• No se han encontrado resultados

Teoria do risco concorrente análise da responsabilidade civil do Estado e das empresas fabricantes de cigarro

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2021

Share "Teoria do risco concorrente análise da responsabilidade civil do Estado e das empresas fabricantes de cigarro"

Copied!
65
0
0

Texto completo

(1)

CENTRO UNIVERSITÁRIO DE BRASÍLIA

LUANA CARVALHO VALADARES

TEORIA DO RISCO CONCORRENTE

Análise da responsabilidade civil do Estado e das empresas

fabricantes de cigarro

BRASÍLIA

2013

(2)

LUANA CARVALHO VALADARES

TEORIA DO RISCO CONCORRENTE

Análise da responsabilidade civil do Estado e das empresas

fabricantes de cigarro

Trabalho de conclusão de curso apresentado como requisito para obtenção do grau de bacharel em Direito no Centro Universitário de Brasília

Orientador: Prof. Luís Antônio Winckler Annes

BRASÍLIA 2013

(3)

Aos meus pais que me proporcionaram a melhor educação, sempre com muita atenção, carinho e compreensão.

(4)

AGRADECIMENTOS

Agradeço a Deus por todas as conquistas alcançadas. Aos meus professores que transmitiram seu conhecimento, com destaque ao meu orientador, Professor Luís Antônio Winckler Annes, que por diversas vezes incentivou e direcionou minha pesquisa de forma sábia e atenciosa. E aos meus amigos pelo companheirismo e compreensão nos momentos em que precisei me ausentar para dedicar aos estudos.

(5)

“Deixar de fumar é a coisa mais fácil do mundo. Sei muito bem do que se trata, já o fiz cinquenta vezes”.

(6)

RESUMO

A responsabilidade civil é um tema em constante desenvolvimento, portanto, objeto de diversos estudos. A responsabilidade civil das empresas fabricantes de cigarro e do Estado ainda precisa sofrer diversas alterações, conforme a aplicação da Teoria do Risco Concorrente. Este trabalho foi apresentado como requisito de conclusão do Curso de Direito do Centro Universitário de Brasília e abordou a evolução do instituto da responsabilidade civil no que diz respeito ao tabagismo. Utilizou-se como método o estudo jurídico-descritivo e o modelo de pesquisa jurídico-propositivo visando uma mudança de paradigma na jurisprudência brasileira. O resultado do trabalho foi a percepção da necessidade de análise de cada caso específico, com apuração da proporção da responsabilidade de cada parte envolvida nos danos causados pelo cigarro nos diversos momentos históricos como forma de garantir a justiça.

Palavras-chaves: Direito Civil. Direito do Consumidor. Responsabilidade civil. Responsabilidade estatal. Teoria do Risco Concorrente. Tabagismo. Empresas fabricantes de cigarro. Livre-arbítrio.

(7)

ABSTRACT

Civil liability is a constantly evolving issue, therefore, a topic of numerous studies. The civil liability of the tabaco industry and the State still needs to undergo several changes according to the application of the Competing Risk Theory. This work was presented as a requirement for conclusion of the course of Law of the Centro Universitário de Brasília and it discussed the evolution of the institution of civil liability with regard to smoking. The juridical-descriptive study method and the juridical-purposeful research model were adopted targeting a paradigm shift in Brazilian jurisprudence. The result of the study was the perceived need for case-specific analysis, with calculation of the proportion of the responsibility of each party involved in the damage caused by smoking at different historical moments as a way to ensure justice.

Keywords: Civil Law. Consumer Law. Civil liability. State liability. Competing Risk Theory. Smoking. Manufacturers of cigarettes. Free will.

(8)

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ... 8

1 PROTEÇÃO DO CONSUMIDOR ... 10

1.1 Responsabilidade civil e o Código de Defesa do Consumidor ... 10

1.2 Cigarro como produto ilícito ... 15

1.3 Comercialização do produto ... 20

2 RESPONSABILIDADE CIVIL DAS EMPRESAS FABRICANTES DE CIGARRO E DO ESTADO ... 25

2.1 Responsabilidade objetiva das empresas ... 25

2.2 Responsabilidade do fumante em contraposição à das empresas fumígenas... 30

2.3 Responsabilidade do Estado ... 36

3 APLICAÇÃO DA TEORIA DO RISCO CONCORRENTE ... 43

3.1 A ideia de risco concorrente... 43

3.2 Aplicação da teoria do risco concorrente nos casos de tabagismo ... 48

3.3 Posicionamento atual do Superior Tribunal de Justiça ... 52

CONCLUSÃO... 59

(9)

INTRODUÇÃO

O estudo tem por objeto a evolução da responsabilidade civil, em especial no que diz respeito ao cigarro. Percebe-se que este instituto já passou por diversas alterações, acompanhando o desenvolvimento da sociedade, contudo, necessita, atualmente, de uma nova reformulação para garantir a integral reparação dos danos sofridos pela vítima.

