagem de Areia Preta, o eu lírico é transportado para regiões remotas no tempo e espaço. Assim, no poema “Areia Preta, flor de verão”, a imaginação cosmopolita se projeta para as “areias de fogo de deserto dos morros, beduínos no sol e no calor, nas caravanas de sonho”.10

Em Roseira brava, os bairros de Petrópolis e Tirol estão entrelaçados na tessitura das memórias pessoais. Esse território das impressões de infância se situa no interior de um espaço comum aos dois bairros, pois Petrópolis e Tirol eram os nomes que circulavam entre os primeiros moradores para designar trechos dentro da área de Cidade Nova. Para a poetisa de Roseira brava, esses dois bairros eram os recantos de uma infância feliz.

Todavia, nas bordas desse quadro de felicidade idílica vibra uma perturbação. Basta que o olhar da poetisa se desloque ligeiramente e se deixe atrair pelas casas coloridas que se

6 Wanderley, 1965, p. 16-18.

7 A expressão “vida breve”, aplicada a Auta de Souza, vem da biografia que lhe dedicou Cascudo, 2008.

8 Wanderley, 1965, p. 39-40.

9 Cascudo, 1924, p. 42. Luís da Câmara Cascudo (1898-1986) nasceu e faleceu na cidade de Natal.

Dedicou-se ao jornalismo, etnografia, história e ao memorialismo, entre outras atividades intelectuais.

Desde a juventude dedicou-se às atividades literárias e aos estudos da cultura popular do Rio Grande do Norte, do Nordeste e do Brasil, deixando obras como Civilização e cultura (1973), Dicionário do folclore brasileiro (1956), Tradição, ciência do povo (1971) e História da cidade do Natal (1947). Sua produção é rica, multifacetada e indispensável para os estudos da cultura brasileira. Cf. Dicionário crítico Câmara Cascudo, 2003.

10 Wanderley, 1965, p. 23.

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inclinam na descida de Petrópolis, em direção ao mar, e então o leitor vê cair uma gota amarga sobre o estado de alma bonançoso que embalava Palmira: “e ninguém sabe onde as casas começaram/ Bem como os dissabores”.11

Assim, diante desse quadro, o eu lírico toma consciência da ferida inexplicável que se abre na paisagem, da infelicidade que conspurca a vida coletiva. E, se a infelicidade existe, ela não pertence ao domínio da natureza intocada. Diferentemente, ela penetra na convivência humana, instala-se dentro da paisagem edificada.12 A vida pacífica abrigava-se numa paisagem da qual haviam sido removidas as misérias que marcavam as relações sociais, e tudo indica que esse sentimento era compartilhado por muitos intelectuais da época. Cerca de uma década e meia antes, em 1913, alguém que se identificou como “Roberto, o esperto” lançou sobre a folha impressa a confissão dos efeitos que a natureza da Cidade Nova produzia sobre o seu estado de alma:

Ás vezes, monto a cavallo e, depois de pequeno passeio pela cidade, enfastiado de casas feias e de caras feias, tomo decididamente a resolução de abandonal-a. Abandono-a mesmo... e descortino o Tyrol.

Ah! O Tyrol! Quem não o conhece, fallado como é, com promessas animadoras de bonde electrico e de restaurante Art Nouveau!Resolvido, fustigo impaciente o animal que me leva, a florear na estrada, rasgando agil e garboso o espaço que se lhe apresenta empardecido pelo crepusculo.

Como sinto-me bem, à tarde, na monotonia d'aquelles campos verdejantes e uberrimos, haurindo sequioso a atmosphera sadia e forte, a caminho do Tyrol!

No "Senegal" onde reside alegre e prasenteiro o Presidente da Intendencia, pára o cavallinho, a dar-lhe folego.

D'alli destaca-se, visivelmente, no seu louco gyrar, apasiguador e franco, o moinho de vento [...].13

No ano da publicação de Roseira Brava, o jornal A Republica trouxe uma descrição do ambiente do Tirol, revelando a elevação espiritual que o indivíduo experimentava nesse contato com uma vegetação, que

envolve quem o observa nessa sensação de mato virgem. Os morros adiante parecem montanhas que o horizonte pinta de azul e de cinzento. A sua simplicidade cheia de poesia tem a graça dos recantos aonde a civilização ainda não chegou com o seu barulho estonteante. Sem alegria, a sua tristeza infinita é uma felicidade [...]. Somente olhando o Tyrol é que se compreende que a natureza pode ser uma religião magnífica.14

E, ainda: “vivê-lo é recordar tudo o que sorriu nesse mundo. É esquecer a lágrima e o tédio. Admirá-lo é sentir no coração uma alegria sempre nova, porque Tyrol rejuvenesce o espírito, tonifica o cérebro e ilumina alma”.15 O que conferia à Cidade Nova essas propriedades restauradoras? Em parte, a explicação estava numa combinação: por um lado, os eflúvios que irradiavam da carga semântica do vocábulo “novo”, agregado ao nome do lugar (Cidade Nova), consistindo num ambiente cercado e atravessado por uma natureza virginal – pelo menos na aparência – que satisfazia às aspirações daquilo

11 Wanderley, 1965, p. 20.

12 A tendência de se olhar para o passado projetando nele um tempo idílico, em que reinava a harmonia e a felicidade, tem um rastro muito antigo na cultura ocidental. O trabalho mais sintético sobre o assunto é o panorama de Schorske, 2000, especialmente o capítulo 3: “A ideia de cidade no pensamento europeu:

de Voltaire a Spengler”.

13 Cavaqueando. A Republica, Natal, 19 jun. 1913.

14 A Republica, Natal, 27 jan. 1929.

15 Idem.

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que designaremos de “romantismo tardio”; por outro, a manifestação, embora modesta, nessa Cidade Nova do espírito moderno presente nas manifestações urbanísticas.

“Modesto exemplo” porque a Cidade Nova não foi mais do que um plano de expansão aplicado a uma área de pouco mais de cento e sessenta hectares, subdividida em quarenta e oito quarteirões16, situado ao sul da Cidade Alta, desenhado sobre uma área onde antes reinava o matagal que descia da cadeia de dunas em cujos pés arenosos, do lado leste, o mar vinha bater.

