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Primeiras reflexões para a compreensão do povo brasileiro

O texto que ora se inicia é resultado de uma inquietação e de uma curiosidade que desde sempre nos assaltaram. A reflexão sobre o ser brasileiro, sobre a sua indianidade, sobre a sua branquitude e sobre a negritude que o complementa e enforma, enfim, a reflexão sobre o ser brasileiro é o móbil de um conjunto de reflexões que pretendemos trazer a público.

Quanto às suas motivações, podemos dizer que, dadas as nossas origens e ao desassossego que as origens provocam, quaisquer que sejam elas, por exemplo, o desassossego provocado pela origem máxima - a do ser -, o problema que sempre buscamos foi o da sua compreensão; ora especulando sobre os problemas da Ontologia; ora estudando o pensamento daqueles que, ao longo da sua vida, construíram o pensamento brasileiro, como é o caso de Sílvio Romero, autor brasileiro de meados do século XIX, nas suas pesquisas sobre a formação do povo do Brasil; ora refletindo sobre os índios da Amazônia, sua mitologia e cosmologia, das quais consideramos ser necessário, sobre as mesmas, sérias e aprofundadas reflexões.

Portanto, a curiosidade e o desejo de compreender as origens conduziram a nossa reflexão e o nosso projeto acadêmico, que iniciou com a defesa da Dissertação de Mestrado, cujo teor é a análise da teoria da formação do povo brasileiro de Sílvio Romero. A sua Filosofia da História é um dos primeiros estudos de um pensador do Brasil sobre a formação doserbrasileiro.

Este trabalho deixou patente que era necessário continuar. Ficamos com a idéia de que os filósofos brasileiros ainda não reservaram a necessária e merecida atenção à reflexão sobre a história do seu país e do seu povo. A nosso ver, estes dois elementos constituem um manancial imensurável que precisa ser trabalhado e apreendido. O bom senso precisa fazer deles seu objeto.

Em todo caso, isto não significa que esta atitude ainda não tenha sido tomada. Nos últimos tempos, temos visto grandes iniciativas neste sentido. São exemplos as investigações dos Institutos Brasileiro de Filosofia, Luso-Brasileiro de Filosofia, dos estudos sobre a América Latina e, particularmente, sobre o Brasil em vários países da Europa e nos Estados Unidos. Hoje, refletir sobre o povo brasileiro não pode passar ao largo do pensar sobre o povo português e sobre os países que formam o orbe, dado que a humanidade foi dada a conhecer na sua totalidade e, a partir de então, a pretensão da universalidade só pode ser satisfeita se a totalidade for o princípio e o final da reflexão.

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1 - Georg Wilhelm Friedrich Hegel.Filosofia da história. Tradução de Maria Rodrigues e Hans Harden. Brasília: Editora Universidade de Brasília. 1995.

2 - Idem. Ibidem. P. 17. 3 - Idem. Ibidem. P. 39.

4 - António José Saraiva. O crepúsculo da idade Média em Portugal. 5ª Edição. Lisboa: Gradiva – Publicações, Lda. 1998. P. 7.

poesia, dentre outros). No nosso caso, enfatizamos a Filosofia da História, principalmente. Quanto a esta, o século XIX registra o pensamento de um dos filósofos que marcou uma transformação radical no pensamento ocidental. Trata-se de Georg Wilhelm Friedrich Hegel, cuja obra que particularmente nos interessa é a sua Filosofia da História1.Nesta obra, o

filósofo tem como objetivo refletir sobre a filosofia da história universal, mais propriamente, apresentar o próprio conteúdo da história universal. Apresenta, então, três formas de encarar a história: 1) história original; 2) história refletida; 3) e, finalmente, história filosófica. Destas formas, a que nos interessa é a terceira, onde Hegel pretende demonstrar que o único pensamento que a filosofia aporta é o da contemplação da história, é a simples idéia de que a razão governa o mundo, e que, portanto, a história universal é também um processo racional2.

Destarte, o objeto da história universal situa-se no campo espiritual e no entendimento do desenvolvimento do espírito. Isto não exclui a percepção de que a Natureza exerce influência no desenvolvimento da História, mas implica que esse próprio desenvolvimento é garantido ao espírito, pois este e o seu desenvolvimento são o substancial. Não precisamos ir muito longe para alcançarmos que esta História Universal exige, no palco da sua realização, um povo previamente concebido e polido pelo próprio espírito. Assim, a hipótese de Hegel ganharia a sua concretude na realização do Estado. E, desta forma, somente os povos que alcançaram a união da vontade subjetiva e da razão, ou seja, o todo moral, o Estado, que é a realidade na qual o indivíduo tem de desfrutar a sua liberdade, como saber, crença, e vontade do universal3 seriam

privilegiados por manifestarem a vontade doespírito absoluto.

Esses povos são os povos aptos para figurarem e concretizarem uma experiência que se lhes antecede e se lhes superpõe, dado que a racionalidade da história foge às suas intenções, ultrapassando-os e conferindo-lhes unicamente o papel de personagens concretos para que a Idéia se realize. Logo, os povos conhecidos no final do século XV, que ainda não estavam burilados para que o espírito, neles, se realizasse, estariam fora dahistória universal.

Se, por um lado, aqueles povos não estariam predestinados para a encarnação do espírito, os seus descobridores, no caso da porção de terra que viria a formar o Brasil, foram os primeiros a consolidarem-se como Estado e Nação. Como informa Saraiva4, no final do reinado de D.

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5 - A.H. de Oliveira Marques. História de Portugal – Volume I - Das Origens ao Renascimento. 13ª Edição. Lisboa: Editorial Presença, 1997. P. 197.