O mundo globalizado permite a interação de vários países em períodos de tempo cada vez menores. A informação é compartilhada quase instantaneamente com o mundo inteiro, os produtos produzidos em um extremo do mundo são comercializados não mais somente naquela região, mas tornam-se disponíveis para consumidores de todos os continentes.

Por isso, a liberação da produção, comercialização, divulgação e demais etapas que compõem o processo de colocação de um novo produto no mercado deve ser acompanhada com mais cuidado. Um produto defeituoso, colocado à disposição de milhões de consumidores, é capaz de gerar efeitos enormes, causando danos que atingem o mundo inteiro.

A responsabilidade civil, apesar de se enquadrar no ramo do direito privado, possui elevada relevância nesse contexto público internacional. Essa responsabilidade deve ser analisada em cada caso concreto, devido à própria peculiaridade do tema de sofrer modificações constantemente e variar conforme o fato em questão.

Esse trabalho abordou o tema levando-se em consideração o progresso do instituto, desde seus primórdios até a sua provável evolução futura. O estudo foi focado na responsabilização dos envolvidos na liberação, comercialização e consumo do cigarro. Abordou-se, em um primeiro momento, a responsabilidade civil no Código de Defesa do Consumidor1, suas consequências e seu objetivo maior de proteção do vulnerável como forma de igualar uma relação a princípio desproporcional entre as partes envolvidas: fornecedor e consumidor.

Em um segundo momento, tratou-se do surgimento do cigarro, de sua evolução na sociedade, visto a princípio como forma de inclusão social, status e liberdade, influenciando o comportamento de diversos jovens por meio de propagandas associadas ao

1 BRASIL. Lei nº 8.078/90, de 11 de setembro de 1990. Dispõe sobre a proteção do consumidor e dá outras

(10)

sucesso, esporte, desempenho sexual. Todo esse marketing não sofria nenhum tipo de regulamentação ou limitação. O dever de informação não era exigido legalmente, assim, mesmo sabendo dos riscos a que seus consumidores estavam sujeitos, a indústria do fumo manteve sua postura voltada ao lucro a qualquer custo.

No capítulo 2, foi abordada a questão da responsabilidade civil das empresas fabricantes de cigarro. Da aplicação da responsabilização objetiva ao caso, amparada nas garantias do Código de Defesa do Consumidor e da Constituição de 19882. Também nesse capítulo foi discutida a parcela de risco assumida pelos consumidores, tendo no livre-arbítrio uma estratégia de defesa das fornecedoras.

A responsabilidade do Estado também é colocada em questão. Seu dever de promoção à saúde, proteção do consumidor e o dever de legislar são discutidos ao longo do capítulo, com objetivo de demonstrar que também o Poder Público assumiu um risco, cabendo a ele parcela de responsabilidade nos casos de danos aos consumidores.

A Teoria do Risco Concorrente aparece como alternativa em casos que diversos fatores e sujeitos influenciaram para a consumação do dano. Mostra a necessidade de constante evolução do tema para proporcionar a reparação do dano conforme os riscos assumidos por cada parte. Surge para ser utilizada pelos magistrados nos casos concretos e aos legisladores para repensar o instituto e sua aplicação no mundo globalizado.

O trabalho foi baseado num estudo jurídico-descritivo, aprofundando nos conceitos de responsabilidade, culpa, dano e risco, abordando temas pertinentes como responsabilidade concorrente e dano corporal, utilizando-se, para isso, lições de diversos autores renomados.

Utilizou-se também o modelo de pesquisa jurídico-propositivo para sugerir uma mudança de paradigma na jurisprudência, voltada à análise da proporção da responsabilidade de cada parte e a consequente determinação do quantum indenizatório.

