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Cosmologia e geomancia: um estudo da cultura Yorùbá-Nàgô

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Cosmologia e geomancia: um estudo d a

cultura Yorubá-Nágô

Klaas A. A. W . Wo o rtm ann I — Introdução

Nosso propósito, n e ste ensaio 1> é o de e s tu d a r um aspecto p a r ­ tic u la r d a c u ltu ra Y orübá-N ágô — a a d iv in h aç ão de If á — e a lc a n ­ çar, p ela an álise de su a e s tru tu ra sim bólica, o significado pro fu n d o desse sistem a e de suas relações com os postu lad o s c e n tra is daquela cu ltu ra. P a r a ta n to , terem o s em m en te que a ad iv in h ação , como p a r ­ te de um sistem a religioso — de fa to , o p ró p rio cern e d este últim o — expressa u m a w orld co nstruction, no sen tid o d ado a ta l ex p res­ são p o r B erger (1969). O sistem a de Ifá , m ais do que u m m ero meio de p red izer aco n tecim en to s fu tu ro s, consiste n u m m odelo p a ra c las­ sific a r e o rd e n a r u m universo e p a ra d e fin ir a posição do indivíduo na o rdem cosmológica. T ra ta -se , de um lado, de c o n stru ir u m a ordem , e de outro, de c o n stru ir u m a pessoa, isto é, u m a id e n tid a d e in d iv i­ dual, colocando a pessoa n a ordem cosm ológica. Em su as relações com a religião e, p a rtic u la rm e n te , com u m siste m a c e n tra l m itoló­ gico, o sistem a de I f á p e rm ite que o m undo re a l “fa ç a sen tid o ”, to r ­ n a n d o -o co n c e itu a lm e n te apreensível, e p erm ite que o indivíduo se m ova n u m espaço organizado.

O com plexo de m itos Y orübá-N ágô pode ser classificado em v á ­ rios co n ju n to s ou séries: m itos de origem , p o stu la n d o u m a origem

com um , u m a u n id a d e básica de todos os Y orübá; m itos de reinos, le g itim an d o e s tru tu ra s p o líticas; m ito s de cidades e d e lin h ag en s (cf. Lloyd, 1956). P o r o u tro lado, existem séries de m itos re fe re n ­

te s a divindades p a rtic u la re s — os òrisà —, a r itu a is específicos, a

i O presente trabalho resulta de nosso convívio e de observações junto a membros de grupos-de-culto Nagô em Salvador, Bahia, entre 1966 e 1970, precedidas e complementadas pela pesquisa bibliográfica referente aos Yorübá na atual Nigéria e aos próprios Nagô.

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concepções sobre o indivíduo ou sobre a re lação e n tre os hom ens e os deuses. N este ensaio focalizarem os p rim o rd ia lm e n te os m ito s de origem ; n o e n ta n to , desde u m enfoque e s tru tu ra l, a s d ife re n te s sé­ ries m itológicas podem ser a p re e n d id a s como tra n sfo rm a ç õ es com relação a u m a m a triz básica, evidenciando u m a e s tru tu ra fu n d a ­ m e n ta l com um .

É b a s ta n te ev idente que f a la r “dos Y orübá” é tã o difícil q u an to fa la r “dos b rasileiro s”, esquecendo a im en sa diversidade que existe e n tre o cam p esin ato n o rd estin o , o ca m p esin ato te u to -b ra sile iro ou a classe m éd ia m e tro p o lita n a , ou e n tre os d ife re n te s grupos religio­ sos, dos q u ais fazem p a r te os Nagô. “Os Y o rü b á” são, de c e rta fo r­ m a , u m a a b stra ç ã o ; o que existe de fa to são o reino e o povo de Ifé, de Oyó, de Ilesh a, de K etu , etc., todos eles p ro d u to s p a rtic u la re s de com binações só cio -cu ltu rais ao longo de suas h istó ria s. P o r o u tro lado, os Y orübá e stão longe de serem sociedades “fria s ”, n o sentido lé v i-strau ssian o do term o. Pelo c o n trário , possuem u m a n ítid a cons­ ciência h istó rica, o que n ã o im pede, todavia, que a h istó ria s e ja m i­ tificad a, no que, adem ais, n ão se d iferen c iam eles de o u tro s povos ta m b é m complexos. As v ariações e n c o n tra d a s, de cidade a cidade, de rein o a reino, ou do o rig in al Y orü b á ao derivado Nagô brasileiro, são em la rg a m ed id a o re su lta d o do jogo e n tre h is tó ria e m ito, onde os m itos são m udados p o r necessidades h istó ricas, assu m in d o fr e ­ q ü e n tem en te u m significado político, e onde os eventos históricos são absorvidos pelo m ito. De fato , como a p o n ta L év i-S trau ss, a h is ­ tó ria n ão é m enos m itológica que o próprio m ito (L évi-S trauss, 1962). R e su lta claro que u m estudo d a “religião Y orübá-N agô”, se de todo possível, seria u m a em p resa g igantesca, m u ito além dos lim i­ ta d o s propósitos deste ensaio. S eria ta m b é m dispersiva. A co n cen ­ tra ç ã o ejn um asp ecto específico é m etodologicam ente reco m en d á­ vel. P o r o u tro lado, ela é possível porque, p o r sob a v ariab ilid ad e im p o sta p ela h istó ria , podem os iso lar certos com ponentes e s tr u tu ­ ra is básicos im utáveis, com uns ao universo ideológico de todos os segm entos Y orübá-N agô.

M ito e ritu a l — a p rá tic a d iv in a tó ria co n stitu i um p ro ced im en ­ to ritu a l — co n stitu em , em nosso p o n to de v ista, expressões de u m a m esm a linguagem , sendo o r itu a l o m ito vivido. M ito e r itu a l n ão a p e n as exprim em a m esm a m en sag em m a s tam b ém se leg itim am r e ­ c ip ro cam en te e, em assim fazendo, consolidam a m ensagem . M ito e r itu a l são tra n sfo rm a ç õ es recíp ro cas e p o r isso é possível p a ssa r-se de u m a o u tro no processo a n a lític o sem que se sa ia d a m esm a lin ­ guagem . A re laç ão e n tre m ito e r ito assum e im p o rtâ n c ia no co n tex ­ to deste estudo pelo fa to de que o processo divinatório, a in d a que

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g eralm en te conduzido p riv a d a m e n te , é u m a “cad eia sin ta g m á tic a ” que “to r n a a p ô r em vigor” o m ito. M an ip u lan d o cs sím bolos e os conceitos dos m ito s de C riação, u tilizan d o seus “m ite m a s” to rn a d o s atos, a a d iv in h a ç ã o é u m a m ise -e n -sc è n e d a C riação e u m a r e a f ir ­ m ação dos p rin cíp io s d a ordem cosmológica.

D iferen te s níveis de m en sag en s são com unicados pelo m ito ou pelo ritu a l. De acordo com as proposições de L év i-S trau ss (1967), L each (1965). G u ia rt (1972) podem os d istin g u ir n a m itologia Y orü b á- -N agô dois níveis de significados: u m significado visível e u m sig n i­ ficado p ro fu n d o (a e s tr u tu r a m esm a ), co rresp o n d en tes, por assim dizer, ao enredo e à e s tru tu ra lógica su b jace n te. O prim eiro de ta is níveis, que c h a m a ría m o s de histórico-sociológico, a p re s s n ta a m p la g am a de variações, e n q u a n to o segundo é re la tiv a m e n te in v a ria n te . P o r isso, u n ia m esm a e s tr u tu r a pode ser u s a d a p a r a co m u n icar d i­

fe re n te s m en sag en s p o líticas ou sociológicas, do que é exem plo a su b stitu ição d e p erso n a g en s nos m itos de C riação, de acordo com p ro jeto s de d om inação po lítica com petitivos. M as as tran sfo rm açõ es e x te rn a s n ão a lte ra m a m ensagem p ro fu n d a , pois a e s tru tu ra lógica é m a n tid a . Q uando se p a ssa de u m rein o Y o rü b á a o u tro m u d a o p erso n ag em c e n tra l d a C riação; qu an d o passam os d a série de m itos O b atalá-O d ü d u w à dos Y crü b á-N àg ô p a r a a série M aw u-L isa dos F o n - -M ina, reg istram o s u m c o n ju n to de inversões que, no e n ta n to , n ão a lte ra m a fó rm u la e s tr u tu ra l; e n tre os pró p rio s Y orübá h á versões onde a relação e n tre os dois C riadores é a d e m a rid o -m u lh e r e n ­ q u a n to em o u tra s é a de irm ão senior e irm ã o ju n io r. Ao nível so­ ciológico, a s d u a s versões e n fa tiz a m d ife re n te s relações sociais (re ­ lações e n tre os sexos; p rin cíp io d a sen io rid ad e). Ao nível lógico, p orém exp rim e-se a m esm a relaçã o de oposição. M udam os perso­ n ag en s, in v e rte m -se os sinais, m a s n ã o se a lte ra a m a triz de signi­ ficados form ais.