6 - Leopoldo Zea, (compilador). El descubrimiento de América y la universalización de la Historia, in El descubrimiento de América y su impacto en la historia. Tradução Livre. México: Instituto Panamericano de Geografía e Historia. Fondo de Cultura Económica. 1991. P. 5.

7 - Emmanuel Kant. Idea de una historia universal en sentido cosmopolita, in Filosofía de la historia. Prólogo e Tradução de Eugenio Ímaz. Tradução Livre para o Português. México: Fondo de Cultura Económica. Colección Popular. 1992.

8 -Georg Wilhelm Friedrich Hegel.Filosofia da história. Op. Cit.

constituída. Existe uma corte em Lisboa, uma capital do território; o crescimento do Reino estabiliza-se do Minho à costa do Algarve. O mesmo é dito por Marques: Quando a crise adveio, encontrou já um Estado bem organizado, razoavelmente centralizado em torno do rei e economicamente harmonioso. O Estado e a Nação de Portugal substituíam-se assim ao Estado Portucalense, fundado em finais do século XI5. Nesta configuração, o Estado hegeliano vê-se já instalado. É

por isso que a vivência desta organização política e social foi transportada com os conquistadores que integraram à Europa a América, ou, pelo menos, ela seria a norteadora dos juízos sobre aqueles povos e à sua organização. Os conquistadores do futuro Brasil não expressavam mais do que uma visão eurocentrista, cujo representante máximo é Hegel.

Neste sentido, os demais europeus não poderiam ter sido diferentes -Hegel empreende a universalização da História a partir da Europa como centro irradiador. Podemos ver que quando Colón atinge a América defronta-se com povos dos quais não consegue apreender a diversidade e que, portanto, a única forma de reconhecê-los seria recorrer ao seu imaginário, ignorando as histórias regionais, para ele e para a Europa,

desconhecidas. Como diz Zea, o 12 de outubro de 1492 marca a

conquista total da terra e a universalização da história6. Porém, a

universalização proposta por Zea não segue o cânon hegeliano, portanto,

não é vista como a encarnação do espírito absoluto, mas como a

composição total de todas as partes da humanidade, com sua diversidade inicialmente impossível de ser compreendida e com a mesma universalização iniciada na península Ibérica, em 711, mas que não é lembrada quando se trata do continente Americano. Neste continente, a universalização se faz a partir da integração racial e cultural de todos os homens e povos sem discriminação alguma, o que não deveria ser estranho aos europeus e muito menos aos povos da península Ibérica.

Conforme Zea, nesta proposta não se pode dar destaque à noção de progresso, o que não deixa incólume a noção continuidade histórica ou marcha natural lenta mas irrefrangível da história, como encontramos em Kant7 e no seu expoente máximo Hegel8. Na obra, Ideia de uma História

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algumaintenção da Natureza, para que, valendo-se dela, seja-lhe possível traçar uma história de criaturas semelhantes, que procedem sem nenhum plano próprio, conforme, sem embargo, a um determinado plano da Natureza. Kant busca encontrar os fios condutores desta história e, naturalmente, como Hegel, após ele, somente pode vislumbrá-los em sociedades fundadas na História -, que criou e conduz os povos europeus. Somente após a libertação do homem da Natureza e da sua inserção no mundo da Cultura, sinônimo de vida social e de possibilidade de formação do homem moral, que funda e compreende o Estado, este, significando o amadurecimento dos povos organizados segundo um código civil, pode o homem atingir a perfeição, conforme doação e exigência da própria Natureza.

A inserção do homem na cultura, melhor dizendo, a realização da cultura e da vida social deve-se unicamente a uma doação da própria Natureza: a razão -, elemento de aperfeiçoamento constante, conduz o homem, que possui como natureza a condição de ilustrar-se, à perfeição. Paradoxalmente, ela afasta-o da Natureza, ao mesmo tempo em que, neste afastamento promove o seu aperfeiçoamento: afastar-se nada mais é do que realizar o fim ao qual ele se destina, ou seja, cumprir um plano secreto da própria Natureza, que é possibilitado na sociedade civil e que culmina na realização da sua liberdade. Vê-se em Kant, como veremos em Hegel posteriormente, a supremacia da consciência, somente esta permissora da realização exigida pela Natureza. O homem é incubido de realizar aquilo que para ele próprio estava oculto e do qual não pode esquivar-se. Ele existe para cumprir um fim: realizar-se enquanto ser livre – desenvolver todas as potencialidades que a Natureza, intencionalmente, presenteou-lhe. Sua essência é liberdade ou realização de si como ser moral, o que somente numa sociedade civil poder-se-á concretizar. Entretanto, Kant acena para a possibilidade de povos sem história integrarem-se nesta história, que marcha em sentido cosmopolita, desde que, como aconteceu com os judeus, submetam-se às leis dos povos que já se ilustraram.

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9 - Cristóbal Colón, Los cuatro viajes. Testamento. Edición de Consuelo Varela. Tradução Livre. Madrid: El Libro de Bolsillo. Alianza Editorial. 1996. P. 62.

10 -Herder.Ideias para a filosofia da história da humanidade, apud Patrick Gardner, inTeorias da história. Tradução e Prefácio de Vítor Matos e Sá. 3ª Edição. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian. 1984. P. 43.

11 - Idem. Ibidem.

Eles andavam todos nus como sua mãe os pariu, e também as mulheres, ainda que não tenha visto mais de uma, bastante moça, e todos os que eu vi eram todos mancebos, que nenhum vi com a idade de mais de trinta anos, muito bem feitos, de formosos corpos e muito boas caras, os cabelos grossos quase como cerdas de rabo de cavalo e curtos9.