Implantada numa primeira fase entre 1901 e 1904, a Cidade Nova exibia espaços largos, avenidas e ruas por onde corriam abundantes os ventos, segundo os princípios do racionalismo urbanístico e higienismo, harmonizando a amenidade do ambiente natural com a regularidade dos traçados. Era isso que a Intendência Municipal afirmava no preâmbulo de uma resolução referente à ocupação do bairro, publicada em 1909:

“considerando que o bairro denominado Cidade Nova tende a constituir-se em futuro não remoto, em um dos mais pittorescos e aprasíveis da capital, quer pela sua situação geographica, quer pela largura e alinhamento das ruas, avenidas e praças [...]”.17 Na figura 1, o plano de sistematização da cidade de Natal (elaborado em 1929 por Giacomo Palumbo, contratado pelo prefeito Omar O’Grady) podemos identificar, na parte superior à direita, o plano em xadrez da Cidade Nova, e embaixo, o traçado irregular da Cidade Alta e da Ribeira. No centro e à esquerda, a projeção do “bairro jardim” que não chegou a ser executado:

Figura 1. Plano geral de sistematização da cidade de Natal, de Giacomo Palumbo

Fonte: Ferreira, Dantas. Barracho, Días, 2008, p. 110.

16 As medidas foram retiradas de Miranda, 1999, p. 63.

17 Arrais et al., 2012, p. 231.

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A geografia poética de Roseira Brava desenhou um território, um recorte específico, sobre o espaço. Podemos imaginar esse território como as partes da cidade banhadas pela luz do sol e perfumada pelos bons odores que se desprendem da paisagem verde.

Mas devemos assinalar que ele também marca um contraste com outras zonas situadas dentro do mesmo espaço. O livro de Palmira Wanderley não menciona que naqueles dias de 1920 a área da Cidade Nova, designada como uma área urbanizada, que exala ares de nobreza, tinha se constituído sobre os espólios de uma população aparentemente silenciosa, formada por antigos posseiros, aos quais se uniram a presença de um grande número de famílias de migrantes que alcançaram Natal durante a grande estiagem de 1903-1904.18

Tampouco Palmira Wanderley, como em geral fizeram os cronistas do lugar, deixou ecoar em seus textos a violência que havia sido praticada sobre os pequenos sitiantes.

Estes foram removidos daqueles lugares numa escala suficientemente eloquente para que a oposição ao regime de Pedro Velho, a partir do Diário de Natal, nos anos iniciais da formação da Cidade Nova, aplicasse à área sistematicamente o nome de “cidade das lágrimas”, em notas críticas como “Dia a dia. Cidade das lágrimas”, de outubro de 1902.

Segundo os redatores do jornal de oposição, “quem por ali passa observa sempre infelizes mulheres, pobres casais, mocinhas – todos lastimando sua sorte, debulhando em grossas lágrimas, vendo-se desalojados de suas habitações”.19 Um ano depois, outra denúncia, entre tantas, trazia à memória a violência das reformas urbanas promovidas na Capital Federal e acaba por associar a ânsia de modernização das cidades com a violência do Estado republicano:

O governador Alberto Maranhão parece que está sendo victima de uma especie de monomania de demolição de casas, ruas e sítios, para construir cidades novas e avenidas. [...]

Dizem uns que o governador quer imitar o que se está fazendo na Capital Federal, na transformação de ruas inteiras, para fazer avenidas, de accordo com o grande serviço do melhoramento do porto do Rio de Janeiro, para o que o governo e a municipalidade dalli tratam de imprestimos de milhares de contos no estrangeiro.

Outros affirmam que a derribada das ruas no centro da cidade é para desoccupar o terreno nas immediações de palacio do governador edificarem bonitas casas e sobrados.20

De fato, as misérias e discórdias existiam e se espalhavam dentro da Cidade Nova desde suas origens, tomando a forma de desobediência às posturas, sob a forma de animais soltos, brigas violentas, cadáveres largados sobre o areal, entre outras, sem contar a excitação que se espalhou nos primeiros anos entre os grupos dominantes, levando-os a desenfreada especulação de terras e burlas à Intendência Municipal relacionadas ao pagamento de foros dos terrenos, o que não deixa de constituir-se numa aberta violência contra o patrimônio público.21 A Cidade Nova, se era um paraíso, ao contempla-lo mais

18 Cf. Arrais et al., 2008.

19 Dia a Dia – Cidade das lágrimas. Diário do Natal, Natal, 12 out. 1902.

20 Derribada da cidade. Diário do Natal, Natal, 26 set. 1903.

21 Cf. reportagens do jornal A Republica: 30 set. 1908, 02 jan. 1917, 07 mar. 1922, 22 mar. 1922, 17 abril 1923 e 22 março 1925. A questão dos foros está sendo estudada de modo sistemático por Gabriela Fernandes de Siqueira, num dos capítulos da sua já citada Dissertação de Mestrado, que está em andamento.

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de perto, sob o manto da paisagem pitoresca, era um paraíso atravessado pelo pecado original da cobiça dos grupos dominantes locais.

A primeira parte de Roseira brava, “Rosas de sol e espuma”, abre com dois sonetos,

“Palmeira” e “Bem-te-vi”. Essas duas peças, para empregarmos a linguagem das artes cênicas, parecem servir como cortinas vegetais à abertura do tema da cidade. Elas servem como pórtico que anuncia a entrada bucólica da poetisa (e do leitor que a acompanha) no cenário da cidade, seguindo por uma das duas autoestradas que partiam dela e se embrenhavam no sertão. Mas o que confere coerência a esse livro é a descrição das unidades que compõem a cidade de Natal, cada unidade correspondendo a um bairro.22 A efetiva abertura da parte do livro dedicado a Natal está no terceiro poema, intitulado “Salve Rainha do Potengi”. Aí os bairros estão identificados em pinceladas gerais e estão situados dentro da unidade de uma configuração espacial. O terceiro poema abre efetivamente a geografia da cidade.

Nesse ponto, faremos um registro que retomaremos mais adiante, quando estivermos tratando de um momento posterior da história da cidade e de sua literatura: nesse pórtico da entrada da cidade poética de Palmira Wanderley, a identidade da cidade de Natal está impregnada da imagem do rio Potengi. O rio atravessa essa paisagem e, no conjunto, cidade e rio se revestem da forma de um reino particular, uma identidade de Natal reconhecida pelo olhar.

O rio, no seu trecho urbano, aparece em Roseira brava nessa imagem trespassada de romantismo. Trata-se, entretanto, de uma imagem desprovida de qualquer sensualidade.