A e x istên cia de d ife ren tes níveis de significado, assim como a v ariab ilid ad e e x te rn a , se ja do m ito se ja do rito , freq ü e n te m en te re ­ fletin d o a d e sc o n tin u id ad e h istó ric a tra z à to n a o pro b lem a de o que o m ito e o rito são. São u m m odelo de idéias, de conceitos lógicos, de a b straçõ es, a in d a que e sta s ú ltim a s se ja m expressas a tra v é s de sím bolos “c o n creto s”, ao estilo “bricoleur” do “p e n sa m e n to selvagem ” (cf. L évi-S trauss, 1962). P o r isso m esm o n ã o ex iste coisa ta l como “o m ito ” e n q u a n to algo que é dado, e m u ito m enos u m a versão ver-; d a d e ira do m ito. Ao nível em pírico existem as verbalizações fe ita s p e r esse ou aquele co n ta d o r de m itos, que ao co n tá-lo s sem pre os r e ­ faz. O a n tropólogo n ã o co leta “o m ito ” m a s a p e n a s u m a versão, ou v árias versões; ele n ã o observa "o r itu a l”, m as u m a v a ria n te . Se t i ­

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verm os em m e n te que os m itos operam em vários níveis de m e n sa ­ gem (e de consciência) e se a d m itirm o s ta m b é m que ta n to as socie­ dad es Y o rü b á q u a n to os grupos Nagô são com postos de “u n id ad es in stáv eis”, podem os a d m itir tam b ém , seguindo a Leach. (1965) que o m ito e o r itu a l podem ex p ressar, em su as versões, fo rm as a lte r ­ n a tiv a s de organização social, bem com o legitim ações co n flitu ais no in te rio r de u m m odelo o rg an izató rio do m in an te; D iferen tes ideolo­ gias sócio-políticas podem e s ta r re p re s e n ta d a s n a s v á ria s versões do m ito ou do rito , ou n a s v ariações de u m te m a m itológico, e n ão h á ra z ão p a r a se c re r que o n a r r a d o r se ja n eu tro . De fato , n a r r a r um m ito pode m u ito bem se r u m a to político e n ão devem os n o s se n tir su rp ree n d id o s quando en c o n tra m o s versões a p a re n te m e n te c o n tra ­ d itó rias. P o r um lado, inco erên cias n ão sig n ificam que ex ista m v e r­ sões c o rre ta s ou e rra d a s ; p o r outro, a coerência ou a in co erên cia se refe re m a um d e term in ad o nível de significação. Q ualquer versão é “c o rre ta ” com relaç ão à e s tru tu r a p ro fu n d a d a série m itológica. Em d ife re n te s m om entos históricos, m u d a n ç a s sociais podem ser ex­ p ressas em m itos “novos”, isto é, em re a rr a n jo s dos elem entos sim ­ bólicos. T ais reelaborações podem n e g a r a versão a n te rio r, ou a m en sag em n e la c o n tid a a u m certo nível de significação e, n ã o o b sta n te , r e te r a e s tru tu ra . A e s tru tu r a n e ste caso n ã o a p e n a s r e ­ siste à h is tó ria como tam b ém provê u m a m a triz co n ceitu ai p a ra â ap reen são de seu flu x o 2.

U m a ta l co n tin u id a d e p re n d e -se ao fa to de que as e s tru tu ra s sim bólicas co n stitu em processos de ap ren d izag em que tra n s m ite m os axiom as básicos de u m a c u ltu ra , os elem entos c e n tra is de seu sis­ tem a de com unicações. D iferen tes versões que podem p a re c e r con­ tra d itó ria s ao observador ex te rn o à c u ltu ra , n ã o são assim conside­ ra d a s pelos p a rtic ip a n te s d a c u ltu ra . E n tre os Y orübá-N agô existem v á ria s versões do m ito d a C riação; a in d a que as “estó ria s” seja m d ife ren te s, a e s tru tu ra lógico-sim bólica p erm an ece a m esm a, e e n ­ q u a n to ela assim p e rm a n e c er as d ife re n te s “estó rias” n ã o serão vis­ ta s como c o n tra d itó ria s. Lowie re fe re -se a v á ria s visões Crow re la ­ tiv as à constelação d a U rsa M aior; a in d a que elas sejam d iferen tes, “n e n h u m a in c o n g ru ê n cia é se n tid a n a re p re se n ta ç ã o d a U rsa M aior, c o n ta n to que o n ú m ero sete a p a re ç a, de u m a m a n e ira ou o u tr a ”

(Lowie, 1972, p. 34). O m esm o pode se r d ito com relação aos m ito s de C riação Y orübà-N àgô e com re la ç ã o aos seus m itos re fe re n te s a Ifá ,

no que se re fe re aos n ú m ero s q u a tro e dezesseis.

2 Um exemplo de tal processo é dado pela análise de Da Matta (1970) sobre o mito e o anti-m ito entre os Timbira.

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T am b ém os vários p erso n ag en s m itológicos surgem em d iferen te s m itos de fo rm a a p a re n te m e n te c o n tra d itó ria : se O dúduw à é por vezes re p re se n ta d a como p re ta , o u tra s vezes ela é b ra n c a , a d ep en ­ d e r do co n tex to “m ito-lógico” em que surge. Ifá é às vezes um h om em e o u tra s vezes um òrisa; às vezes é b ra n co e o u tra s vezes é verm elho. Èsü é p o r «vezes re p re se n ta d o como u m ser de u m a só p e rn a , o u tra s vezes como ten d o o corpo envolto em c h am as; às vezes como u m ser m alévolo (ou pelo m enos d ad o a b rin cad eiras de m a u gosto) e o u tra s como o tra z e d o r de b e m -e sta r. Não h á nisso q u alq u er contradição, m a s a p en a s a re p re se n ta çã o das várias q u a­ lid ad es de seres-conceitos polissêmicos.

“O m ito ” n ão tem , e n tão , ex istên cia em p írica; ele pode ser p ro ­ duzido a p e n a s por ab stra ç ã o , pelo desv en d am en to d a e s tr u tu r a p ro ­ fu n d a . M as, em assim fazendo, devem os t e r em m e n te que além de e s tru tu ra existe ta m b é m sem ân tica. Mitos, a in d a que sejam es­ t r u tu r a s lógicas, n ã o são co n stru íd o s com Ps e Qs, m as com sím ­ bolos “concretos”. Se é possível tra n s fo rm a r m itos em e s tru tu ra s lógicas form ais, p erm an ec e o fa to d e que sím bolos tê m significados específicos d e n tro de u m a c u ltu ra, significados o u tro s que a ex p res­ são de relações fo rm ais de oposição, fu n ção ou equivalência. M itos são sistem as cu lturais-específicos, como o re ssa lta M a ra n d a (1972) e em d ife re n te s c u ltu ra s o m esm o sím bolo p roduz associações d ife­ ren tes. Sím bolos p e rten cem a “co n ju n to s p a ra d ig m á tic o s” (co n ju n to de sím bolos que p a rtic ip a m das m esm as funções sim bólicas), o que p erm ite tra d u z ir recip ro cam en te versões m itológicas no in te rio r de u m a m esm a c u ltu ra e p e rm ite a co n v ertibilidade tr a n s c u ltu r a l dos símbolos, como po r exem plo e n tre a c u ltu ra Y orübá-N àgô e a cul­ tu r a F on. Não o b stan te , a c a rg a se m â n tic a dos sím bolos coloca um p roblem a e u m a lim ita ç ã o a u m estu d o como o nosso — pois tem os de tr a b a lh a r sobre d ad o s coletados p o r o u tr o s 8, que n e m sem pre p e rg u n ta ra m a s questões fu n d a m e n ta is p a r a o p roblem a aqui a n a ­ lisado. Ao a n a lisa rm o s a m itologia e o r itu a l div in ató rio Y o rü b à- -F o n d e fro n ta m o -n o s c o n sta n te m e n te com lesm as, escravos, co rn etei­ ros, alim en to s sacrificiais que n em sem pre logram os ex p licar de m odo p le n a m e n te sa tisfa tó rio . A f a lta de in fo rm açõ es re la tiv a s à se m â n tic a de elem entos ou de a to s sim bólicos responde p o r alg u m a s das l a ­

c u n a s que o leito r sem dúvida n o ta r á n este tra b a lh o .

a Assim como com textos onde nem sempre permanece clara a fronteira entre o pensamesto do observado e aquele do observador, como é o caso do ensaio de Dos Santos (1976), de resto o melhor estudo da ideologia Nàgô.