Então, põe-se um problema: como compreender esses povos, estigmatizados como povos sem história e, portanto, sem lugar na História? Começamos, buscando uma solução, por contrapor a Kant e a Hegel um filósofo que lhes é contemporâneo. Trata-se de Herder, este filósofo mostra-nos a fragilidade de muitas das ideias do seu tempo, por isso, ele pode iniciar a ruína do mito depovos sem história.

Herder, como se levantasse a voz acima de um coro de vozes uníssonas, interroga a quantos possam ouvi-lo: Qual a lei fundamental que observamos em todos os grandes fenómenos da História?Ele próprio responde:(...) por toda a parte, na Terra, acontece tudo quanto nela pode acontecer, em parte de acordo com a situação e as necessidades do lugar, em parte de acordo com as circunstâncias e as condições da época, em parte de acordo com o carácter nato ou adquirido dos povos10.

Pergunta e resposta situam-nos em lugares pontuais e incentivam-nos a determinar diferentes lugares, diferentes épocas e diferentes povos com seus peculiares comportamentos, hábitos e atitudes e, consequentemente, com as suas várias histórias. Este chamamento também nos obriga a parar e a pensar no que ouvíamos das vozes dos seus tempos.

A partir do dito acima, é procedente dizermos que Herder assumia uma posição contrária à de Kant ou à de Hegel? Como resposta geral, podemos dizer que, sem dúvida, a resposta é sim. Utilizando as palavras do autor: As forças vivas do homem são a mola da história humana, e como o homem tem a sua origem a partir de, e dentro de uma raça, a sua formação, educação e modo de pensar são desde logo genéticos11.

Nas mãos do homem está o que-fazer da sua história. Ele,

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12 -Idem. Ibidem. P. 46. 13 -Idem. Ibidem. P. 47.

14 -Seguimos a perspectiva de Sérgio Buarque de Holanda, quando afirma quea maior missão histórica dos portugueses foi a conquista do trópico. Sérgio Buarque de Holanda, Raízes do Brasil. Lisboa: Gradiva. Abril de 2000. P. 27.

15 - Idem. Ibidem. P. 49.

de toda a região por onde temos andado, vemos como é transitório toda a obra humana, e até mesmo quão opressiva vem a tornar-se a melhor das instituições ao fim de algumas gerações12.

E o filósofo conclui que A História da humanidade não é mais do que uma história universal das forças das ações e das tendências humanas, subordinadas ao lugar e à época13. Portanto, diferentes forças

e ações agem em todos os lugares, nas várias culturas, o que nos permite distingui-las.

No pensar deste filósofo encontramos uma das motivações destas reflexões: o questionamento do valor ou da contribuição dos povos sem história (as tribos indígenas do Brasil e as africanas) para a construção, juntamente com os europeus, particularmente os portugueses, numa labuta extraordinária no seu tempo e para todo o sempre, de um dos maiores feitos daquele povo e do ocidente. Falamos do Brasil – uma construção que não seria possível, se algo diferente do que conheciam não os motivasse14.

Então, Herder, contemporâneo de idéias como, desígnios ocultos e particulares de um esquema de coisas que nos é desconhecido, ou, de influências de demônios invisíveis, astúcias da razão, para explicar os fatos da História, liberta-nos para a compreensão de que não há uma história universal homogênea, lisa, uníssona, nem povos privilegiados, como o pretendiam, por exemplo, Kant e Hegel, mas povos com suas próprias vivências, com seu próprioque-fazer.

E podemos dizer que as idéias do filósofo levam-nos a afirmações que ganham maior amplitude quando, por exemplo, diz: O que é verdade em relação a um povo, é igualmente válido em relação a vários povos ligados entre si. Eles permanecem ligados por circunstâncias de tempo e de lugar, influenciam-se uns aos outros, de acordo com a combinação das suas forças activas15. Desta feita, é possível falar-se de uma história

dos povos sem história ou fazermos narrativas, quando falamos dos inúmeros povos, das inúmeras línguas, das culturas diferenciadas, que formavam a costa brasileira à época da chegada de Cabral, no final do século XV. Esta e as reflexões que se seguem, pretendem fazer um esboço, uma re-construção deste momento, para falar de um Brasil que medrava no século XVI.

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16 - Idem. Ibidem. 17 - Idem. Ibidem. P. 56.

natural do fazer humano, sem pensar em nenhuma intervenção sobrenatural (desviamos da interpretação dos Incas, que acreditaram na surdez e na mudez dos deuses, quando se viram dizimados pelos espanhóis), dado que o único caminho possível para um herdeiro do pensamento ocidental é seguir os fios condutores deste pensamento, e conformarmo-nos com a idéia de que A cultura de um povo é a flor da sua existência, pela qual ela se revela de uma forma deveras agradável, mas transitória16, quando falamos dos Incas, Aztecas e Maias, porém,

podemos fazer esta afirmação, quando falamos dos Tupinambás ou dos Tupinikins?Tendo murchado esta flor, vemos o declínio daquele que nela se manifestava, mas, quando não sabemos se desabrochou ou não a explicação deve ser outra. A História mostra-nos o declínio após o apogeu daqueles que sempre aspiraram pela perfeição. Quando ela é atingida, vive-se a agonia de tê-la alcançado, segundo o que nos demonstra Herder e que podemos aceitar para algumas culturas e em algumas situações, como nos restam exemplos na cultura ocidental e, com restrições, naAzteca, naInca e na Maia.