Ela não exprime o contato do indivíduo com a água, as sensações corporais provenientes do banho de rio, o frescor repousante da correnteza na sua jornada rotineira entre o mar e o interior das terras. O rio representado não é mais do que um traço brilhoso percorrendo o mapa da cidade, uma evocação puramente visual, captada de longe. Porém, a visão panorâmica não logra abarcar toda a paisagem da cidade sob seu enquadramento, deixando na obscuridade grandes extensões por onde passava o rio.

Assim, a enunciação do rio apresenta uma dupla esquiva: sob o ponto de vista da experiência corporal e sob o ponto de vista da totalidade descrita.

Mesmo circunscrevendo essas considerações ao panorama delineado nos poemas consagrados aos bairros da cidade, é evidente que esse quadro deixa de fora muitos elementos que impregnavam a vida do rio naquele tempo. Por exemplo, a onda esportiva que enchia a margem esquerda do rio, na proximidade do cais Tavares de Lyra, com os torcedores vivando os campeões de remo que se aproximavam do ponto de chegada23. Igualmente, a poetisa deixa de incorporar a esse “reinado da cidade de Natal” a pobreza social que ia se agregando às margens da cidade e do rio, incrustando- se ao longo de uma linha irregular que vem do Alecrim (bairro desde o ano de 1911), até o Passo da Pátria, no sopé da Cidade Alta, estendendo-se até as proximidades da área portuária. O Alecrim, o “bairro operário”, que, em alguns momentos aparece como

22 A única edição que se seguiu à edição de 1929, a edição saída em 1965, deixa de trazer o título da primeira parte do livro. Do mesmo modo, na segunda edição, o poema que se intitulava “Bôda Selvagem – ante a lagoa Manoel Felipe” foi mudado para “Lagoa Manoel Felipe”, simplesmente.

23 Sobre a prática do remo em Natal no período, cf. MARINHO, 2011, p. 139-151.

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a transfiguração de danças e festas da população, é capturado nessa passagem por um olhar apiedado diante da infelicidade do destino dos pobres:

Figura 2. O rio passando por trás e ao pé da Cidade Alta, primeira década do século XX

O Passo da Pátria está oculto na paisagem, entre a Cidade Alta e o rio.

Fonte: Acervo do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte. Fotografia de Bruno Bougard.

Alecrim é o bairro operário, A tecer noite e dia.

É a aranha operosa Que faz a teia e fia. Tecelã, tecelã, pára um momento.

Tu não te cansas de fiar, Maria?...

Assim é a dor trabalha sempre sem descansar E não se cansa de trabalhar, A fiandeira do sofrimento”.24

Por sua vez, as Rocas, uma incrustação de moradias de pescadores na área da Ribeira, é personalizada na imagem de “Sinhá Rocas”, e ali a poetisa vê a associação entre o trabalho, a pobreza e a orfandade. A autora idealiza a vida simples, manifesta o desejo de fundir-se à vida local, casar-se com simples pescador, ser uma praieira também. O Refoles aparece como a área onde foram fixados os equipamentos do progresso da cidade, onde se gerava a energia, com a usina do Oitizeiro, a linha do trem, a chaminé da fábrica de óleo. Já o Passo da Pátria é descrito como um antro de vício e de miséria:

“não é bairro, não é nada, é um refugo.” O lugar tem sua importância na economia da cidade, recebendo, nas barcaças que vinham de Macaíba, mercadorias diversas para abastecer a população. O segredo para encontrar a beleza do lugar é atravessar essa

24 Wanderley, 1965, p. 37.

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imagem desagradável do presente, colocar em ação a imaginação e mergulhar no passado até onde se oculta a beleza, essa “beleza abandonada”, encravada dentro de um tempo quase mítico:

A gente se embevece na contemplação. Da paisagem bonita.

Parece que ela faz uma oração, contrita, Pelos índios, talvez, que se abrigaram ali.

E o olhar mergulhando dentro dela, Vê tanta coisa bela, Que não se pode imaginar...

Um quadro natural, feito de propósito, Para se querer bem, para se amar.

E eu penso, com sentimento tão profundo,

Que Natal, a cidade panorama,É a mais bela cidade deste mundo!25

A visão francamente negativa do Passo da Pátria e das áreas adjacentes generaliza-se entre os intelectuais da cidade. Ele está situado depois da Cidade Alta, depois da linha do trem. O trem passa sacolejando os vagões e apitando diante de seus casebres, os trilhos demarcando um dos limites para além do qual vive uma parte dos operários e dos sem-trabalho. Nessa fímbria, à margem direita do rio, estava não o progresso que os governantes desejam avidamente instalar na cidade de Natal, com suas máquinas e benfeitorias, mas os resíduos desse progresso (o Lazareto da Piedade, o Forno de Incineração, o Matadouro Público), no prolongamento de uma área onde, em meados do século XIX, já havia sido instalado o cemitério da cidade.26 Um memorialista que viveu os anos 1920 lembra que a Cidade Alta terminava no Baldo, o riacho que desaguava no rio e que, além desse limite, “havia o Cemitério e o Lazareto – Hospital do isolamento – cujo acesso era feito por uma ladeira arenosa, esburacada pelas constantes enxurradas”.27 Um solo de lama, monturo, cinza, sangue e restos mortais – esse é o solo da zona insalubre e amedrontadora, onde brotavam os ares malsãos que os ventos procedentes do mar se encarregavam de soprar na direção contrária dos bairros de Petrópolis e Tirol.

Mas, na geografia de Palmira Wanderley, tingida de romantismo cristão, o que surpreende não é a imagem dos lugares pobres transmitida pela poetisa – esta é perfeitamente compreensível se levarmos em conta a sensibilidade do grupo social a que ela pertencia e o fato de que as hierarquias sociais se exprimem sobre o espaço urbano.

O curioso é observar que nesse ser coletivo que no livro ostenta o nome totalizante de Natal, permaneceram de fora justamente os dois bairros que, no começo do século XVII, formavam o seu núcleo original: a Cidade Alta e a Ribeira. Eles não são descritos, nem sequer mencionados em Roseira brava.28 Como interpretar essa ausência?