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A p aren tem e n te, ta n to os m ito s d a C riação q u a n to os m ito s e rito s p e rtin e n te s à p rá tic a d iv in a tó ria p e rte n c e m a u m m esm o p a ­ rad ig m a. A inda que o processo d iv in ató rio se realize quase sem pre em â m b ito p riv ad o (m uito em b o ra h a j a ta m b é m adiv in h açõ es p ú ­ blicas), tr a ta - s e de u m a ativ id ad e que to m a lu g a r c o n tin u a m e n te :

aqui ou ali h á sem p re alg u ém co n su ltan d o o Ifá , sem pre que u m a decisão deve se r to m a d a. C asam ento e nascim en to d e m a n d a m a con­ s u lta o racu lar. O hom em adquire seu “d e stin o ” a tra v é s de c e rta s p rá tic a s r itu a is d irig id a s a Ifá . Sendo u m rito , o processo div in ató rio é u m c o n sta n te p õ r-em -v ig o r d a o rdem cosmológica, de u m a visão de m u n d o sem pre re c ria d a . A e s tr u tu r a m a te m á tic a u m a ordem de p ro b ab ilid ad es — e sim bólica d a geom ancia de I f á tra z e m c o n ­ sigo u m cotidiano p ô r-e m -a ç ã o dos ax io m as c e n tra is d a c u ltu ra Yo- rübá-N agô. O sistem a de I f á co n stitu i, p o r assim dizer, u m m a p a de su a cosm ologia, u m m a p a que p e rm ite ao indivíduo m over-se d e n ­ tro d e sta ú ltim a. P e rten c en d o a u m m esm o p a ra d ig m a , a C riação e a a d iv in h ação são “re d u n d a n te s ” e é e s ta re d u n d â n c ia q ue p erm ite ao a n a lis ta p a s s a r de u m a p a r a o u tra , realizan d o , de fo rm a cons­ ciente, o m esm o m ovim ento que realiza, n u m p lan o inco n scien te, a m e n te do a g en te c u ltu ra l. Ambos os c o n ju n to s de idéias, C riação e ad iv in h ação , dizem resp eito ao estab elecim en to de u m a o rd em u n i­ versal, p o stu la d a pelo C riad o r e d esv en d ad a pelo ad ivinho (b a b a - láw o).

Não nos será possível, aqui, d e ta lh a r as conexões h istó ric a s e n ­ tre a cosm ologia e a geom ancia Y orübá. É b a s ta n te claro que o sistem a d iv inatório, en q u a n to e s tru tu ra d e p erm u taçõ es m a te m á ti­ cas, n ã o é u m a invenção Y orübá. T am pouco o é su a m ecân ica, id ê n ­ tic a àq u ela e n c o n tra d a e n tre os povos árab e s, n a G récia A ntiga, n a E u ro p a C e n tra l e em o u tra s p a rte s d a A fríca. M as a e s tru tu r a sim ­ bólica d a ad iv in h a ç ã o de I f á é u m p ro d u to o rig in al Y orübá. Assim, e pelo fa to de a e s tru tu ra m a te m á tic a -te r sido “p ro je ta d a ” sobre o corpo m ístico de m odo a fo rm a r u m m odelo ideológico, é -n o s pos­ sível a n a lis a r a s conexões e s tru tu ra is e n tre u m m odelo m ítico e a geom ancia, e. b u sc a r a p re e n d e r o se n tid o d e sta ú ltim a.

In icia rem o s n ossa an á lise pelo começo do m undo.

II — A CriaçSo do Mundo

As divindades viviam originalmente no céu, abaixo do qual só havia a água prístina. Olorum (Olodumaré), o deus do céu, deu a Orishala, o deus da Brancura, uma corrente, uma porção de terra numa concha de caramujo, e um galo com cinco dedos,

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e disse-lhe para descer e criar o mundo. Todavia, quando ele se aproximou do portão do paraíso, ele viu que nignma« di­ vindades estavam tendo um a festa, e parou para saudá-las. Elas lhe ofereceram vinho (de palmeira) e ele bebeu demais e adormeceu, embebedado. Oduduwa, seu irmão mais jovem, havia ouvido as instruções de Olorum e, quando viu Orishala dor­ mindo, tomou dos materiais e foi até a beira do paraíso, acom­ panhado de Camaleão. Aí, abaixou a corrente e desceu por ela. Oduduwa depositou a porção de te rra na água e colocou sobre ela o galo. O galo começou a ciscar a terra, espalhando-a em todas as direções, até os confins do mundo. Após Camaleão ter testado a firmeza da terra, Oduduwa pisou nela em Índio, onde fez seu lar, onde hoje está localizado seu santuário em Ife. Quando Orishala acordou e viu que o trabalho havia sido completado, lançou um tabu sobre o vinho da palmeira de óleo, o qual é até hoje observado por seus adoradores. Ele desceu à terra e a reclamou como sua, pois havia sido ele que fora enviado por Olorum para criá-la e governá-la, e porque ele era o irmão mais velho de Oduduwa. Oduduwa insistiu que ele é que era o dono da terra porque fora ele quem a criou. Os dois irmãos começaram a lutar e as outras divindades que os seguiram para a terra dividiram-se, apoiando a um ou a outro. Quando Olorum soube da luta, chamou Orishala e Oduduwa à sua presença no céu, e cada um contou sua versão do que acontecera. Olorum disse que a luta devia terminar. A Oduduwa, Criador da Terra, deu o direito de propriedade da terra, e dé governá-la, e ele se tornou o primeiro rei de Ife. A Orishala deu um título especial e o poder de moldar os corpos humanos, e ele se tornou o Criador da Humanidade. Então Olorum m an­ dou-os de volta à terra com Oranfe, o deus do trovão de Ife, e Eleshije, o Deus da Medicina de Ife, como seus companhei­ ros. Quando Oduduwa ficou velho, tornou-se cego. Enviou cada um de seus 16 filhos ao oceano, cada um de uma vez, para obter água salgada, que havia sido prescrita como remédio. Todos retornaram sem que tivessem tido sucesso, trazendo ape­ nas água doce, até que olokun, o mais jovem, finalmente fosse bem sucedido... Olokun foi para Uesha onde se tornou rei dos Ijesha, e os outros filhos fundaram reinos próprios (Bas- com, 1969, p. 9-11).

No começo, duas pessoas fizeram o mundo, uma Yemuhu (Oduduwa) e o homem, Orishala, também chamado Obaba Arugbo. Quando Yemuhu e Orishala vieram para o mundo, estavam com medo, e vieram acompanhados de Ajajuno, uma pessoa que não foi feita por ninguém, e que agia como men­ sageiro e chefe de guerra. Ela era uma mulher, cuja missão era lutar com o mundo. Quando term inaram seu trabalho de criação, transformaram-se em pedra. Mas antes disso, Orishala amarrou um carneiro ao seu punho com uma corda e Yemuhu tinha uma cabaça contendo as 16 lesmas, e quando ela se transformou em pedra estas 16 lesmas se tornaram a cabeça

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de Olorum Eleda, o Criador. Quando Eleda se levantou, ele notou que Ifá não tinha cabeça. Um dia, Eleda, lutando com Ifá, o derrubou, e sua cabeça saiu, depois sua testa saiu, de­ pois seu nariz, depois boca e olhos. Orishala fez isso (Dennet, 1910).

Olorum desceu uma corrente para a Terra, então coberta de água e pela corrente chegou o primeiro homem trazendo um. pouco de terra, um galo e uma noz de palmeira. O galo ar­ ranhou a terra para produzir terra seca; a noz produziu uma árvore com 16 galhos que eram os 16 Obás Yoruba (Lloyd, 1956).

No começo, o mundo era todo pantanoso e cheio de água, um lugar inútil. Acima dele havia o céu, onde vivia Olorum, o Dono do Céu, com as outras divindades. As vezes os deuses desciam para brincar nos pântanos inúteis, descendo por teias de aranha, penduradas através dos vazios. Mas ainda não exis­ tiam homens porque não havia terra firme. Um dia Olorum chamou o chefe dos deuses, Orishanla (Grande Deus) à sua presença. Disse-lhe que desejava criar terra firme e pediu-lhe que realizasse a tarefa. O Grande Deus recebeu uma concha de caramujo na qual havia alguma terra solta, uma pomba e um galo com cinco dedos. Ele desceu ao pântano e jogou a terra da concha num pequeno lugar. Então ele colocou a pomba e o galo sobre a terra e eles começaram a ciscar e a espalhá-la. Em pouco tempo eles haviam coberto grande parte do pântano e a terra firme foi formada. Quando Orishanla voltou a Olorum para relatar sua tarefa, Olorum enviou o Camaleão para ins­ pecionar o trabalho. Após uma primeira inspeção o Camaleão relatou que a terra estava bastante ampla mas não suficiente­ mente seca. Então ele foi mandado outra vez, e dessa vez ele disse que estava tanto ampla como seca. O lugar onde começou a criação foi chamado Ife, significando "amplo”, e depois adi-cionou-se a palavra Ile, “casa”, para indicar que era a casa da qual se originaram todas as outras povoações. A criação da terra tomou quatro d ia s ... e desde então observou-se uma se­ mana de quatro dias, cada um sagrado a uma divindade. Então Olorum mandou Orishanla de volta à Terra para plantar ár­ vores, dar alimentos e riqueza ao homem. Ele lhe deu a noz da palmeira original, cujas nozes dão óleo e cujo suco fornece bebida. Três outras árvores comuns foram plantadas, e mais tarde caiu a chuva para regá-las (Parrinder, 1967).