No pensamento deste filósofo, consequentemente, não há lugar para uma teoria doprogresso, pois em todos os lugares apenas vê destruição e nenhum indicador de que as condições futuras seriam melhores. Podemos ver que, no seu tempo, noções que até hoje sustentam nossa caminhada já mostravam fragilidades. São reflexões como as de Herder que permitem as conjecturas e que abrem vias paralelas, desconhecidas ou menos conhecidas, mas que podem também ser viáveis. Porém, elas já trazem os seus limites: Como, porém, toda perfeição ordenadora e beleza de razão e de humanismo se situam entre dois extremos, também a forma mais bela de razão e de humanismo tinha de encontrar necessariamente o seu lugar nesta zona média temperada que é a nossa17. O filósofo aponta o

humanismo como a finalidade da natureza humana. Ele mostra o homem com capacidade e poder para saber aquilo que deve – análise das leis da natureza a que as ações estão subordinadas. É demonstrado que esta capacidade é adquirida através de uma evolução gradual, maximizada na Europa do seu tempo. Tudo o que falamos acima se vê abalado, mas permanecem as lacunas que, quando preenchidas, inspiram um pensar outro.

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18 -Idem. Ibidem. P. 58.

19 - Podemos ver enunciada esta idéia no fragmento de Anaximandro (110) ... uma outra natureza ‘apeiron’, de que provêm todos os céus e mundos neles contidos. E a fonte da geração das coisas que existem é aquela em que a destruição também se verifica “segundo a necessidade; pois pagam castigo e retribuição umas às outras, pela sua injustiça, de acordo com o decreto do Tempo”, sendo assim que ele se exprime, em termos assaz poéticos. G. S. Kirk; J. E. Raven; M. Schofield, Os filósofos pré-socráticos. Tradução de Carlos Alberto Louro Fonseca. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian. Outubro de 1994. P. 117.

pelos seus povos. Ao mesmo tempo em que nos possibilitam extrair algo muito importante: falar dahistória dos povos sem história por outras vias, ampliando ou redefinindo o conceito de História, servindo-nos de outros filósofos, porque ela nos deixa claro que ninguém pode falar em nome da humanidade de maneira definitiva e, ainda que o filósofo seja o arauto do a-temporal e do universal, as suas verdades não são absolutas, aliás, não é isto o que importa.

Citando pela última vez Herder, reconhecemos a sua boa vontade e o seu otimismo em relação a outros povos, quando nos diz: Não é utopia esperar que por toda a parte em que haja homens venha a haver futuramente homens racionais, justos e felizes: felizes não só devido à sua própria razão, mas também à razão comum de toda a raça irmã18.

Destarte, há o reconhecimento possível da humanidade de todos os homens, mas, infelizmente, não o reconhecimento de culturas e pensares diferentes que culminariam noutros seres, talvez, essa ousadia não fosse jamais possível e impossível ser tolerada, porque abalaria a certeza de que todos os homens são iguais, ou que todos sãohomens.

Assim, estabelecidos os limites de alguns pensadores fundamentais na reflexão da História, sem esquecer que estes limites serão sempre pontos de partida, resta-nos procurar noutras reflexões aquelas que podem satisfazer as nossas necessidades. É nesta perspectiva que buscamos Nietzsche, basicamente a sua doutrina do eterno retorno, dado que a temporalidade é um dos problemas que deve ser levantado nestas reflexões.

No encontro entre europeus e ameríndios, dentre outros

acontecimentos, um o marcou indelevelmente: o choque entre duas noções de temporalidade – a européia, marcada pela idéia da linearidade do tempo, bebida na fonte do cristianismo; a ameríndia, marcada pela

idéia da circularidade do tempo, uma idéia comum ao paganismo.

Consequentemente, duas concepções de história apresentam-se: uma conduzida pela idéia da linearidade – passado, presente e futuro; outra, conduzida pela idéia dacircularidade – a observação de que tudo que um dia nasceu há de morrer19 infinitas vezes, como o nascer e o morrer do

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20 - Karl Löwith, Nietzsche e renascimento da teoria do eterno retorno, Apêndice II, in O sentido da história.Tradução de Maria Georgina Segurado. Lisboa: Edições 70, Lda. Maio de 1991. P. 217.

21 -Friedrich Nietzsche,La gaya scienza. Tradução de Henri Albert, inŒuvres. Tradução Livre para o Português. Paris: Éditions Robert Laffont, S.A. 1993. P. 75.

22 -Idem.Ibidem. Aforismo nº 341. P. 202. 23 -Idem.Aforismo nº 342. P. 202-203.

já foi dada, basta que consideremos os escritos dos padres da Companhia de Jesus, ou, por exemplo, Bartolomé de las Casas, Todorov, Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda, Claude Lévi-Strauss, dentre muitos outros, entretanto, pretendemos retomar a questão com o intuito de avivar um momento distante, porém, atual.

Para compreendermos a idéia dacircularidade do tempo, recorremos a Nietzsche – a doutrina doeterno retorno. Löwith, na obraNietzsche e o renascimento da teoria do eterno retorno, afirma que o evangelho do eterno retorno de Nietzsche é um obstáculo e um absurdo para todos aqueles que ainda acreditam na religião do progresso20. Essa doutrina é a

chave da filosofia de Nietzsche, inclusive, de acordo com ele e referido por Löwith, ela ilumina, também, o seu significado histórico, tendo em vista que faz reviver a polêmica entre Cristianismo e Paganismo.

A doutrina se anuncia desde os primeiros escritos de Nietzsche, mas ela apresenta-se com bastante consistência em A gaia ciência, parágrafo 34 – História abscôndita – onde Nietzsche diz que não é possível prever tudo o que será a história, e que o passado, talvez, ainda permaneça totalmente inexplorado. Forças retroativas, muitas, ainda são necessárias21. Aqui, não há lugar para a teoria do progresso nem

tampouco para, na história, se ver a realizaçao doespírito absoluto.