É fato reconhecível que a representação literária, como qualquer outra, não pode dar conta de toda a realidade que ela focaliza. Os poemas desse livro emergiram de um trabalho que a autora realizou sobre sua memória feliz, e é nessa condição que figuram no retrato da cidade de Natal. Dito assim, se poderia pensar que entraram no livro

25 Wanderley, 1965, p. 44.

26 Cf. Cicco, 1920.

27 Pessoa de Mello, 1970, p. 89-90.

28 Não se está afirmando que Palmira Wanderley não tomou esses lugares e tantos outros, pobres e modestos, como objeto de sua poesia. O que se quer chamar a atenção é para a ausência desses entre os lugares invocados quando a poetisa trata de um conjunto delimitado e nomeado como Natal.

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apenas os lugares ligados à esfera da sua experiência pessoal, então os dois primeiros bairros da cidade estariam fora do campo dessa experiência. Todavia, essa explicação não se aplica ao caso em exame. A vida na cidade de Natal estava concentrada (pelo menos até os anos 1920) nos seus dois primeiros bairros, que abrigavam o comércio, as atividades administrativas e a atividade portuária, concentrando também uma parte das moradias. A Cidade Nova ia sendo ocupada progressivamente nos anos 1920 e 30, e isso, desde o início, sob o estimulo de medidas do governo.29 Por outro lado, a integração entre a Cidade Nova e os dois bairros mais antigos já havia recebido um impulso decisivo com a linha de bonde elétrico, que, em 1912 corria diante do sítio Solidão, de propriedade do chefe Pedro Velho de Albuquerque Maranhão, e descia até a Cidade Alta e Ribeira; a mesma linha chegou à praia de Areia Preta no início de 1915.30 Portanto, nos anos 1920, mesmo para uma jovem moradora de Petrópolis ou Tirol, é inconcebível a ausência de vivência e experiências relacionadas diretamente aos dois primeiros bairros originais da cidade, mesmo que ela tivesse encastelado sua experiência dentro da Cidade Nova. Ora, Palmira Wanderley habitava na Cidade Alta, rua Fontes Galvão, e acalentara o sonho de mudar-se para um sobradinho estilo mourisco na esquina da avenida Deodoro com a rua João Pessoa, igualmente situado na Cidade Alta, construído pelo noivo com quem nunca iria se casar, porque ele viria a falecer em 1922.31 Foi na mesa de um estabelecimento situado na Cidade Alta, a Rotisserie, que ela se deixou fotografar em companhia de quatro amigas, exibindo o Roseira brava recém-publicado.32

Sendo assim, devemos procurar outras razões para a exclusão da Cidade Alta e da Ribeira na geografia poética de Palmira Wanderley. Na sua topografia, nomes de ruas e padrões de edificações, esses dois bairros abrigavam alguns marcos da fundação da cidade, repositórios da memória dos tempos passados, como a Cruz da Bica e a catedral.

Mesmo que o historiador Nestor Lima escrevesse, em 1927, sobre a celebração católica e tradicional da cidade, em torno da Santa Cruz da Bica – que “estão perdidas na memória dos nossos contemporâneos a razão de ser dessa tradição a origem dessa festividade tão apreciada pelos nossos maiores”33 –, os marcos coloniais da cidade antiga conservaram-se no regime republicano. Por outro lado, a disseminação de monumentos celebrantes do novo regime na Cidade Alta e na Ribeira não chegou a fazer desses lugares um domínio simbólico da República. Mesmo porque, nas formas e nos nomes daqueles dois bairros estava, por assim dizer, a história dos primeiros tempos da cidade. Desse modo, ao oferecer uma descrição da cidade de Natal restrita à Cidade Nova e alguns outros pontos, a geografia poética de Roseira Brava se converte numa geografia sem história.

Nos anos 1920, a Cidade Alta não foi alcançada por aquela ação moderna, revestida de prestígio, que está na origem da Cidade Nova, ou seja, aquele “plano de

29 Incentivos à ocupação da área aparecem, por exemplo, na resolução da Intendência Municipal n. 129, de 29 de março de 1909. Cf. Arrais et al. (Orgs.), 2012, p. 231-232.

30 Cascudo, 1947, p. 259.

31 Barreto, 2005, p. 53, 73.

32 Cigarra. Natal, ano 2, n. 4, 1929, p. 60. Para a localização da Rotisserie no mapa da cidade, cf.

Marinho, 2011, p. 178-179.

33 Melo, 1950, p. 247.

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parcelamento/arruamento do solo, com uma trama regular e sem qualquer preocupação estética ou funcional”.34 E isso teve um efeito desabonador sobre a Cidade Alta, que, no ano de 1929, mereceria uma apreciação negativa do jornalista Luís da Câmara Cascudo quando comparada com a Cidade Nova. O jovem Cascudo, entusiasmado com a Cidade Nova, afirmava sobre algumas partes da Cidade Alta: “a tortuosidade das ruas lembra um delírio de linhas convulsas”.35

O fato é que o território apreciado pelas elites natalenses do começo do século XX, o berço que acalentou a memória que aparece em Roseira Brava, estava assentado sobre a área que os republicanos reservaram para imprimir a memória do novo regime. O novo regime, numa cidade nova, que se inspirava nos princípios fundamentais da modernidade urbanística. O plano germinara na cabeça do chefe republicano Pedro Velho, e o lugar, com as formas e as palavras que o nomeavam, pretendia escrever, e inscrever espacialmente, a memória da Era republicana. Se por um lado a ação das administrações republicanas sobre a Cidade Alta e Ribeira se restringiu praticamente à instalação de alguns monumentos e à modificação parcial da sua toponímia, por outro, a Cidade Nova representou para eles a possibilidade de instalar uma memória que assinalava uma espécie de ano zero da República local.