Quando Olórun decidiu criar a terra, chamou Obàtálà, en­ tregou-lhe o “ saco da existência”, àpò-iwà, e deu-lhe as in s­ truções necessárias para a realização da magna tarefa. Obàtálà reuniu todos os orisà e preparou-se, sem perda de tempo. De saída, encontrou-se com Odüa que lhe disse que só o acom­

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panharia após realizar suas obrigações rituais. J á no òna-òrun, caminho, Obàtálà passou diante de Èsú. Este, o grande con­ trolador e transportador de sacrifícios que domina os caminhos, perguntou-lhe se já tinha feito as oferendas propiciatórias. Sem se deter, Obàtálà respondeu-lhe que não tinha feito nada e seguiu seu caminho sem dar mais importância à questão. E foi assim que Èsú sentenciou que nada do que ele se propunha empreender seria realizado. Com efeito, enquanto Obàtálà se­ guia seu caminho começou a ter sede. Passou perto de um rio, mas não parou. Passou por uma aldeia onde lhe ofereceram leite, mas ele não aceitou. Continuou andando. Sua sede au­ mentava e era insuportável. De repente viu adiante de si uma palm eira Igi-òpe e, sem se poder conter, plantou no tronco da árvore seu cajado ritual, o òpá-sóró, e bebeu a seiva (vinho de palmeira). Bebeu insaciavelmente até que suas forças o abandonaram, até perder os sentidos e ficou estendido no meio do caminho. Nesse meio tempo, Odüa, que foi consultar Ifá, fazia suas oferendas a Èsú. Seguindo os. conselhos dos babalàwo ela trouxera cinco galinhas, das que têm cinco dedos em cada pata, cinco pombos, um camaleão, dois mil elos de cadeia e todos os outros elementos que acompanham ó sacrifício. Èsú apanhou estes últimos e uma pena da cabeça de cada ave e devolveu a Odüa a cadeia, as aves e o camaleão vivos. Odúa consultou outra vez .os babalàwo que lhe indicaram ser neces­ sário, agora, efetuar um ebo, isto é, um sacrifício, aos pés de Olórun, de duzentos igbin, os caracóis que contém “ sangue branco”, a “água que apazigua”, omi-èrò. Quando Odüa levou o cesto com igbin, Olórun aborreceu-se vendo que Odüa ainda não tinha partido com os outros. Odüa .não perdeu sua calma e explicou que estava obedécendo ordens de Ifá. Foi assim que Olórun decidiu aceitar a oferenda e ao abrir seu Apére-odü — espécie de grande almofada onde geralmente Ele está sentado ■— para colocar a água dos igbin, viu, com surpresa, que não üavia colocado no, àpò-Iwà — bolsa da existência — entregue a Obàtálà, um pequeno saco contendo a terra. Ele entregou a, te rra nas mãos de Odüa para que ela, por sua vez, a reme­ tesse, a Obàtálà. Odüa partiu para alcançar Obàtálà. Ela o en­ controu inanimado ao pé da palmeira, contornado por todos os òrisà que não sabiam o que fazer. Depois de te n ta r em .vão acordá-lo, ela apanhou o àpò-lwà que estava no chão e voltou p ara entregá-lo a Olórun. Este decidiu, então, encarregar Odüa da criação da terra. Na volta de Odúa, Obàtálà ainda dormia; ela reuniu todos os òrisà e explicou-lhes que fora delegada por Olórun e> eles dirigiram-se todos juntos para o ò ru n Àkãsòpor onde deviám passar para assim alcançar o lugar determinado por Olórun para a criação da terra. Èsú, ògún, òsôsi e Ija. conheciam o caminho que leva às águas onde iam caçar e pescar, ògún ofereceu-se para m ostrar o caminho e conver­ teu-se no Asiwajú e no O lú là n à — aquele que está na, van­ guarda e aquele que desbrava os caminhos. Chegando diante

do òpó-drun-oún-Aiyc, o pilar que une o órun. ao mundo, eles

colocaram a cadeia ao longo da nual Odüa deslizou até o lugar

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indicado por cima das águas. Ela lançou a terra e enviou Eyelé, a pomba, para esparramá-la. Eyelé trabalhou muito tempo. Para apresentar a tarefa, Odüa enviou as cinco galinhas de cinco dedos em cada pata. Estas removeram e espalharam a terra imediatamente em todas as direções, à direita, à esquer­ da e ao centro, a perder de vista. Elas continuaram durante algum tempo. Odüa quis saber se a terra estava firme. Enviou o camaleão que, com muita precaução, colocou primeiro uma pata, tateando, apoiando-se sobre esta pata, colocou a outra e assim sucessivamente até que sentiu a terra firme sob suas patas. Quando o camaleão pisou por todos os lados, Odüa tentou por sua vez. Odüa foi a primeira entidade a pisar na terra, marcando-a com sua primeira pegada. Essa m ar­ ca é chamada ese' ntaiyé Odúduwà. Atrás de Odüa vieram todos os outros òrisà colocando-se sob sua autoridade. Co­ meçaram a instalar-se. Todos os dias, Orúnmilà — patrão do oráculo Ifá — consultava Ifá para Odüa. Nesse meio tempo Obàtálà acordou e vendo-se só sem o àpó-iwà retornou a Olórun, lamentando-se de ter sido despojado do àpò. Olçrun tentou apaziguá-lo e em compensação transm itiu-lhe o saber profundo e o poder que lhe permitia criar todos os tipos de seres que iriam povoar a terra. Foi assim que Obàtálà apren­ deu e foi delegado para executar tarefas importantes. Então, ele se preparou para chegar à terra. Reuniu os òrisã que es­ peravam por ele, Olúfón, Eteko, Olúorogbo, Olúwofin, <J»giyàn e o resto dos òrisa-funfun. No dia em que estavam para che­ gar, Qrúnmllà, que estava consultando Ifá para Odüa, anun­ ciou-lhe o acontecimento. Qbàtálà ele mesmo, e seu séquito vinham dos espaços do órun. Orúnmilà fez com que Odüa sou­ besse que se ela quisesse que à terra fosse firmemente estabe­ lecida e que a existência se desenvolvesse e crescesse como ela havia projetado, ela deveria receber Obàtálà com reverência e todos deveriam considerá-lo como pai. No dia de sua chegada òrisànlá foi- recebido e saudado com grande respeito. Odùa e Obàtálà ficaram sentados face a face, até o momento em que Óbàtálà decidiu que iria instalar-se com sua gente e ocupa­ riam um lugar chamado tdítàa. Construíram uma casa e ro­

dearam -na de vigias (Dos Santos, 1976, p. 61-64).

A n a r r a tiv a prossegue descrevendo u m conflito e n tre O b à tá là e O dúduw à, resolvido p o r in te rm é d io de Ifá , segundo o p rin cip io de que os c o n trá rio s devem coexistir. V árias o u tra s versões ta m b é m des­

crevem u m co n flito e n tre , de u m lado O b à tá là e os ò risà fu n fu n (òrisã b ra n c o s), ou d a d ire ita , e O dúduw à com su a legião de ò risã d a esq u erd a, ou p re to s (m ais p ro p ria m e n te , eb o ra).

M u ita s o u tra s versões existem q u a n to à criação do m undo. Em alg u m as delas, o m u n d o foi criado p o r O dùa, em o u tra s, pelo p ró ­

p rio ò ris à n lá , sozinho. E m alg u m as versões, O dùa é do sexo fem i­ n in o , em o u tra s é do sexo m asculino. E m o u tra s versões, a in d a , o

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m u n d o foi criad o p o r O ran m iy an , filh o de O düduw à e de O lokun (a d eu sa do O ceano) (cf. B iobaku, 1956). A lgum as dessas versões exp rim em d ife re n te s ideologias p o líticas e p ro je to s de dom inação. A versão que a trib u i a C riação a O ra n m y ia n é m u ito c la ra m e n te u m a v ersão Oyó, leg itim an d o a dom in ação desse re in o sobre os dem ais povos Y orübá, p a rtic u la rm e n te quando o m esm o m ito a firm a que: a) O ra n m y ia n foi o p rim eiro a d escer à te rra , estabelecendo u m a o rd em de se n io rid ad e; b) “Seus irm ão s p re fe rira m m o ra r n a te r r a seca, o que lh es foi p erm itid o sob condição de p a g a re m u m tributo, a n u a l”, isto é, todos os d em ais reinos, concebidos como te n d o sido fu n d a d o s pelos òrisà, irm ão s ju n io re s de O ra n m y ia n , devem trib u to a Oyó, “p o r d ireito divino”. De fato , en co n tram o s, e n tre a s v á rias versões a n a lisa d a s (d as quais a p resen tam o s, aqui, a p e n a s alg u m as poucas) considerável d isco rd ân cia q u a n to à ordem de descida dos òrisà, d isco rd ân cia essa ligada ao m encionado p rincípio o rg a n iz a tó - rio d a sen io rid ad e: a ordem de descida leg itim a, p o r assim dizer, u m a p eckin g order e n tre os reinos. M itos co n tad o s em Ifé descrevem O ra n m y ia n como u m g u erreiro -e p ro te to r do povo d a q u ela cid ad e (rac io n alizan d o a su b o rd in ação p o lític o -m ilita r de Ifé a O yó) ; m i­ to s co n tad o s em Oyó, porém , fazem de O ra n m y ia n u m re i de Oyó

que govern av a sobre Ifé. N estes m esm os m itos, Ifé c o n tin u a sendo o “berço d a h u m a n id a d e ”, m a s a h eg em o n ia de Oyó é ex p ressa p ela a firm a tiv a de que todos os reis recebem seus cetro s dos sacerd o tes de O ra n m y ia n em Ifé.