Nietzsche oferece-nos uma abertura essencial: se o passado ainda não foi explorado, a história ainda está por se fazer e, se assim é, 1492 em diante ainda não foi revelado, como todo o resto. Então, todo começo é sempre um novo começo; toda palavra é sempre uma nova palavra.

Seguindo o aforismo 34 e em articulação com o mesmo, apresenta-se o 341 – O fardo mais pesado22 – onde Nietzsche, através de um daímõn,

anuncia o eterno retorno. Proclama que na vida de cada um nada

acontecerá de novo, que tudo retornará infinitas vezes, sempre o mesmo, assim como a repetição infinda se dará para os mais ínfimos animais e para tudo o quanto exista.

No aforismo 342 aparece pela primeira vez a figura de Zaratustra23,

que se dirigindo ao sol agradece-lhe os dez anos nos quais lhe fez companhia e engrandeceu-lhe o espírito, na sua solidão, acima dos

homens, nas montanhas. Este agradecimento é um louvor ao eterno

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24 - Friedriche Nietzsche, Ainsi parlait Zarathoustra (Un livre pour tous et pour personne), Tradução do Alemão de Henri Albert, in Œuvres. Tradução Livre para o Português. Paris : Éditions Robert Laffont, S.A. 1993. P. 289.

25 - Quanto à doutrina do eterno retorno, entendemos que devemos fazer a sua lapidação para depois, então, afirmá-la entre os ameríndios. Este trabalho passa pela análise de obras produzidas no século XVI, legadas pelos europeus que estiveram no Brasil, e também, por obras de autores que viveram a conquista dos países vizinhos e, finalmente, pelo discurso, hoje, dos próprios índios.

26 -Michel Foucault,Les mots et les choses(Une archéologie des sciences humaines). Tradução Livre. Paris: Éditions Gallimard. 1998, P. 7.

27 -Idem. Ibidem. P.11.

sua águia e sua serpente. Esse aforismo, mais tarde, iria constituir o Prólogo de Assim falou Zaratustra24. A doutrina do eterno retorno, como

já o dissemos, chave da filosofia nietzscheana, repete-se a partir de então, intensamente, em todas as suas obras.

É, com restrições, esta a concepção de tempo que guiava os Ameríndios e, certamente, os Africanos que auxiliaram na construção do Brasil, dado que esta é uma concepção oriunda da observação atenta da Natureza e daqueles que não têm como entidade absoluta a divindade monoteísta do cristianismo25.

Nietzsche será o filósofo que nos orientará na compreensão da temporalidade dos Ameríndios. Ele mostra-nos a fragilidade das nossas verdades absolutas e de qualquer outra verdade que possamos formular quando tratamos da História. Da mesma maneira, Foucault em Les mots et les choses, com a mesma perspicácia evidencia a sensibilidade do nosso pensamento. Vimos acima que Nietzsche põe abaixo tudo o que tínhamos experimentado na nossa História Universal (A gaia ciência, aforismo 34) e Foucault, perseguindo o mesmo caminho, ri, com um grande mal-estar, da proeza de Borges. Este, num texto onde faz uma estranha taxinomia, fez vacilar e inquietou por longo tempo a nossa prática milenária do Mesmo e do Outro26. Na obra citada, Foucault nos

mostra a instabilidade entre as palavras e as coisas, destacando o não-lugarda linguagem onde, somente, todas as coisas poderiam encontrar-se sem a distinção entre o que pertence à imaginação e o que, de fato, é real.

Ao mesmo tempo, Foucault apresenta-nos subjacente aos códigos primários de uma cultura, que regem seus códigos de linguagem, seus esquemas perceptivos, suas mudanças e suas técnicas, seus valores, a hierarquia de suas práticas -, que dizem ao indivíduo quem ele é e onde se encontra -, e às reflexões dos filósofos e dos cientistas-, que dizem porque existe uma ordem, a que leis obedece, porque esta e não outra -, uma ordem em estado bruto -, que permite que os códigos de linguagem, de percepção, da prática sejam criticados e tornados parcialmente inválidos27.

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28 -Idem.Ibidem. P. 12. 29 -Idem. Ibidem. Nota 1. P. 13.

30 -Michel Foucault,L’archéologie du savoir. Tradução Livre. Paris: Éditions Gallimard. 1997. P. 25.

31 -Idem. Ibidem. P. 10.

que pretendem a universalidade e a estabilidade, através de um estatuto de verdade absoluta, há algo que poderia, se outras forças ativas o permitissem, ser de forma diferente. Não pretendemos formular uma história que poderia ter sido, simplesmente, como fez Foucault, ao revelar as condições de possibilidades da epistèmeocidental após o século XVI28,

desejamos evidenciar as condições de possibilidade que fizeram medrar um Brasil e não outro, concentrados no século XVI. Entretanto, a

apreensão desta ordem mais verdadeira não pode ser conseguida

seguindo-se a história tradicional, daí Foucault ter se empenhado em fazer umaarqueologia.

Uma nota marginal em As palavras e as coisas nos envia para uma obra futura. A nota expressa a necessidade de explicar a noção arqueologia29. A necessidade é satisfeita em L’ Archéologie du savoir.

Esta obra surge como uma reflexão de Foucault sobre a sua própria reflexão, então, poderíamos dizer que ela é uma obra teórica, cuja pretensão é organizar o que se mostrava desorganizadoem As palavras e as coisas, O nascimento da clínica, A história da loucura na Idade Clássica30. É, também, a resposta do filósofo às críticas que, de todos os

lados, questionavam a nova leitura da história. Neste sentido, podemos dizer que a revolução anunciada por Foucault, e que ainda hoje não está concluída, começou a configurar-se de maneira incerta, confusa, nas obras que se apresentam já como sua evidênciaprática. Isto não significa que a prática antecede a teoria, mas que elas amparam-se e desenvolvem-se, entretanto, a reflexão é um processo que se realiza após o olhar sobre aquilo que já foi traduzido.