A cidade e a Guerra

Desde os anos 1930, e intensificando-se com a II Guerra Mundial e as transformações que decorreram dela, a cidade de Natal experimentou os abalos de uma inserção forte, mas periférica, no cenário geopolítico ocidental. Os números da população da cidade responderam à nova condição com saltos espantosos: entre 1941 e 1943, a população passou de 55 para 85 mil, e, em 1950, já subira a 103 mil habitantes.36 No início do século, Natal estava dividida em quatro bairros: Ribeira, Cidade Alta, Cidade Nova e Alecrim, esse último criado em 1911. Pelo Decreto-lei 251, de 1939, aprovado em julho de 1947, a cidade se expandiu e dividiu-se em onze bairros: Santos Reis, Rocas, Ribeira, Cidade Alta, Petrópolis, Tirol, Alecrim, Lagoa Seca, Lagoa Nova, Carrasco e Quintas.37

Como efeito da base norte-americana instalada nos arredores de Natal, corria uma agitação nova que partia de Parnamirim e irradiava plenamente na cidade. Como escreveu Lenine Pinto, “100.000 soldados, marinheiros e aviadores foram aqui despejados de repente e era preciso, além da estrutura de serviços essencialmente técnicos, prepararem-se os de subsistência e entretenimento”.38 Novos costumes, assimilados avidamente pela população jovem da cidade, o contato dos moradores com um mundo revestido de aura de cinema, um frenesi que estimulava certos espíritos a empregar artes ilícitas para ganhar a vida, que contrariavam um ethos tradicional – esses

34 Lima, 2001, p. 33.

35 Crônica publicada no jornal A Republica, em 30 dez. 1929, sob o título “O novo plano da cidade”. Cf.

Cascudo, 2005, p. 141.

36 Lima, 2001, p. 71.

37 Natal, 1947.

38 Pinto, 2000, p. 28. Sobre a atividade norte-americana, cf. todo o capítulo IV, “Os wc’s sem portas”.

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foram alguns resultados dos poucos, mas intensos anos de contato da população local com os militares norte-americanos.39

Contudo, para Natal, os tempos da Guerra não podem ser reduzidos ao glamour com que o senso comum imagina que os americanos revestiram a cidade. Muito menos nos tempos imediatamente posteriores à Guerra. Efetivamente, a retirada das tropas norte- americanas deixou um legado amargo para a vida econômica de Natal: aos efeitos do desaquecimento da economia local, somava-se a dificuldade de abrigar uma população crescente de migrantes que haviam chegado à cidade fugindo da seca.

O natalense do início do século que passasse os olhos pelos jornais do período pós- guerra facilmente poderia reconhecer a complexidade que o cotidiano havia adquirido naqueles tempos. A imprensa havia abandonado a monotonia das colunas que, até o começo do século, desfiavam de alto a baixo o ramerrão da política local e nacional, as transcrições de telegramas, a publicação de documentos da administração estadual e municipal, a publicidade dos medicamentos milagrosos. A dinâmica e a diversificação social da capital apareciam agora sob a forma eloquente de reportagens ilustradas com fotografias dos cenários de pobreza e da vida dos pobres, o que devia provocar impacto sobre a sensibilidade, senão sobre a curiosidade, dos leitores. A cidade observava a emersão de novas forças sociais contestatórias, em cena pelo menos desde a década de 1930. Do mesmo modo, as reportagens revelavam o lado obscuro da miséria irrompendo do manto verde que revestia o monte Petrópolis e redondezas.

Para alguns observadores da cidade, parecia que ressoara sobre Natal algo do grande conflito que deixara tantos lugares arruinados por todo o mundo. O mais sensível e constante observador no período, Câmara Cascudo, foi um dos que reagiu a esse estado de coisas. Ele engajou suas crônicas de sabor histórico e folclórico contra a desordem do presente e o desamparo da memória coletiva em face da inconstância da vida moderna. Cascudo representa a linha mais vigorosa dessa escrita voltada para o passado da cidade e sensível aos lugares humildes que testemunhavam as origens de Natal, tais como Ribeira, Cidade Alta, Refoles, Passo da Pátria, Rocas e Guarapes.40

Dentro da cidade que expande sua malha urbana e acelera seus fluxos internos, é perceptível, por parte dos intelectuais – estes contando com a cumplicidade de uma parte dos moradores da cidade –, um movimento de forte interesse pelo passado e por aquilo que, na geografia da cidade, designaremos como “espaços interiores”. Esboça-se, então, uma reação que consistia em “tentar fazer reviver, no domínio da literatura pelo menos, esse universo da sombra” que estava sendo dissipado na vida moderna.41 O subúrbio, nas margens distantes do frenesi da moda, longe da franja marítima, estava entre esses espaços.42

39 Para uma síntese das modificações decorrentes da presença norte-americana em Natal, cf. Smith Junior, 1992, p. 201-209.

40 Cf. arrais, 1947.

41 “tenter de faire revivre, dans le domaine de la littérature au moins, cet univers d'ombre que nous sommes en train de dissiper” (Tanizaki, 2001, p. 37. Ttradução nossa).

42 Desenvolvi esse argumento da relação entre progresso urbano e a crônica praticada em Cascudo, 2010, Posfácio.

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A ação modernizadora que partiu dos administradores da cidade, de seus agentes econômicos e dos intelectuais se manifestou pela primeira vez no final da década de 1920. Na administração municipal do engenheiro Omar O’Grady, em 1924, foi elaborado o Plano Geral de Obras de Saneamento e o Plano Geral de Sistematização de Natal, por Giacomo Palumbo, projetado entre 1929 e 1930. Em 1935, o Escritório Saturnino de Brito elaborou o Plano Geral de Obras, parcialmente executado até 1939, o qual “apropriou-se das ideias e intervenções não executadas anteriormente, ou executadas parcialmente, e adaptou as propostas ao crescimento e às transformações ocorridas na cidade ao longo dos anos”.43

No imediato pós-guerra, a cidade de Natal colheu os resultados desse crescimento acelerado sob a administração do jovem Sylvio Pedroza, norte-rio-grandense educado na Inglaterra, nomeado para administrar a cidade entre 1946 e 1951. De fato, em 1947, sob seu governo, como já apontamos, a cidade passara administrativamente a contar 11 bairros (incluindo o desdobramento da Cidade Nova em dois novos bairros, Petrópolis e Tirol). Mas a grande realização que esse prefeito reivindicou foi o calçamento da Avenida Circular, que passava diante da Praia do Meio, a primeira praia de banho da cidade, e guindando à esquerda nas proximidades da Fortaleza, se estendia até o Alecrim. Com essa avenida, o prefeito pretendia executar um projeto já contido no plano de Giacomo Palumbo, do final dos anos 20.44 O sentido dessa obra de fôlego largo é inequívoco: “as obras de urbanização das praias de Natal e a Avenida Circular se tornaram a representação ‘oficial’ da modernidade natalense”.45

Na introdução do livro História da Cidade do Natal, publicado em 1947 sob o patrocínio desse prefeito, Cascudo celebrou a obra empreendedora de Sylvio Pedroza, chamando a atenção para o fato de que ele estava contendo a expansão das construções das moradias pobres na beira-mar. Para o historiador, o prefeito estava adotando uma solução “corajosa”. Essa página de Cascudo atribui ao prefeito aquela energia criadora e tenaz dos militares norte-americanos, que encheram de pasmo o povo de Natal pela realização de obras de grande esforço, por assim dizer, da noite para o dia, como a estrada ligando o norte ao sul quase despovoado, a Parnamirim Road, e um oleoduto com a extensão de vinte quilômetros.