Por fim, sugere-se uma mudança de paradigma, um progresso do instituto da responsabilidade civil, com a aplicação da Teoria do Risco Concorrente aos casos em que há concausalidade para permitir uma correta distribuição da justiça.

(11)

1 PROTEÇÃO DO CONSUMIDOR

Conforme informa o artigo 2º do Código de Defesa do Consumidor (CDC), “Consumidor é toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final”. Analisando as relações de consumo, percebe-se que a noção de consumidor está pautada numa ideia de vulnerabilidade, a parte mais frágil.

Assim, entendendo que as relações de consumo são pautadas na desproporção entre fornecedor e consumidor, a Constituição Federal e, posteriormente o Código de Defesa do Consumidor estabeleceram garantias aos consumidores a fim de amenizar a desigualdade nessa relação.

Com a globalização, torna-se ainda mais evidente a importância de se fazerem cumprir essas garantias, tanto por parte dos fornecedores, quanto do Estado, devido à amplitude que os danos podem atingir.

1.1 Responsabilidade civil e o Código de Defesa do Consumidor

Responsabilidade, segundo Carlos Roberto Gonçalves, “exprime a ideia de restauração de equilíbrio, de contraprestação, de reparação de dano”.3 Por isso, alguns autores defendem que a responsabilidade civil é um fenômeno social, pois aquele que praticar um ato ou se omitir de praticá-lo e causar dano a terceiro deverá arcar com as consequências.

Esse instituto sofreu diversas mudanças. Nos primórdios da sociedade, a reação imediata ao dano causado ocorria por meio da vingança privada, não havendo qualquer critério ou limites, nem mesmo a observância do fator culpa era levada em consideração. Posteriormente, regulamentou-se essa reação por meio da Lei de Talião, “olho por olho, dente por dente”, marcando a primeira forma de limitação da vingança privada. Essa é a fase da justiça privada.

Mais tarde, surgiu a composição, na qual a pessoa que sofreu o dano se beneficiava com o produto da pena in natura ou em dinheiro, afastando, assim, a noção de vingança, porém, ainda sem análise da culpa. Com o tempo, o Estado foi assumindo a função

3 GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro: responsabilidade civil, v. 4, 5. ed. São Paulo: Saraiva,

(12)

de punir, “passou a assumir o papel de distribuir justiça, colocando-se no lugar do ofendido e, apenando o agressor para, em nome da harmonia social, garantir o bem estar coletivo”.4

Muito se fala da Lei Aquília como “um princípio geral regulamentador da reparação do dano”5

, isso porque ela trouxe a ideia do damnum iniuria datum. Para que se constatasse o damnum iniuria datum três requisitos deveriam ocorrer: a injuria, conduta contrária à lei; a culpa, podendo surgir da vontade da conduta ou por imprudência ou negligência (quase-delito) e o damnum, o dano, decréscimo patrimonial. Como bem observa Flávio Tartuce, “esses requisitos influenciam até hoje a construção estrutural da responsabilidade civil”.6

Nesse período, a noção de culpa começa a ser traçada, contudo, a reparação dos danos era feita somente pelo prejuízo sofrido, sem que houvesse a noção de lucro cessante.

Atualmente, para configurar a responsabilidade civil são necessários três pressupostos clássicos: ação ou omissão, dano e nexo causal entre a conduta praticada ou o ato omisso e o dano causado a outrem. O parágrafo único do art. 927 do diploma civil7 complementa que existem casos em que, independentemente de culpa, haverá a obrigação de reparar o dano.

Art. 927. Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo.

Parágrafo único. Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem”.

Deve-se destacar que até o Código de 19168, somente haveria dever de reparação se houvesse a comprovação da culpa, sendo esta presumida em raros casos. Percebeu-se, contudo, que essa teoria dificultava a reparação, surgindo, assim, a teoria da

4

MELO, Nehemias Domingos de. Da culpa e do risco:como fundamentos da responsabilidade civil. São Paulo: Editora Juarez de Oliveira, 2005, p. 3.

5 GONÇALVES, Carlos Roberto. Responsabilidade civil de acordo com o Novo Código Civil (Lei n. 10.406, de

10-1-2002). 8. ed. rev. São Paulo: Saraiva: 2003, p. 5.

6

TARTUCE, Flávio. Responsabilidade civil objetiva e risco - a teoria do risco concorrente. São Paulo: Editora Método, 2011, p. 8.