As obras metodológicas de Foucault, chamemo-las assim,

operacionalizaram um deslocamento radical. Nelas, torna-se transparente que nas disciplinas chamadas história das idéias, das ciências, da filosofia, do pensamento e, também da literatura, devemos desviar o nosso olhar das vastas unidades, descritas como épocas ou séculos, para os fenômenos de ruptura31. Esse deslocamento implica o aguçamento de

um campo de questões, algumas já conhecidas e através das quais outras emergentes são explicadas. A nova teoria enfatiza asdescontinuidades.

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32 -Idem. Ibidem. P. 16. 33 -Idem. Ibidem. P. 19.

34 - Fernand Braudel, La méditerranée et le monde Méditerranéen à l’époque de Philippe II.

Tradução Livre. Paris: Armand Colin.

história das idéias evidencia a multiplicação das rupturas. Desta feita, em lugar da cronologia contínua da razão que fazia, invariavelmente, remontar à inacessível origem ou à sua abertura fundadora, a nova história institui as escalas breves, distintas umas das outras, rebeldes a uma lei única, portadoras, frequentemente, de um tipo de história própria a cada uma, e irredutíveis ao modelo geral de uma consciência que obtém, progride e se segue32.

Nesta nova história, como acima foi dito, a noção descontinuidade ganha maior relevância, tornando-se um dos elementos fundamentais da análise histórica. Esta é a segunda consequência apontada por Foucault.

Como terceira consequência, observa-se que o tema e a possibilidade de uma história global começa a desvanecer-se e começa-se a fazer o esboço de uma história geral. Esta nova história problematiza as séries, os recortes, os limites, os desnivelamentos, os deslocamentos, as especificidades cronológicas, as formas singulares de reaparecimentos, os tipos possíveis de relação. Apresenta-se como tarefa desta história geral não somente estabelecer quais séries, mas quaisséries de séries, ou quais quadros é possível constituir. A história geral desenrola um espaço de dispersão33. Enfim, Foucault apresenta-nos a última consequência desta

transformação: os problemas metodológicos que ela tem que resolver. Apesar da desconfiança e da campanha contrária que mereceu a obra deste filósofo, acreditamos que, para o tipo de reflexão e de conhecimento que pretendemos, não poderíamos encontrar melhor caminho.

As reflexões que pretendemos apresentar intitulam-se: 1)Despe-se a imaginação. “... A experiência, que é a madre das cousas, nos desengana e de toda a dúvida nos tira”. Quando consideramos a história de Portugal ou a sua Literatura de viagens do século XVI, uma das coisas que nos chama imediatamente a atenção é a ousadia que tiveram os portugueses de despirem-se da imaginação vivificante e norteadora, por exemplo, a dos espanhóis no seu projeto de conquista, e da mentalidade européia seiscentista, que ainda embalava-se nas aventuras de Marco Polo e nas aventuras dos cavaleiros andantes, impondo no seu lugar a força incontestável da experiência e do entendimento, aliando o saber das descobertas deNovus Mundus ao conhecimento científico da época e que concentrava-se, sobretudo, nos necessários às navegações.

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35 - Entre estes estudos, vale a pena citar La recherche da la specificité de la renaissance portugaise,de Joaquim Barradas de Carvalho; a obra de José Manuel Herrero Massari,Libros de viajes de los siglos XVI y XVII en España y Portugal : Lecturas y lectores, Fundación Universitaria Española; ainda podemos falar da obra de Fernando Gil e Helder Macedo, (com uma contribuição de Luís de Souza Rebelo).Viagens do olhar: Retrospecção, Visão e Profecia no Renascimento Português. Porto: Campo das Letras – Editores, S.A., 1998.

36 - Joaquim Barradas de Carvalho, Rumo de Portugal. A Europa ou o Atlântico? (Uma perspectiva histórica). Lisboa: Livros Horizonte. 2ª Edição. 1982. P. 26.

exemplo, Duarte Pacheco Pereira, autor de Esmeraldo de situ orbis, D. João de Castro, autor do Roteiro de Lisboa a Goa, Gomes Eanes Zurara, autor da Crônicas dos feitos da Guiné, obras fundamentais, inclusive, retomadas em estudos recentes35. E, por que não citar o grande feito de

Vasco da Gama, estendido a todos os portugueses, por Camões no seuOs Lusíadas?

Também nos perguntamo sobre o motivo ou os motivos que levaram, mesmo pleno de interrogações, de dúvidas e de incertezas os portugueses e outros europeus a trocarem a segurança da terra firme, substituindo-a pela inconstância dos caminhos salgados, a fúria das tempestades, pelo mal dos navegantes, ou, até mesmo pela perda da identidade. Buscamos dar uma resposta ou uma explicação a esta ousadia: partimos da hipótese de que um motivo de ordem espiritual, registrado na literatura, na poesia, na filosofia, nas artes de um modo geral e nas ciências seria o maior impulsionador da aventura nos mares. Não esquecemos os motivos materiais, mas estes, como diz Colón, não invalidam a entrada no Paraíso. A nosso ver, a aventura nas águas, nos séculos XV e XVI, foi uma re-vivência de um ideal encoberto pelas brumas do passado. Uma aventura quixotesca, mas a re-escrita de um novo momento da humanidade. A América salvou o velho mundo! Ela também nos provou a incompatibilidade entre as palavras e as coisas.