Nas imagens que Cascudo empregou para descrever a ação do prefeito, podemos pressentir a dureza com que os poderes instituídos da cidade agiram diante das demandas ainda silenciosas dos migrantes pobres chegados do sertão no tempo da Guerra e que não tinham onde morar. Assim, a “solução corajosa” do prefeito Sylvio Pedroza consistiu em mandar “a Bull-Dozer mastigar areia e fazendo surgir uma Avenida Circular, filas de residência de gente com recursos acima dos medianos [...], num bairro novo dos Santos Reis que chegou a tempo de evitar a ofensiva relâmpago do panzer-mucambo, já em concentração ameaçadora ao pé do Morro de Petrópolis”.46 Mas não foi pela ação preventiva contra os mocambos que, décadas depois de deixar a prefeitura, Sylvio Pedroza recordaria sua contribuição para a história da cidade. Ele

43 Dantas, 2000, p. 89.

44 Souza, 2001.

45 Torquato, 2011, p. 57.

46 Cascudo, 1947, p. 10.

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caracterizou o sentido essencial dessa colaboração como uma modificação da geografia de Natal, uma alteração do seu desenho, pelo menos no que concerne às bordas da cidade que comunicavam com o oceano:

Eu não podia entender na década de 40 que Natal plantada sobre as dunas, entre o oceano e o rio Potengi, vivesse de costas para o mar, afastada do seu fascínio. Havia acesso a apenas duas praias:

a do Meio, ou do Morcego, a que se chegava por uma ladeira, e a Areia Preta. Na margem esquerda do Potengi, a Redinha com único e precário acesso pelos velhos e líricos botes à vela, que saíam do Canto do mangue. Isto mesmo apenas no período do verão, pois no resto do ano ficavam ignoradas como se esta não fosse a cidade ensolarada, aberta à carícia marítima em todas as estações.47

O prefeito teria transformado a ordem topográfica de uma Natal que antes vivia de

“costas para o mar”, reposicionando-a, voltando sua face para a água. É como se, abrindo a cidade ao mundo exterior e dinamizando os fluxos que levavam a suas praias – o que implicou forçosamente na superação do tempo dos botes líricos com que se atravessava o rio –, ele tivesse redirecionando o destino da cidade.

Fica patente que essa modificação dos objetos e dos fluxos deveria incidir justamente sobre uma noção que vinha sendo recrutada por alguns intelectuais para urdir uma identidade da cidade de Natal como uma comunidade tímida, fechada sobre si mesma, arrastando uma vida lenta e um tanto impermeável à dinâmica do mundo moderno. Esse modo de ser está condensado em pelo menos dois vocábulos que os cronistas da cidade investiram de grande força simbólica. Um deles é o vocábulo “terra”, presente no título lacônico e expressivo das crônicas natalenses publicadas no jornal A Republica entre 1907 e 1919, por Manoel Dantas: “Coisas da terra”. O outro, o vocábulo “província”, e seus derivados (“provinciano”, sobretudo), com que o cronista e historiador da cidade, Luís da Câmara Cascudo, se autonomeou.48

Natal, Cidade do Sol

A meta do prefeito Sylvio Pedroza era justamente a “desprovincianização” da cidade, reorientando seus fluxos interiores e ampliando seus canais de contato com o mundo exterior. Essa obra de extroversão da cidade prosseguiria, por iniciativa de prefeitos que lhe sucederam. Não conhecemos o ritmo dessa operação, mas sabemos que ela se acelera e ganha eloquência vinte anos depois do prefeito Sylvio Pedroza, sob a administração de Agnelo Alves, que entrou no governo em 1966 e foi cassado e detido pela Ditadura Militar em 1969.49

Não analisaremos aqui o significado das obras realizadas na gestão de Agnelo Alves.

No presente artigo, interessa-nos tão somente o modo como a prefeitura enunciaria essas obras e o significado que as revestiria. O veículo o qual a prefeitura lançou mão

47 Pedroza, 1998, p. 117-130.

48 “Provinciano incurável” foi como Afrânio Peixoto o chamou em 1946, em conversa com uma terceira pessoa. Ver também o próprio depoimento de Cascudo a respeito. Revista Província 2, 1998, p. 6.

49 Sobre o contexto político de Natal naqueles dias, conferir o depoimento do jornalista Cassiano Arruda.

Cámara, 2009, p. 64-65. Agradeço a Willian Pinheiro Galvão (mestrando do PPGH-UFRN) a obtenção desse texto, e de outros, nos quais colhi dados para este artigo.

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para enunciá-las, a publicidade, revela, em si mesmo, a adesão da administração municipal aos imperativos do mundo moderno, na qual a comunicação “nada no elemento do superficial e da sedução frívola...”.50 Segundo enunciava o Poder Executivo do município de Natal, o futuro da cidade estava assentado sobre dois pilares:

a indústria e o turismo. A publicidade organizada segundo o modelo capitalista moderno difundiu pela primeira vez de modo cabal o destino que não mais cessaria de perseguir a cidade: o mercado turístico. Assim, no ano de 1968, a prefeitura contratou a revista Fatos e Fotos para uma reportagem de dezesseis páginas fartamente ilustradas com fotografias. O texto foi elaborado pelo jornalista Cassiano Arruda Câmara e as fotografias foram feitas por Sebastião Barbosa. O título da matéria, “Natal, a Cidade do Sol”, apresentava uma designação que efetivamente se incorporaria à identidade evocada a cidade nas décadas seguintes. No centro da reportagem, exibindo fotografias coloridas de página inteira e em páginas duplas, anunciavam-se as grandes obras que estavam sendo empreendidas pela prefeitura, entre elas, o novo estádio de futebol.