7 BRASIL. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Disponível em:

<http://www.planalto.gov.br>. Acesso em: 13 abr. 2013.

8 BRASIL. Lei nº 3.071, de 1º de janeiro de 1916.Código Civil dos Estados Unidos do Brasil. Revogada pela

(13)

responsabilidade objetiva, estudada sob dois prismas: a teoria do risco e a teoria do dano objetivo.9

A teoria do risco funda-se no exercício da atividade perigosa. Aquele que causar dano no exercício de atividade perigosa só se eximirá do dever de reparação caso prove que tomou todas as atitudes para evitá-lo. Resume-se no brocardo ubi emolumentum, ibis onus, ubi commoda, ibi incommoda, ou seja, quem aufere os cômodos, deve suportar os incômodos.10

Já a teoria do dano objetivo foca no resultado da conduta, o dano, não sendo necessário perquirir se houve ou não culpa. Havendo o dano, a reparação se faz necessária.

Também os tipos de danos reparáveis foram sofrendo alteração com o tempo. O dano é entendido como uma lesão que tem como efeito a diminuição no patrimônio, sendo ele patrimonial ou moral. Em princípio, muito se discutiu a respeito da possibilidade de reparação do dano moral, devido principalmente a impossibilidade de rigorosa avaliação pecuniária e a imoralidade de se compensar esse tipo de dano em dinheiro. Tais fatos foram definitivamente afastados, mesmo porque o que se busca não é a exata equivalência entre indenização e prejuízo e sim, principalmente, o sentimento maior de justiça.

Superada a discussão a respeito do dano moral, atualmente põe-se em questão a possibilidade de reparação do dano estético, aquele que atinge a aparência externa de cada um. Essa aparência externa faz parte de uma das dimensões da própria personalidade humana, por isso, caso ela seja afetada, surgirá o dever de reparação. Nas palavras de Teresa Lopez: “Essa imagem externa aparece em várias dimensões: como a intelectual, a profissional, a social, a emocional, a física, e formam um só e indivisível conjunto. Por isso, se uma dessas partes for afetada, ocorrerá o desequilíbrio da integridade da personalidade [...]”.11

9 GONÇALVES, Carlos Roberto. Responsabilidade civil de acordo com o Novo Código Civil (Lei n. 10.406, de

10-1-2002). 8. ed. rev. São Paulo: Saraiva: 2003, p. 5.

10

Ibidem, p. 7.

11 LOPEZ, Teresa Ancona. O dano estético: responsabilidade civil. 2ª ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Editora

(14)

O dano estético é aquele, então, que afetando a aparência externa da pessoa, de forma duradoura, seja capaz de causar prejuízo a sua própria personalidade, dando ensejo a um sofrimento moral.

A questão foi objeto da Súmula 387 do Superior Tribunal de Justiça que concluiu a discussão informando que “É lícita a cumulação das indenizações de dano estético e dano moral”. Dessa forma, o Tribunal decidiu pela possibilidade de indenização por dano estético, ampliando ainda mais a possibilidade de reparação dos danos sofridos, seja ele material, moral ou estético.

A Constituição Federal e o Código de Defesa do Consumidor (CDC) tiveram nítida importância na evolução do instituto da responsabilidade civil em nosso ordenamento jurídico. Como se sabe, o Código Civil tutela a relação entre iguais e nas relações de consumo uma das principais características é justamente a desproporção entre partes, exigindo-se, portanto, tratamento diferenciado.

A Constituição no art. 5º, XXXII estabeleceu que o Estado promoverá a defesa do consumidor, na forma da lei. Esse dispositivo é de tal relevância que se enquadra nos direitos e garantias individuais, objeto de cláusula pétrea. O constituinte originário, visando reforçar essa garantia, ainda incluiu no art. 170 a proteção do consumidor como princípio da ordem econômica, determinando que fosse elaborado um Código de defesa do consumidor (art. 48, ADCT).