Carvalho apresenta-nos o desenvolvimento da mentalidade portuguesa, que levou o povo português aos grandes descobrimentos, ao movimento de expansão que o celebrizou para sempre. Segundo este autor, desde muito cedo um condicionalismo de estrutura e de conjuntura leva os Portugueses a lançarem-se numa série de empresas destinadas a revolucionar a História da Humanidade: os descobrimentos marítimos e a expansão dos séculos XV e XVI36. Esta expansão promoveu uma nova

cultura, estreitamente ligada ao que chamamos Literatura portuguesa de viagense Literatura Científica.

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37 - Cristóbal Colón, Los cuatro viajes. Testamento. Edición de Consuelo Varela. Tradução Livre. Madrid: El Libro de Bolsillo. Madrid: Alianza Editorial. 1996.

38 - Podemos comprovar o que é afirmado nos escritos primeiros da expansão e nos muitos outros que dela dão testemunho. Inclusive, podemos nos dar conta daquilo que Sérgio Buarque de Holanda denominaatenuações plausíveis. Sérgio Buarque de Holanda,Visão do paraíso(Os motivos edênicos no descobrimento e colonização do Brasil). 6ª Edição. São Paulo: Brasiliense. 1994.

39 - Os padres da Companhia de Jesus, Gabriel Soares de Souza, Gilberto Freyre são algumas das fontes essenciais para chegarmos a estas conclusões.

40 -Náhuatlera a língua falada pelosnahua, por sua vez,nahuaé um termo genérico que inclui vários grupos (os Aztecas ou Mexicas são um deles) que falam a línguanáhuatle que estão presentes no Vale do México e áreas adjacentes, desde o século IX d.C., ou talvez, antes. Eduardo Matos Moctezuma,Vida y muerte en el Templo Mayor. Tradução Livre. México: Asociación de Amigos del Templo Mayor; Fondo de Cultura Económica. Cesión de Obras de Antropología. 1998. P. 39.

conquista37, os portugueses despiram-se da imaginação e assentaram os

pés no frio chão da razão38.

Se, por um lado, a visão da Terra dos Papagaios imediatamente é despida de, praticamente, toda a imaginação, que deveria ser alimentada no contacto com outros povos, por motivos que não são facilmente explicáveis ou que se possa encontrar uma justificativa satisfatória, por outro lado, adiferença é anulada ou mantida somente naquilo que tornava possível e mais fácil a colonização39.

Particularmente nesta reflexão, tentaremos expor as justificativas que consideramos pertinentes e que desvelam elementos necessários para que o Brasil que temos hoje fosse, justamente, aquele que medrava no século XVI.

Na reflexão a seguir, que atende pelo título -, Eles chegaram... “Vermelhas estão as águas, estão como que tingidas, e quando as bebemos, é como se bebêssemos água de salitre, pretendemos, através dos escritos da época em que se inicia a colonização, apontar as singularidades dos povos que habitavam a costa brasileira à chegada dos europeus.

Escolhemos estes versos de um cantonahuatl40de 1528, de um autor

anônimo para dar nome a estas reflexões, porque consideramos nesta secção os povosAmeríndiose por acreditarmos que a tristeza relatada nos cantos desta proveniência, que não são muitos mas que têm uma força extraordinária para traduzir o impacto causado pela chegada dos europeus em todos os povos que foram descobertos no período da expansão, são suficientemente profundos e manifestam um sentimento que é comum a todos povos que não conheciam a escrita. E também porque, quando estudamos os ameríndios do Brasil, descobrimos que muitos traços os aproximam dos outros povos, espalhados por toda a América do Sul, inclusive, o trauma daconquista.

Aqui, consideramos as manifestações dos Ameríndios, a sua

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41 - Sílvio Romero, História da literatura brasileira. 7ª Edição. Rio de Janeiro: J. Olympio; Brasília: INL. 1980.

42 - Leopoldo Zea, Negritud e Indigenismo, in Fuentes de la cultura Latinoamericana, III.

Tradução Livre. México: Fondo de Cultura Económica. Colección Tierra Firme. 1993. P. 355.

brasileiro. Como bibliografia básica, consultamos historiadores portugueses, brasileiros e estrangeiros, cuja autoridade é reconhecida, e consideramos as recolhas de textos e depoimentos da época. Neste contexto, a consulta aos padres da Companhia de Jesus é essencial e o estudo dos antropólogos brasileiros e de estrangeiros é de suma importância.

Na reflexão que se segue, centralizamos o nosso estudo na contribição africana, daí o título - A negritude do ser brasileiro. “...Vês África, dos bens do mundo avara,/ Inculta e toda cheia de bruteza,...” aproximamo-nos da África, berço dos africanos, um dos ancestrais dos brasileiros por intermédio de Camões, na obraOs Lusíadas, Canto X.

A cultura, a economia, a projeção internacional, o sincretismo religioso, a arte, a música, a psicologia do povo brasileiro e o avanço do projeto de colonização muito deve aos negros, que foram em terras incógnitas, contra a sua vontade ou entendimento, fundar um novo país e formar um novo povo. A presença negra se faz sentir em todas as regiões do país. Como afirma Sílvio Romero, no Brasil, quem não é mestiço na pele é mestiço nas idéias41.

Quando falamos de negritude, falamo-la em três sentidos: um material, palpável, e identificável através dos sentidos, referimo-nos à cor da pele e à presença negra no fenômeno mestiçagem; de outro modo, queremos afirmar a presença negra nas idéias do povo brasileiro, ou seja, na sua psicologia, como o fizeram Sílvio Romero e Gilberto Freyre; e ainda, do conceito negritude, que juntamente com indigenismo são conceitos ideológicos, cuja origem advém de uma situação comum aos homens da África Negra e Afro-Americana, por um lado, e da América Latina ou Indochina, por outro: a situação de dependência à qual, desde os primeiros momentos os povos submetidos empenham-se em mudar42.