Enumeravam-se os encantos que a cidade apresentava, a riqueza da sua arte, folclore e cultura popular, mencionava-se a “grandiosidade” do seu principal hotel, o Hotel dos Reis Magos. Recordava-se o papel decisivo que esta desempenhara para a vitória dos Aliados e sua projeção internacional no período da Guerra, listava os milagres que a energia elétrica transmitida de Paulo Afonso espalhava na cidade e ainda o novo Plano Urbanístico e de Desenvolvimento de Natal, elaborado pelo Escritório Serete S. A.

Engenharia, o qual, diga-se de passagem, não chegou a ser implementado.51 A reportagem transcrevia declarações do prefeito, proclamando a sua determinação de implantar “um novo estilo, uma nova mentalidade administrativa e uma Nova Dimensão para Natal”.52

Todavia, faltavam naquele momento as condições internas para que a cidade fosse plenamente arremessada no mercado de viagens e lazer. Não havia acordo entre os grupos dominantes sobre a viabilidade econômica do turismo em Natal, de modo que, no período, não foi colocada em prática uma ação sistemática eficiente nessa direção.

De fato, quando Natal sediou o II Congresso Nacional de Turismo, em 1969, ficou patente que a cidade não apresentava as condições para ingressar no mercado turístico...53

Por sua vez, a reportagem disseminava fartamente pregões turísticos: “seu clima, suas belezas naturais e a hospitalidade de sua população garantem, ao lado de um hotel de características internacionais, um intenso movimento turístico”. Promovia a associação da cidade a um “paraíso tropical”, agraciado com “doze meses de sol por ano e uma temperatura média de 26 graus”, o que fazia dela um “local ideal para férias”.

Mas o trabalho do repórter e do fotógrafo que resultou nessa peça publicitária sobre Natal, revelando o esforço para vesti-la como cidade turística, explorando as belezas com que a natureza a prodigalizara, tropeçou em pequenos obstáculos, que foram recordados pelo repórter algumas décadas depois: “foram trinta dias de batalha em

50 Lipovetsky, 1989, p. 186.

51 Lima, 2001.

52 Natal, cidade do Sol. Fatos e fotos, 1968, ano VIII, n. 395, p. 57. A expressão “Nova Dimensão”, pronunciada pelo prefeito e citada pelo jornalista, está grafada em maiúscula no original.

53 Cf. Silva; Alves, 2012.

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busca de ângulos fotogênicos de Natal, Natal dos anos 60 (praias, coqueiros e umas poucas menininhas de biquíni, assim mesmo à custa de muita persuasão)”54, escreveu Arruda Câmara. O exemplo prosaico da dificuldade para encontrar na paisagem modesta as imagens convincentes de um “paraíso tropical”, e nas moças natalenses um éthos compatível com uma cidade grande e praiana dos trópicos, indicava a persistência da cidade módica, de gente “provinciana”. A insistência na procura de ângulos tropicais que pudessem sugerir a exuberância tropical e o esforço para persuadir as moças a aparecerem de biquíni na revista equivaleu a um investimento na “desprovincianização”

da cidade, para que ela pudesse adequar-se ao mercado turístico.55

A reportagem mobiliza letras e fotografias para formular a imagem da cidade fotogênica e moderna. Entretanto, do mesmo modo que Palmira Wanderley, a reportagem deixa certas partes da cidade fora do enquadramento. Ela realiza uma operação seletiva dos territórios, põe em ação um jogo de luz e sombras que dirige o olhar do leitor turista e orienta os seus caminhos na cidade, oferecendo-lhe os prazeres das paisagens novas, revelando-lhe aqueles lugares, como afirma John Urry,

escolhidos para ser contemplados porque existe uma expectativa, sobretudo através dos devaneios e da fantasia, em relação a prazeres intensos, seja em escala diferente, seja envolvendo sentidos diferentes daqueles com que habitualmente nos deparamos. Tal expectativa é construída e mantida por uma variedade de práticas não-turísticas, tais como o cinema, a televisão, a literatura, as revistas, os discos e os vídeos, que constroem e reforçam o olhar.56

Por essa cidade cartão-postal dos anos 1960, o leitor de Fatos e fotos pouco ou quase nada conhecerá sobre um bairro populoso chamado Alecrim, nem sobre o enclave urbano chamado Rocas dentro do bairro da Ribeira, nem sobre as áreas ribeirinhas esparramadas aos pés da Cidade Alta, como o Passo da Pátria, nem, na direção oposta, a vida custosa se agitando dentro da cobertura vegetal das dunas românticas de Palmira Wanderley.

Essa imagem da cidade de Natal embalada como produto tropical foi reforçada pela memória fotográfica produzida sobre ela. Desde os anos 1950, o fotógrafo Jaecy Emerenciano moveu suas lentes dentro de uma cidade proletarizada, atravessada por problemas cotidianos, como o atraso dos bondes que faziam a ligação entre as áreas centrais e os bairros populares ou os alagamentos na Ribeira, assuntos que fervilhavam cotidianamente na imprensa desde, pelo menos, meados da década de 1930, como nessa passagem:

Os bondes que a Cia. Força e Luz põe á disposição do publico são insufficientes para satisfazer as necessidades de transporte de uma cidade como a nossa. Si isso acontece no centro, acontece nos arrabaldes, que só de vinte em vinte minutos, quando há felicidade, dispõem desse meio de comunicação. O peior, porém, é que não há possibilidade desses carros se enquadrarem no horário affixado na secção da Cia. Força e Luz da Cidade Alta. O horario é apenas uma tapeação, e dos bondes não errará quem disser como da missa e da maré: esperar ao pé.57

54 Cámara, 2007, p. 188.

55 Sobre a situação do turismo nacional nos anos 1950-70, cf. Cruz, 2000.

56 Urry, 1996, p. 18.

57 Os bondes não obedecem a horarios e o publico que se lixe. A Republica, Natal, 27 mar. 1935.

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Figura 3.

A cidade de Natal, a Fortaleza e as águas dos rios Jundiaí e Potengi desembocando no oceano

Fonte: Emerenciano, Jaecy. CD-Natal. Sem data.