Conclui Adolfo Mamoru Nishiyama, “Assim, a proteção do consumidor é uma liberdade pública positiva, pois o Estado tem a obrigação de comparecer para a prestação de certas tarefas. O que se exige é uma atuação do Poder Público e não a sua abstenção”.12

A Lei 8.078/90 veio estabelecer, dessa forma, normas de proteção e defesa do consumidor, consolidando um direito já constitucionalmente garantido. Essa lei foi um marco na relativização de alguns dogmas estabelecidos no direito civil e no direito comercial. Como bem alega Antônio Herman:

12 NISHIYAMA, Adolfo Mamoru. A proteção constitucional do consumidor. 2 ed. rev. atual. e ampl. São Paulo:

(15)

“A atual função do direito privado é a proteção da pessoa em face dos desafios da sociedade massificada, globalizada e informatizada atual. Se as relações de consumo têm funções econômicas, têm funções particulares de circulação das riquezas, a função social deve necessariamente envolver o reconhecimento da vulnerabilidade da pessoa humana, nos seus vários papéis ou status, inclusive de consumidor na sociedade de consumo atual. Essa função só pode ser perseguida com uma nova visão e interpretação do direito privado, especialmente valorizando as diferenças materiais e formais nos poderes e liberdades das pessoas, procurando a igualdade [...]”.13

Justamente para que o direito privado atinja esse objetivo de proteção da pessoa em face à economia de massa que o CDC foi criado. No tocante à responsabilidade civil, a lei consumerista traz entre os direitos básicos do consumidor a prevenção e reparação de danos morais e materiais, não podendo essa responsabilidade ser afastada por cláusula contratual.

Cumulado com esse direito está a possibilidade de inversão do ônus probatório - quando a alegação feita pelo consumidor for verossímil ou quando ele for hipossuficiente -, o direito básico de segurança - no qual o fornecedor possui o dever de segurança e cuidado ao colocar produtos e serviços no mercado - e os direitos de transparência e boa-fé.

O Código deixa expresso ainda, no art. 4º caput e inciso II, a obrigatoriedade do Estado de estar presente no mercado de consumo, por meio de ações governamentais que garantam o atendimento das necessidades dos consumidores.

Art. 4º A Política Nacional das Relações de Consumo tem por objetivo o atendimento das necessidades dos consumidores, o respeito à sua dignidade, saúde e segurança, a proteção de seus interesses econômicos, a melhoria da sua qualidade de vida, bem como a transparência e harmonia das relações de consumo, atendidos os seguintes princípios: (Redação dada pela Lei nº 9.008, de 21.3.1995)

I - reconhecimento da vulnerabilidade do consumidor no mercado de consumo;

II - ação governamental no sentido de proteger efetivamente o consumidor: a) por iniciativa direta;

b) por incentivos à criação e desenvolvimento de associações representativas;

c) pela presença do Estado no mercado de consumo;

d) pela garantia dos produtos e serviços com padrões adequados de qualidade, segurança, durabilidade e desempenho.

[...]”.

13 BENJAMIN, Antônio Herman V.; MARQUES, Claudia Lima; Bessa, Leonardo Roscoe. Manual de Direito

(16)

Por fim, cumpre observar que o CDC optou pela aplicação da responsabilidade objetiva, conforme se depreende do art. 12:

Art. 12. O fabricante, o produtor, o construtor, nacional ou estrangeiro, e o importador respondem, independentemente da existência de culpa, pela reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos decorrentes de projeto, fabricação, construção, montagem, fórmulas, manipulação, apresentação ou acondicionamento de seus produtos, bem como por informações insuficientes ou inadequadas sobre sua utilização e riscos.”

É sobre essa responsabilidade objetiva, independentemente da existência de culpa, e amparada em especial pelo Código de Defesa do Consumidor que se baseará esse estudo.

1.2 Cigarro como produto ilícito

O cigarro é um produto que vai muito além do simples tabaco enrolado numa folha de papel. Ele é considerado do ponto de vista jurídico, na visão de Lúcio Delfino, um produto “potencialmente nocivo à saúde, inseguro (propenso a gerar acidentes de consumo) para os que o utilizam como também para os que a ele estão expostos”.14

O seu processo de fabricação envolve a adição de produtos como a acetona (utilizada para remover tintas e esmaltes - causa irritação na pele e garganta), a amônia (componente de produtos para desinfetar banheiros - causa dependência, podendo cegar e até matar), arsênico e DDT (inseticidas), naftalina (usada para matar traças e baratas - o contato prolongado com essa substância prejudica rins e olhos), acetato de chumbo (substância cancerígena) e cádmio (usado em baterias de carro).