Esta situação foi criada pela Europa e pelo chamado mundo ocidental, ao expandir-se por toda a terra, dominando e tornando instrumentos todos os seres. De qualquer forma, é sobre esses conceitos que os conquistadores ou os colonizadores foram buscar justificativas ao que consideram seu direito ao domínio. O domínio tem como premissa principal a suposta superioridade racial ou cultural pelo fato de não se ser negro ou índio.

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num grupo de homens – os brancos europeus. Com a anulação da humanidade daquela gente estranha, a cultura, a religiosidade, a cosmovisão tornaram-se inexistentes, sendo aquela gente transformada numa folha em branco, onde se poderia escrever tudo o que à raça superior ou - aos homens -, fosse conveniente.

Muitos caracteres, ou mesmo complexos de inferioridade, comportamentos singulares, hoje, do povo brasileiro podem ser apontados como consequências de atitudes, visões de mundo, mentalidade própria ao século XVI, período em que se formavam o Brasil e o povo brasileiro. O século XVI, sendo o século da gestação, é o período fértil para falarmos não como origem mas como possibilidades do que, hoje, naquele país temos e do que aquele povo é.

Encerramos a última reflexão, que tem o título Compomos a

totalidade. Quais são as raízes que estão presas, que ramos crescem /

Neste amontoado de pedras? Utilizando um dos versos de O

enterramento dos mortos de Elliot, porque agora justificaremos uma das idéias que defendemos neste trabalho: a idéia de que, para que medrasse o Brasil no século XVI, foi necessário que a terra brasileira se tornasse árida, incógnita, abscôndita para todos os seres que a construíram: os Ameríndios, os Europeus e os Africanos. Estes, oriundos de culturas diferentes, de etnias diferentes, de pensares diferentes submeteram-se de livre vontade ou por imposição de outros; uns crentes na sua humanidade, portanto, que se fizeram superiores àqueles que foram destituídos da sua língua, da sua dignidade, da sua religiosidade e do próprio ser.

Mas, logo viram que a “superioridade” da chegada, teria pouca duração, porque ela, de imediato, foi soterrada no processo de mestiçagem e despurificada, se algum dia foi pura, considerando-se a formação dos portugueses, por exemplo. Após os primeiros drásticos momentos, vemos que o sentimento de que algo de novo se tinha passado impregnou não só os brancos, mas também os mestiços. Esta é fase de perda e de reconstrução de uma nova identidade. Então, poderemos falar da emersão de uma consciência reveladora de que se tratava do reconhecimento de um novo povo, de uma outra gente não mais branca, negra ou índia, mas um povo mestiço que carregava em si a certeza da construção de uma nova terra.

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43 - Richard Rorty, Contingência, ironia e solidariedade. Tradução de Nuno Ferreira da Fonseca. Lisboa: Editorial Presença. 1994.

No início destaReflexão, falamos que a compreensão das origens foi o que impulsionou estas reflexões, agora, é necessário esclarecer algo. O problema das origens é um dos nós górdios da filosofia contemporânea, como também, o problema do telos, inclusive, são problemas enfrentados por Foucault no decorrer da sua reflexão. Para nós, resta dizer que estes serão problemas que se atravessarão no nosso caminho e que deveremos avivá-los para compreendê-los, não com a maestria de Foucault ou daqueles que iniciaram a rejeição de grandes verdades na filosofia tradicional, falamos do que Rorty43 nomeia o cânone ocidental, como

Nietzsche, Heidegger, dentre outros na filosofia, e tantos na literatura, na poesia e na arte, porém, cônscios de que é possível seguir o caminho aberto por este outro pensamento.

Assim, no corpo das reflexões, faremos os reparos, as retificações, os esclarecimentos que exigirão transparência e uma postura bem definida. Tentaremos, apesar de o assunto ser apaixonante, libertarmo-nos de todo e qualquer sentimento que nos tire do caminho da racionalidade para que, desta feita, possamos assumir a postura esperada pelos nossos pares e desejada pelo próprio investigador: o ouvido, o olhar, o pensamento aguçados para ouvirem, verem, sentirem e entenderem aquilo que o seu material, o seu tempo e o seu espaço lhe permitem compreender.

Acreditamos que o material que recolhemos atende às necessidades das reflexões que propomos, que as falhas que elas apresentam são resultantes, muitas vezes, do não saber dizer e, talvez, da falta de humildade do dizer, ou ainda, da nossa pequenez diante daqueles que construíram e constróem o pensamento. Só nos resta, com sinceridade, deferência, e com firme desejo labutar para que nossas interpretações não desvirtuem ou ofendam as obras que com carinho, respeito tivemos diante de nós, que, muitas vezes, com enorme esforço tentamos entender, preocupados se nossas palavras não destruiriam a beleza e a originalidade do já dito e, principalmente, se não transformávamos o já dito em um não dito. Mas, em nossa defesa e como justificativa, pensamos que Nietzsche, autor de belos livros, concordaria conosco e nos diria que toda palavra é sempre uma nova palavra. O amor que nutrimos pelos grandes autores nos redime dos nossos erros.

(...) Penso que estamos na viela dos ratos Onde os mortos perderam os seus ossos. “Que ruído é este?”

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“Que ruído é este agora? O que está o vento a fazer?” Nada de novo nada.

“Não

“Sabes nada? Não vês nada? Não te lembras “De nada?”

Lembro-me

Que aquelas são pérolas que eram os seus olhos. “Estás vivo ou não? Não há nada na tua cabeça?” (T. S. Elliot II-Uma partida de xadrez)

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