O p ró p rio O düduw à, que em m u ita s versões é m asculino, como C riad o r d a T e rra , pode ta m b ém te r re su lta d o d a leg itim ação ideo­ lógica de u m a d o m in ação política, conform e o in d ic a Idow u (1963). A in d a que, de um m odo geral, Ç risà n lá se ja reco n h ecid o como o G ra n d e Deus, v á ria s versões a trib u e m a O düduw à sen io rid ad e sobre todos os d em ais òrisà. S egundo Idow u, O düduw à foi u m g u erreiro que im pôs su a dom in ação sobre Ifé ; d e ific a d o ,' foi g ra d u a lm e n te u n id o a Q risàn lá n a co n stru ç ão m itológica. O conflito e n tr e am bos, se ja O düa m asculino ou fem inino, e x p re ssa ria u m co n flito p olítico- -ideológico. O m esm o conflito, e a divisão dos ò risà e n tr e u m a legião “b ra n c a ” e d a “d ire ita ”, e o u tra “p r e ta ” e “d a e sq u e rd a ”, foi ta m ­ b é m re g istra d o p o r B ascom (1969). Aqui o m ito pode m u ito bem e s ta r ex p rim in d o u m a lin h a m e n to dos v ário s rein o s (descen d en tes

dos vários òrisà) em d u a s facções.

As v ariaçõ es n a s versões m itológicas to rn a m -s e im p o rta n te s q u an d o se co n sid era que d ireito s de g o v ern an ça b a seiam -se em p re ­ ten sõ es de d escen d ên cia d ire ta do C riad o r o u dos ò risà o riginais. A

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versão p re d o m in a n te p are ce ser aq u ela que p o stu la a e x istên cia de 16 d ivindades o rig in ais (o que, como verem os a d ia n te , re lacio n a-se e s tre ita m e n te com o sistem a d iv in ató rio de Ifá ) m a s existe consi­ derável d isc o rd ân cia sobre q u ais re is são, efetiv am en te, seus descen ­ dentes. P o r o u tro lado, “o n a r ra d o r re cla m a m aio r senioridade p a ra sua p ró p ria d ivindade . . . sendo que alg u m as versões re fe re m -se a o u tra s divindades que n ã o O düa como o c riad o r d a T e r ra ” (Bascom , 1969, p. 11).

O que foi observado p o r L each q u an to ao faccionalism o K a c h in surge tam bém , m u ito c la ra m e n te, e n tre os Y orübá. D e fato , como afirm a Leach, m ito s exp rim em u m a ordem ideal, m a s existem d i­ fe re n te s idéias sobre como d ev eria se r ta l ordem ideal. No e n ta n to , se existem variações “e x te rn a s ” do m ito, p e rm an ece u m a u n ifo rm i­ d a d e “i n te r n a ”, isto é, ex iste um f a to r ló g ic o -e stru tu ra l u n ificad o r: a p ró p ria e s tru tu ra do m ito. É a p e rm a n ê n c ia dessa e s tr u tu r a p ro ­ fu n d a que faz com que os m itos sejam re d u n d a n te s, ou que h a ja re d u n d â n c ia e n tre m ito e ritu a l. V oltarem os a esse p o nto m a is ta rd e , em conexão com o tem a c e n tra l d este ensaio. Observem os, p o r agora, com Leach, que:

. . . como resultado da redundância, o crente pode sentir que, mesmo que os detalhes variem, cada versão alternativa do mito confirma sua compreensão e reforça o significado essen­ cial de todas as outras (Leach, 1967, p. 3).

É a p ró p ria e s tru tu ra p ro fu n d a , re d u n d a n te , que p e rm ite ao m ito tc m a r u m a fo rm a ou o u tra , ex p ressar d ife re n te s e c o n flita n te s m en sag en s políticas, sem d e ix ar de ser “o m ito ”. As variaçõ es ao nível d a m ensagem que ch am am o s sociológica n ã o a lte ra m a e s tru ­ t u r a b á sic a — pelo co n trá rio , rep o u sam sobre ela e sem ela seriam inviáveis. É sobre e sta e s tru tu ra p ro fu n d a que c o n c en trarem o s nossa análise.

As v á rias versões d a C riação por nós a n a lisa d a s são co n stru íd as com u m c o n ju n to de sím bolos e de relações de oposição e m ediação com uns. Como dissem os, n ão tran screv em o s aqui to d a s essas versões, cujos com ponentes ta b u la m o s n a fo rm a como se p o d erá v e r n a T a ­ bela I. A le itu ra d a ta b e la deixa claro que os vários com ponentes sim bólicos n ã o surgem em to d a s as versões, com excessão de Céu, T e rra, Á gua e T e rra Firm e. A in sistê n c ia nesses q u a tro com ponentes in d ic a su a c e n tra lid a d e p a r a o que poderíam os c h a m a r de a m e n ­ sagem essencial. A n ã o rep e tiç ão dos d em ais com ponentes pode ser d evida a u m a série d e m otivos: quem re g istro u o m ito pode n ão

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tê -lo feito em to d a a s u a in teireza, selecionando a p e n a s a s passag en s que lh e p a re c ia m re le v a n te s; o próprio n a rra d o r pode te r om itido certo s sím bolos, se ja p ro p o sita d a m e n te , em fu n ção de su a p ró p ria posição ideológica, s e ja porque são óbvios p a ra o p a rtic ip a n te d a c u ltu ra em questão; a s relações expressas por um com ponente sim ­ bólico podem se r p e rfe ita m e n te su b e n te n d id a s p o r u m a au d iên cia “ e n c u ltu ra d a ”, n a p resen ça de o u tro com ponente ideo-logicam ente associado, n u m sistem a sim bólico global que o p era n a m e n te do p o r­ ta d o r d a c u ltu ra . Assim, p o r exem plo, “dezesseis” n ão é m encionado em c e rta s versões, m a s “q u a tro ” o é, assim como ‘‘noz de p a lm e ira ”. O ra, “to d o m u n d o sab e” que “dezesseis” e “q u a tro ” são in tim a m e n te associados (relação n u m é ric a fu n d a m e n ta l no sistem a de I f á ) , e “n in ­ guém ig n o ra ” que a s nozes sa g ra d a s são em n ú m ero de dezesseis,

que é ta m b é m o n ú m ero dos ò risà originais. “T odos” sabem ta m ­ bém que a p a lm eira possui q u a tro fo lh as que se desd o b ram em dezesseis. É como se certo s símbolos estivessem “ocultos p o r elipse” n a g ra m á tic a m itológica. B ranco ap arece a p e n a s em d u as versões, m a s n in g u ém ig n o ra que O b à tá là é o S en h o r do P a n o B ran co e o p rin c ip a l dos òrisà fu n fu n . A cab aça é pouco m en cio n ad a, no e n ­ ta n to n e n h u m Y orü b á ig n o ra que o m undo é re p re se n ta d o p o r um a cab aça — Ig b á Odú. Sím bolos são, adem ais, in tercam b iáv eis: um a p a lm e ira com 4 ram o s é • equivalente a 4 p alm eiras. A co rre n te é m e n cio n ad a trê s vezes, m as ela reco rre em vários o u tro s m ito s que

n ã o os da C riação e em v á ria s rep resen taçõ es cosm ológicas. É o caso, p o r exem plo, do m ito d a m o rte e deificação de Sangó. O m ito re la ta que Sangó. perseguido por seus m inistros, com os q u ais e n tr a r á em conflito, m o rre e desce p a r a a s p ro fu n d ezas d a te r ra . O m ito re fe ­

re -se a um local onde a te r r a se abriu, u m a c o rre n te foi la n ç a ­ da, e p o r ela desceu Sangó. Este m ito consiste, m u ito c laram en te, n u m a inversão, ou m elh o r, n u m eq uivalente in v ertid o do m ito d a Criação. De fato, ele a p re s e n ta a m esm a e s tru tu ra com u m a inversão de sinais. E n q u an to os m itos de C riação re la ta m a origem dos h o ­ m e n s a p a r tir dos deuses, este re la ta a origem de u m a d ivindade a p a r t i r de um h u m a n o ; o inverso, p o rta n to , d a C riação. Nos m ito s de C riação, o hom em é criado após estab elecid a a ordem ; n o de Sangó, c ria -se o deus depois de d e fla g ra d a a desordem (conflito e n ­ t r e re i e m in istro s; n u m a versão brasileira, e n tre Sangó e a polícia). E n q u a n to a C riação p o stu la u m a relação e n tre Céu e superfície d a T e rra , o m ito de Sangó coloca um a oposição e n tre e sta ú ltim a e as p ro fu n d ezas da T e rra (dom ínio dos m ortos, em alg u m as im agens cosm ológicas). N ascim ento e m orte são m om entos opostos, a in d a que equivalentes, n u m m esm o ciclo. Em am bos os m itos, a c o rren te es­

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tabelece a ligação e n tr e dom ínios opostos. Percebe-se, c laram e n te que os dois m ito s são “r e d u n d a n te s ” e que u m é o equivalente i n ­ v ertid o do outro.