Todavia, quando contemplamos o volumoso acervo fotográfico legado por Jaecy, nos surpreende que o fotógrafo tenha deixado inteiramente fora de cena os bairros pobres, os conjuntos habitacionais que começavam a se formar à margem esquerda do rio, a vida que iniciava nos novos loteamentos, o trabalho dos pescadores, existências certamente prosaicas, mas não desprovidas de interesse artístico. Em vez disso, o que predomina é o repertório dos usuais panoramas das paisagens tropicais: grandes extensões de praias, coqueiros, frutas nordestinas e marcos urbanísticos e arquitetônicos situados predominantemente nas áreas centrais da cidade. A obra de Jaecy concorreu, dessa forma, para a produção fotográfica dessa entidade chamada “Cidade do Sol”:

Voltemos à peça publicitária de 1968, para fixar a atenção nessa tendência exteriorizante que se expandia e se manifestava no título da reportagem. “Natal, a Cidade do Sol”, marca a cidade com uma etiqueta e a oferece ao mercado. É importante, nesse ponto de inflexão do artigo, observar que o título da reportagem revela um deslocamento toponímico. Assim, logo de entrada, Natal deixa de ser invocada como a

“rainha do Potengi”, tal como Palmira Wanderley saudava a cidade quarenta anos antes.

A mudança desse estado de coisas não deve ser atribuída somente ao declínio do prestígio de um romantismo tardio, no interior do qual emergira a imagem da “rainha do Potengi”. Esse recuo do nome deve ser associado às mudanças na ordem urbana, especificamente ao recuo que o rio sofrera dentro da paisagem da cidade. Nesse caso, fica patente que tal nome não mais encontrava correspondência na mente dos

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moradores, que se descompusera a materialidade que fazia da “rainha do Potengi” uma designação aceitável para a mente dos residentes. O banho de mar se generalizava entre a população, o rio ocupava lugar secundário na paisagem que se exibia.

Mas o rio talvez ainda comunicasse uma experiência de introspecção e autorreconhecimento aos natalenses que se situavam fora do cálculo das novas administrações da cidade e de seu corpo de empresários. Vem a propósito recordar que, na perspectiva da fenomenologia, a água dos rios se associa a uma identidade construída no processo de interiorização do indivíduo dentro da paisagem. Bachelard distingue, na água do rio, a “fonte secreta do fundo dos bosques”, onde Narciso “tem a revelação de sua identidade e de sua dualidade, a revelação de seus duplos poderes viris e femininos, a revelação, sobretudo, de sua realidade e de sua idealidade”.58

O rio esquecido, o rio reencontrado

O estuário que carreia e mistura as águas do rio Jundiaí e do rio Potengi, deslizando aos pés dos bairros pobres da cidade, correndo dentro de uma cidade que expandira a malha urbana, reduzia-se a elemento esquecido, tal qual uma paisagem pobre de fundo de quintal, até encontrar-se na situação descrita num guia atual da cidade de Natal, segundo o qual o rio “está ‘bem ali’, mas a gente quase não dá por ele. Somente do subúrbio de Igapó ou da praia da Redinha é que se percebe a grande presença do Potengi”.59 A expansão de Natal, a partir da década de 1940, pode ser acompanhada pelo ritmo segundo o qual os loteamentos foram se espalhando no território da cidade. O processo pode ser observado na ilustração abaixo (figura 4):

Até os anos 1950, esses lugares vieram à tona nas reminiscências dos autores como objeto de recordação dos tempos da infância, como lugar proibido, perigoso e excitante, e o primeiro desses lugares era o Passo da Pátria.60 Quem se deslocou até o subúrbio para aprofundar o conhecimento sobre o rio, lançando o olhar para dentro dele e na direção de suas duas margens, foi o pintor, cronista, poeta e dramaturgo Newton Navarro. No período em que os jornais publicaram as crônicas que serão mencionadas aqui (décadas de 1960 e 70), Navarro escreveu poesias, contos e novelas, publicando em 1978 sua última novela, intitulada “de como se perdeu o gajeiro Curió”.61

Enquanto Newton Navarro escrevia e pintava a vida e as paisagens da cidade de Natal, dilatava-se o tecido urbano, que no início dos anos 1970 transbordava para a margem esquerda do rio, nas áreas de Igapó, para onde foram dirigidos investimentos públicos numa política habitacional destinada às classes pobres. Do rio, no final dos anos 1920, Palmira Wanderley não tinha retido na sua poesia senão a metáfora romântica; e, da

58 Bachelard, 1997, p. 25.

59 Onofre Jr., 2009, p. 133.

60 Entre esses memorialistas estão Lauro Pinto e Dom Nivaldo Monte. Lauro Pinto (1971, p. 40) escreveu que o lugar era “o lugar mais sujo, pobre e desgraçado de Natal”. E Nivaldo Monte (2000, p. 19) recorda que o lugar era “ordenado e calmo” durante o dia, mas ao cair da tarde “como por encanto, no mais perigoso antro de bêbados e arruaceiros”.

61 Em 1998, sua obra completa foi reunida em dois volumes. As crônicas que estamos explorando neste artigo foram publicadas em jornal e estão inéditas em livro. Agradeço a Viltany Oliveira Freitas (mestranda do PPGH-UFRN) por tê-las feito chegar até a mim.

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mesma forma, o rio não constava no menu oferecido ao turista nos anos 1960. Os planos urbanísticos, por sua vez, não reservaram nenhum lugar de destaque ao rio, para não dizer que desconheceram sua existência.

Figura 4. Loteamentos de Natal (1941-l986)

Fonte: Miranda, João Maurício. Evolução urbana de Natal em 400 anos (1599-1999). Natal: Prefeitura do Natal, 1999.

Comecemos os comentários acerca de Newton Navarro e a cidade de Natal com uma passagem extraída de uma de suas crônicas. Nesse trecho, ele lança a indagação sobre uma ausência: a ausência da essência da cidade. Em Coqueiros, velhos Caciques, Navarro interpela Natal, interrogando sobre a legitimidade de uma cidade que se constitui como uma forma urbana sem alma, ou, na linguagem do cronista, sem o seu

“povo”:

E o teu povo, cidade minha? De casinhas de palha, humildes, agarradinhas umas às outras, como a proteger-se contra a miséria. Sim, e o teu povo? Onde melhor encontrá-los, senão nos subúrbios?

Na periferia, à beira do rio ou junto dos morros escalvados. Ou mais pra lá, nos confins dos longes, no geral das demandas para o interior, mas onde parece que a tua alma, ali, estua mais verdadeiras, mais feita de sangue e carne e santidade. Ou ainda na Grande Natal, como te apelidaram por

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