Amostra de oito versões do mito da Criação

VERSÕES MITOLÓGICAS ELEMENTOS SIMBÓLICOS A B C D E F G H Céu (ò r u n) Terra (à i y é) Agua Terra Firme

Saoo, Trapo, Embrulho Apò Iwà (Saco da Existência) Lesmas

Caramujo, Caracol Corrente

Galo, Galinha, de 5 Dedos Porção de Terra Palmeira Arvores em Número de 4 Cabaça Vin h o de Palmeira Camaleão “Quatro” “Dezesseis” Nozes de Palmeira Branco + == P re se n ç a — = A usência + + + + 1 + + + + + + + + + + + + + + + + + - L - L + + _ L + J . - b + --- + — — — + T 1 + — — + — — + — + + — — — + + — + + — — + — — j _ + + + — + + - r" O . + + — + + + + ~ r --- --- — + — + — — — — — T~ — + + • ~ Y ~ r + + — — — + — + ■ + + — +

--

+ „ --- _ + + — — + _ + 4

-As d iscrep ân cias e n tre a s v á ria s versões d a C riação n ã o afe ta m , porém , s u a e s tru tu ra . Em su a lin g u ag em b in á ria elas a p re se n ta m um siste m a d e oposições, u m cosm os com posto p o r c o n trário s. As oposições b ásicas são aquelas e n tr e Céu e T e rra , e e n tre Á gua e T e rra Firm e,

o

m undo veio a se r pelo estab elecim en to d e ta is opo­ sições e p ela m ediação e n tr e pólos opostos. A ordem foi estab elecid a

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p ela se p a ra ç ã o dos opostos, pelo “p ô r no lu g a r adequado” de c ad a categ o ria, e lim in an d o -se am bigüidades. M as, p o r o u tro lado, oposi- ções devem se r m ed iad as, pois o cosm os é u m a u n id ad e de c o n tr á ­ rios. E e s ta m ediação, ta l como em ta n to s o u tro s sistem as m ito -ló - gicos, é fe ita p o r seres am bíguos. Sendo o U niverso ao m esm o tem po se p a ra ç ão e unificação , a m ediação tra z consigo o anôm alo, pois im plica em c ru z a r as fro n te ira s de dom ínios cognitivo-sim bólicos opostos (cf. a noção de trespassing em D ouglas, 1970), em p e rte n c e r s im u lta n e a m e n te a dom ínios opostos:

A mediação é sempre conseguida pela introdução de uma terceira categoria que é “ anormal” ou “anômala” nos termos das categorias ordinárias “racionais”. Tais mitos são cheios de monstros fabulosos, deuses encarnados, mães virgens. Este cam­ po intermediário é anormal, não-natural, sagrado (Leach,

1967, p. 4).

Conform e verem os m a is a d ia n te , se a o rd em é re p re s e n ta d a p o r Ifá , a m ediação e n tre dom ínios é re p re s e n ta d a p o r Èsü, o tric k ste r d a m itologia Y orübá-N àgô e o com ponente dialético de su a cos­ m ologia.

‘‘O m ito ” d a C riação, isto é, o m odelo que pode se r ab straíd o d as d ife re n te s versões p o stu la u m a oposição fu n d a m e n ta l e n tr e Céu e T e rra e e n tre C u ltu ra e N atu reza, sendo o prim eiro te rm o de c ad a oposição re p re se n ta d o p o r O b à tá là e o segundo p o r O dúduw à; c a d a um deles, como verem os a d ia n te , sim boliza u m a m e ta d e (su p erio r- -C éu; in fe rio r-T e rra ) d a C ab aça U niversal. U m a seg u n d a oposição é p o stu la d a p e la se p a ra ç ão e n tre T e rra F irm e e Água. A ntes de con­ tin u a rm o s com n o ssa análise, convém co n clu ir o processo de C riação, com a se p aração e n tr e o Céu e a T e rra , que a n te s e ra m contíguos:

Nos tempos antigos Deus vivia perto dos homens, no céu, pouco acima de suas cabeças. Ele ficava tão perto que os ho­ mens se familiarizaram com ele. As crianças limpavam suas mãos engorduradas no céu, quando terminavam de comer. As mulheres procurando algum ingrediente extra para o jantar, arrancavam um pedaço do céu e o colocavam na panela. Em particular, as mulheres batiam contra o céu quando pilavam alim entos... Diz-se que havia uma mulher cujo pilão era muito longo, e sempre que ela pilava o milho o cabo de ma­ deira atingia Deus, que vivia logo acima do céu. Um dia ela deu uma pancada mais forte, atingindo a Deus no olho e ele, enfurecido, retirou-se à distância, onde permaneceu para sem­ pre (Parrinder, 1967, p. 34).

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V á ria s o u tra s versões existem , alg u m as a trib u in d o a sep aração e n tr e o Céu e T e rra à ação de m u lh eres, o u tra s a trib u in d o -a a ȧü, o u tra s a in d a a c ria n ças, como n a q u ela colhida por Dos S a n to s (1976), n a q u al ò ris à n lá , irrita d o com a desobediência e com a a titu d e i n ­ su ltu o sa de um m en in o ao qual h a v ia sido. proibido d e ix a r o Àiyé

(T erra) e p e n e tra r no Ò run (C éu), a tir a seu c a jad o em blem ático c o n tra o Àiyé, a fa s ta n d o -o p a ra sem pre do ò ru n . Com ta l separação, co m p leta-se a o rdem cosm ológica e resolve-se um problem a lógico, o d a relação e n tre os hom ens e os deuses. De fato, n ão é difícil p erceb er a se m elh an ça e n tre os m ito s Y oríibã-N ágô e o próprio m ito ju d a ic o -c ristã o , onde Adão e Eva são expulsos do P araíso.

Vim os que o m ito d a C riação p o stu la u m a o rdem p ela s e p a ra ­ ção dos c o n trá rio s, ò r is à n lá e O dúduw à opõem -se como o Céu se opõe à T e rra , o p rim eiro , “b ra n c o ” e d a d ire ita , o segundo (ou a seg u n d a, pois fre q ü e n te m e n te se re p re s e n ta como sendo m u lh e r) d a esq u erd a e associado à cor p re ta . N a re p re se n ta ç ã o do m u ndo, n a c a b a ç a u n iv ersal, ò ris à n lá corresponde à p a rte de cim a, ao Céu, e O d ù d u w à 'à de baixo, a T e rra. Devemos, to d av ia, fa z e r u m a obser­ vação com relação às c a teg o rias Céu e T e rra . A lgum as d a s versões d o s m ito s de C riação a p re se n ta d a s são trad u çõ e s, euro p eizad as se ja pelo a u to r que a s reg istro u , seja pelo próprio in fo rm a n te . D eve-se n o ta r que Céu n ã o é o P a ra íso d a m itologia ocid en tal, e que Céu e T e r r a n ã o se con fu n d em com os dom ínios em píricos que as p a la v ra s exprim em . T ra ta -s e , n ã o do céu atm o sférico m as do ò r u n : n ão da. t e r r a geográfica, m a s do Àiyé. T ra ta -s e , enfim , de cosm ologia, e não d e cosm ografia.

Segundo a cosm ologia Y orúbá-N agô, toda, a ex istên cia se p ro ­ cessa em dois p lan o s sim u ltân eo s: o do Àiyé — o m u n d o físico e o do ò r u n — o m u n d o m etafísico, que é como que rep licad o a ciclos cu rto s n o prim eiro .

O òrun é uma concepção abstrata e, portanto, não é con­ cebido como localizado em nenhuma das partes do mundo real. O òrun é um mundo paralelo ao mundo real que existe com todós os conteúdos deste. Cada indivíduo, cada árvore, cada animal, cada cidade, etc. possui um duplo espiritual abstrato no òrun. No òrun habitam, pois, todas as sortes de entidades sobrenaturais. . . . ao contrário, tudo o que existe no òrun tem sua ou suas representações materiais no àiyé (Dos Santos, 1976, p. 54).

Assim , o ru n n ã o se co n fu n d e com o céu -a tm o sfe ra , c h am ad o sánm ò. Este’ ú ltim o re s u lta d a se p a ra ç ão e n tre o ò ru n e o àiyé. O

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c é u -a tm o sfe ra é um terceiro elem ento, do p o n to de v ista lógico, ' p ro d u to de s m a oposição b in á ria , e como ta l tr a z im p lícita a noção de m ovim ento, de din âm ica. P o r su a vez, o àiyé não se confunde com Ilç, te rra . E sta ú ltim a n ão com preende a to ta lid a d e do àiyé, que tam b ém inclui o sán m ò ; por o u tro lado, o ò ru n o “doble a b s tra ­ to de todo o àiy é” envolve todo o àiyé. O ò ru n , conform e en sin a m os babaláw o (sacerdotes de Ifá ), é com posto de nove espaços, o u co m p artim en to s, que são, n a realid ad e, dois co n ju n to s de q u a tro es­ paços cada, um dos c o n ju n to s acim a d a te r r a e outro abaixo, m ais u m espaço in term ed iá rio , que coincide com o espaço te rra . Todo o ò ru n está ligado ao àiyé po r um p ilar, o òpó ò ru n oun àiyé. Este p ila r é re p re se n ta d o tam b é m p o r um a árv o re ou p o r um a co rren te

(cf. Dos S antos, 1976, cap. IV).

Em nossa, in te rp re ta ç ã o , o espaço in term ed iário , que coincide com o e sp a ç o -te rra , n ão se confunde com o àiyé, como u m todo, m as com p a rte s específicas deste. Conform e in d ica M orton W illiam s (1964, p. 243) a superfície d a te r r a divide-se em dois m u n d o s opostos, o m u ndo dom esticado, o rdenado, civilizado, isto é, o m u ndo d a c u ltu ra o àiyé em seu sen tid o e strito — e a flo resta , o cam po d ista n te , n ão cultivado, dom ínio das fe ra s e de seres so b re n a tu ra is. E sta m es­

m a oposição, note-se, é fu n d a m e n ta l n a e s tru tu ra sim bólica do “t e r ­ re iro ” n àgô b ah ian o . O co m p artim e n to do ò ru n que coincide com o e sp a ç o -te rra , co m p a rtim e n to pelo q u al se faz a ligação (e que p o r isso m esm o é u m c o n ju n to ím p ar, conform e an á lise a ser fe ita a d ia n te ), coincide com o espaço flo re sta e com o espaço sag rad o - - ritu a l, isto é, com os v ário s tem plos n a Á frica e com o “te rre iro ” no B rasil. T al in te rp re ta ç ã o é s u s te n ta d a p ela relação e n tre o p ila r cósmico, o òpó ò ru n o u n àiyé, eq uivalente à co rre n te pela qual des­

ceram os ò risà criadores, e o poste c e n tra l da casa -d e -c u lto , lo ca­ lizado p recisa m en te no cen tro do espaço sag rad o , e que “liga” o m u n d o dos hom ens ao m u ndo dos deuses. Em alg u m as v a ria n te s m ito ló g icas b rasileiras, a árvore, que equivale e s tru tu ra lm e n te ao p ila r e ao poste c e n tra l, e que é p la n ta d a em m u ito s “te rre iro s”, é concebida como te n d o u m a raiz im en sa que a tra v e ssa o .m undo p o r sob o oceano, a té a Á frica. E sta ú ltim a se tra n s fo rm a , em algum as concepções a fro -b ra sile ira s, no eq u iv alen te do ò ru n , e é p o r ela que os òrisà vêm ao “povo de s a n to ” brasileiro. Pois n ã o é a Á frica o lu g a r de origem dos a n te p a ssa d o s (que co n ta m com fo rte culto n a B a h ia ), o lu g a r de onde a c u ltu ra veio p a ra o B rasil, assim como

o ò ru n é o lu g a r de onde ela veio p a r a o m u n d o (Á frica) ?

Todavia, é a in d a necessário re s s a lta r que se a te r r a __ ilè __ em certos contextos sim boliza o àiyé, em ou tro s sim boliza o òrun,

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p a rtic u la rm e n te o dom ínio do ò ru n que corresponde aos m ortos, c h a ­ m ad o s ta n to pelo te rm o genérico a r à ò ru n , re fe re n te a todos os h a ­ b ita n te s do òrun, como pelo te rm o m ais específico a r à ilè. T a l concepção é p e rfe ita m e n te co eren te com o m ito, a n te s referido, da m o rte e divinização de Sangó.

No e n ta n to , " c o n c re ta m e n te ”, a oposição ò ru n /à iy é , é de fa to re p re s e n ta d a p o r u m a oposição c é u /te rra , no sen tid o de a c im a / abaixo: os òrisà desceram pela c o rre n te ; a m ão -d e -p ilão b a te u no céu a c im a; o poste c e n tra l do “te rre iro ” é v e rtic a l; ò ris à n lá é asso­ ciado ao céu e à p a rte superior d a cab aça u n iv ersal, e n q u a n to O dú- d uw à é associado à te r r a e à p a rte in ferio r d a m esm a c ab aça; em alg u n s m ito s que relacio n am o ò ru n ao àiyé, a ch u v a que fe rtiliz a o àiyé é, d e sc rita como cain d o do céu (cí. Dos S an to s, 1976, p. 65); ò s à lá (u m a d as qualid ad es de ò ris à n lá ) e s tá associado ao a r, e n ­ q u a n to que O düduw à e stá associado à te r r a (cf. Dos S an to s, 1976, p. 59).

T em os e n tã o o estab elecim en to de u m a p rim e ira oposição cós­ m ica, onde:

ò r ís à n l á: q r u n: Cé u: Ac im a: Br a n c o: Dir e it a: Ma s c u l in o Ód ú d u w à: à i y é: Terra: Ab a ix o: Pr e t o: Esq u er d a: Fe m in in o

M as, essa oposição c h eg a a se estabelecer, n a n a r r a tiv a m ítica, g ra ç a s à em briaguez de ò riç à n lá . Não se t r a t a de sim ples e s tr a ta ­ g em a do m y th m a k e r, e n ã o se t r a t a de u m a em briaguez q u alquer. E sta u n id a d e do m ito de C riação exige alg u m a consideração. Em p rim e iro lu g ar, o bserva-se u m a inversão, re la c io n a d a ao símbolo “p alm eira ". C onform e verem os m ais a d ia n te , a p a lm e ira “é” ò r i ­

s à n lá , assim como ela ta m b é m “é” Ifá . Ao invés de p la n ta r a p a l­ m e ira n a T e rra , ou no àiyé, ò r is à n lá “colhe” d a p a lm e ira do òrun. Se ad m itirm o s, como fic a rá claro no d e co rrer de nossa an álise, que a p a lm e ira sim boliza a c u ltu ra , tem os que Ç risà n lá “deveria te r criado ta n to a n a tu re z a q u a n to a c u ltu ra , pois lhe fo ram dados os elem en to s p a r a a criaçã o n ã o só d a T e rra , m as ig u alm en te dos h o ­ m ens. Isto é, dev eria te r criado o àiyé em seu sentido m ais restrito , de m u n d o civilizado, e n ã o só em seu sentido m ais lato , de p lan o de ex istê n cia oposto ao òrun. P o r isso, ò r is à n lá recebeu lesm as, u m de seus com ponentes sim bólicos fu n d a m e n ta is. O ra, lesm as são a re ­ p re se n ta ç ão do “san g u e b ra n c o ” a n im al, do esperm a. O esperm a, “san g u e b ra n c o ”, n ão é to d av ia a p e n a s m a té ria re p ro d u tiv a bioló­ gica; é tam b ém , assim como o “sangue v erm elh o ” e o san g u e “p re to ”

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u m a s u b stâ n c ia que co n tém a essencialidade do ser, se ja an im al, v eg etal ou m in e ral. C onform e m o stra Dos S a n to s (1976, cap. II I ) , os trê s san g u es são p o rta d o re s de um princípio básico expresso pelo te rm o àse. O àse é o “p oder que p e rm ite que a existência seja, isto é, que a ex istên cia a d v e n h a ” (cf. Dos Santos, 1976, p. 36j. T ra ta -s e d e um conceito e x tre m a m e n te complexo, ao qual teremoa de retor­

n a r em o utros p o n to s de nossa a n á lise . Por ora basta observar que tal àse

está contido numa grande variedade de elem entos... nas subs­ tâncias essenciais de cada um dos seres. . . que compõem o

mundo. Os elementos portadores de podem ser grupados

em três categorias: 1. “sangue vermelho” ; 2. “sangue branco"; 3. “sangue preto" (Dos Santos, 1976, p. 41).

P o rta n to , ò ris à n lá , n o invés de lev ar “sa n g u e b ra n c o ” ao àiyé, co n su m iu “san g u e b ra n c o ” no òrun. Ao invés de tr a n s m itir àse a n i­ m a l, in g eriu àçe vegetal. Podem os c o n tra s ta r este m ito com outro,

onde ò r is à n lá d á d e b e b e r a O dúduw á “á g u a do igbin (le sm a )” (cf. Dos S an to s, 1976, p. 111). B ebendo o “sangue b ra n c o ” d a palm eira, isto é, seu vinho, g e ra -se u m a situ aç ão de im p o tên cia cria d o ra , e d e sta situ ação em erge a oposição e n tre a n a tu r e z a e os hom ens, O düduw á e ò ris à n lá . A dem ais, ao c o m eter ta l ato, ò r is à n lá bebe de • • 7 • seu p ró p rio sangue, isto é, com ete u m a ação endogâm ica, pois ele é p a re n te d a p alm eira. E xp ressa-se aqui o u tro p rincípio fu n d a m e n ta l. P odem os re la c io n a r sim bolicam ente a tro c a m a trim o n ia l com o s a ­ crifício, n a m ed id a em que am bos co n stitu em reciprocidade. T a n to o sacrifício r itu a l q u an to o in te rc u rso sexual são a to s de “com er” (o que, aliás, é claro, q u a n to ao a to sexual, n a p ró p ria linguagem b rasile ira e em v á ria s o u tra s). P o r outro lado, é pelo sacrifício que se faz a in te ra ç ã o p o r recip ro cid ad e e n tre o àiyé e o ò ru n , possi­ b ilita n d o a circu lação d e àçç. C onform e se vê no m ito, ò ris à n lá n ã o realiza o sacrifício devido e bebe seu próprio sangue: de um lado, to r n a im possível a tro c a de àse e n tre os dois planos d a existência; d e outro, to rn a im possível a tro c a de àse e n tre o s e r m asculino (sangue b ra n c o -e sp e rm a ) e o se r fem inino (sangue v erm elh o -m en s- tru a ç ã o ). F in alm en te, é preciso que, por necessidade lógica, se ja es­ tab elecid a, prim eiro, a oposição e n tre o àiyé e o òrun, p a ra que depois se postule su a in terd e p en d ên cia.

A oposição e n tre os dois plan o s é a in d a p o stu lad a pelo a f a s ta ­ m en to e n tre am bos. T al a fa s ta m e n to é provocado, seja por m ulheres, s e ja po r c ria n ças, se ja p o r Èsú. Dissemos a n te s que ta l sep aração resolve um p roblem a lógico, pois os hom ens n ão podem e s ta r co n tí­

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guos aos deuses, n ão podem c o n fu n d ir-se com estes. T al sep aração te m a ver, n a tu ra lm e n te , com o sentido m esm o do r itu a l religioso, e d a p ró p ria religião. É som ente a tra v é s do sagrado, do ritu a l, que deve se p ro cessar a com unicação e n tre os h u m a n o s c os deuses. O a fa s ta m e n to do òrun, e n tã o , “põe” a religião. Mas, se ta l sep aração resp o n d e a u m a im posição ideo-lógica, ela c ria ta m b é m um p a r a ­ doxo:

Qualquer descrição do mundo deve discriminar categorias na forma “P é o que não-P não é ” . . . Os atributos do outro mundo são necessariamente aqueles que não são os deste m un­ d o ... mas essa ordenação lógica de idéias tem conseqüências desconcertantes — Deus passa a pertencer ao outro mundo. O '•problema" central da religião é então o de restabelecer uma espécie de ponte entre o homem e Deus (Leach, 1967, p. 3).

A p o n te, como verem os a d ia n te , é o p ró p rio sistem a de I f á ou, m a is c o rre ta m en te , o siste m a Ifá-E su .

O m ito esclarece que a p roxim idade e n tre ò ru n e àiyé tr a z “p o ­ lu iç ã o ”, no sentido em que e s ta noção é explorada te o ric a m e n te p o r D ouglas (1970): m ãos su ja s e o u ltra p a s s a r lim ites são categ o rias sim bólicas equivalentes. A dem ais, as m u lh eres “com em ” pedaços do ò ru n , quando os h u m an o s deveriam “d a r de co m er” (sacrifício -ali- m e n to ) aos seres do òrun. A poluição e a violação d as in terd içõ es s ã o provocadas p o r seres am bíguos, isto é, por seres lim in ais: m u ­

lh e re s, cria n ç a s e Esu.

T a l noção de am b ig ü id ad e nos lev a à seg u n d a ordem de oposi­ ção. Ao descerem à T erra , os criad o res realizam a se p aração e n tre t e r r a e ág u a. Em a lg u m a s versões, a n te s d a C riação, ex istia a p e n a s á g u a ; em o u tra s, ex istia lam a, ou u m a superficie p a n ta n o sa . A água, em alg u m as versões do m odelo cosmológico é u m dom inio lim inal, ■o dom ínio dos m ortos, que corresponde à lin h a do horizonte, o lu g a r onde céu e t e r r a se tocam , conform e concepção v ig en te em certos n úcleos n à g ó d a B a h ia . A lam a, p o r seu lado, é u m a m is tu ra de dom ínios opostos — te r r a e ág u a. T a n to a ág u a de u m a versão q u a n to a la m a de o u tra são e s tru tu ra lm e n te equivalentes: lim in a ri- d a d e e am bigüidade. É necessário, p o rta n to , “p a ra que o m undo se to m e p ró p rio p a ra os h o m e n s”, isto é, p a r a que se to rn e p ró p rio p a r a a lógica, que se d esfaça a am bigüidade. E assim , se p a ra -se a ág u a d a t e r r a em dois opostos co m plem entares, freq ü e n te m e n te expressos ■como dois “sa n g u es” (cf. Dos S antos, 1976). Mas, se opostos e com ­ p le m e n ta re s, deve h a v e r m ediação. Se é n ecessária a m ed iação e n tre

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sá ria a m ediação e n tr e o dom ínio das á g u as e d a te rra . Ê cntfio que su rg em alg u n s elem en to s sim bólicos explicativos.

A te rra , como se viu nos m itos, é c o n tid a em u m a concha cio caram u jo . T al co n c h a sim boliza, n a c u ltu ra Y orúbá-N àgó. o p r in ­ cípio do crescim ento, d a ex p an são : lem brem os que a C riação se deu p re c isa m e n te em Ué Ifè, a “casa que se e x p a n d e ”. Tal concha, a d e ­

m ais, é “p r e ta ”, em oposição à lesm a-sêm en '‘b r a n c a ’’, pois a te r r a - - n a tu re z a se opõe ao h o m e m -c u ltu ra . Mas, no processo in terv êm dois seres: o galo (ou g a lin h a ) de cinco dedos, e o cam aleão, am bos a m ­ bíguos e anôm alos, m ediadores que são, segundo a an álise de L eaeh

(1967; m en cio n ad a a tr á s (cí. p. 25). De fato, tr a ta - s e de um galo. ave que n ão voa e que, adem ais, possui cinco dedos, c a ra c teriz a n d o - -se, pois, pela im p arid ad e, o que, em c u ltu ra Y orüba-N àgô, sig n i­ fica am bigüidade e m ovim ento, este ú ltim o oposto à noção de o rd em - -im obilidade. E tem os ta m b é m o cam aleão, u m rép til, categ o ria zooló­ gica p a rtic u la rm e n te am bígua, pois os ré p te is se a r r a s ta m (cf. D ou­ glas, 1970), e m ais do que isso, um ré p til que m u d a de cor. Temos aqui dois significados: o cam aleão ex p e rim e n ta a te r r a ré c e m -c ria - d a ; sob este ân g u lo ele é “u sa d o ” pelo m y th m a k e r p o r se r um a n i­ m a l conhecido p o r seu m odo cuidadoso de c a m in h a r. O cam aleão é u m m ed iad o r; sob este o u tro ângulo ele é “u sad o ” por se r am bíguo — m u d a n d o de cor, ele é ao m esm o tem po “P e n ã o -P ” 4. Tem os e n tão , n o processo d a C riação, ta n to os “deuses e n c a rn a d o s” qu an to os seres anôm alos; te m o s as oposições e a s m ediações. Em resum o, a C riação consiste no estab elecim en to de u m a ordem lógica, de u m a sep a ração de co n trário s, de u m a im posição da c u ltu ra o rd e n ad o ra p o r sobre um a " re a lid a d e ” caótica. O pondo-se o ò ru n ao àiyé; a á g u a à te r r a ; a n a tu re z a à c u ltu ra ; desfazendo-se a “m is tu ra ”, pos­ tu la -s e a c u ltu ra e n q u a n to um a co n stru ção ideo-lógica. Os m itos de C riação, p o r o u tro lado, construídos p o r sobre um siste m a de oposi­ ções b in á ria s, re su lta m n u m a e s tru tu ra de q u a tro elem en to s opostos: céu, te rr a , ág u a, te rra -fir m e . “Q u a tro ”, como vimos, que se desdobra em "dezesseis”, é tam b é m um com ponente do m ito. De um lado t e ­ m os u m a ‘ e s tru tu r a q u á d ru p la ” ; de outro, tem os u m a progressão 2 — 4 — 16 e fin a lm e n te , u m a p ostulação d a ordem . T ais com po­ n e n te s são c e n tra is à conexão e n tre a cosm ologia e a ad iv in h ação , que co n stitu em , a nosso ver, tran sfo rm a ç õ es de u m a m a triz única.

* Note-se que entre os Pon. as noviças aos cultos de vodum, correspon­ dentes aos òri§à Yorübá. durante seu período de iniciação, quando sc encontram em estado limirial. betivixted and between, são consideradas mutantes. “esposas do camaleão” e somente falam Yorübá, para os Pon (assim como para os Nàgô do B rasil), uma linguagem sagrada.

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