Nesse rol de produtos, destaca-se o cádmio, metal altamente tóxico, que corrói o sistema respiratório. Mesmo em pequena quantidade, como a presente no cigarro, acumula-se no organismo, demorando até 20 anos para ser expelido.

A fumaça do cigarro é composta por uma mistura de aproximadamente 4700 substâncias tóxicas15, entre elas, o alcatrão (composto de mais de 40 substâncias comprovadamente cancerígenas) e o monóxido de carbono (prejudica a passagem de oxigênio

14 DELFINO, Lúcio. Responsabilidade civil e tabagismo no código de defesa do consumidor. Belo Horizonte:

Del Rey, 2002, p. 77.

15

Dados retirados do site do Instituto Nacional de Câncer <http://www.inca.gov.br/tabagismo/frameset.asp?item=atento&link=conheca.htm>. Acesso em 19 agosto 2012.

(17)

no sangue por ter uma afinidade 200 vezes maior com a hemoglobina do que o oxigênio e provoca aumento nas taxas de lipídio e colesterol).

Ainda entre as substâncias contidas no cigarro está a nicotina, responsável pela dependência. Ela é considerada uma droga pela Organização Mundial da Saúde (OMS), pois causa além de transtornos mentais, aumento da frequência cardíaca e liberação de substâncias quimiotáxicas16 no pulmão.

No cigarro, a nicotina tem efeito rápido e devastador. Chega ao cérebro em apenas nove segundos, atingindo o sistema parassimpático, bloqueando o simpático e causando a sensação de bem-estar. Nenhuma outra droga age tão rápido e com tal intensidade. Ocorre, porém, que a sensação dura em torno de 20 a 30 minutos, gerando a necessidade de sentir o bem-estar novamente e, para isso, o consumidor acende outro cigarro, acarretando a dependência.

Por esses motivos, o tabaco foi inserido na Classificação Internacional de Doenças (CID 10), passando a ser tratado como doença no grupo de transtornos mentais e de comportamento devido ao uso de substância psicoativa.17

Sérgio Luís Boeira, no livro “Atrás da cortina de fumaça”, mostra a relação do cigarro com diversos tipos de câncer. Entre as pessoas que possuem câncer de pulmão, 80% a 90% são fumantes, quando se trata de câncer nos lábios ou nos rins, esse índice sobe para 90%, chegando a 95% em câncer na língua. O autor ainda faz uma relação dos dez tipos de câncer mais comuns, observando que dentre esses, cinco possuem relação com o tabagismo (câncer de pulmão, câncer de estômago, intestino, esôfago, boca).18

Segundo o Instituto Nacional de Câncer - INCA, o tabagismo é diretamente responsável por 30% das mortes por câncer e 90% das mortes por câncer de pulmão. Outras doenças que também estão relacionadas ao uso do cigarro são aneurisma arterial, trombose vascular, úlcera no aparelho digestivo, infecções respiratórias e impotência sexual no homem.

16 Afinidade ou repulsa de células ou organismos vivos, no sentido positivo ou negativo, para substâncias

químicas.

17 CID 10: T65.2 Efeito tóxico do tabaco e da nicotina. Z58.7 Exposição à fumaça de tabaco. Z72.0 Uso do

tabaco. <http://www.medicinanet.com.br/pesquisa/cid10/nome/tabaco.htm>. Acesso em 19 agosto 2012.

18 BOEIRA, Sérgio Luís. Atrás da cortina de fumaça. Tabaco, tabagismo e meio ambiente. Estratégias da

(18)

Estima-se, que no Brasil, a cada ano, 200 mil pessoas morram precocemente devido às doenças causadas pelo tabagismo.19

Abaixo segue uma pesquisa retirada do site de segurança do trabalho: - Câncer de Pulmão: 87% das mortes por câncer de pulmão ocorrem entre os fumantes. - Doenças Cardíacas: os fumantes correm um risco de 70% maior de apresentar doenças cardíacas.

- Câncer de Mama: as mulheres que fumam 40 ou mais cigarros por dia têm uma probabilidade 74% maior de morrer de câncer de mama.

- Deficiências Auditivas: os bebês de mulheres fumantes têm maiores dificuldades em processar sons.

- Complicações da Diabetes: os diabéticos que fumam ou que mascam tabaco correm maior risco de ter graves complicações renais e apresentam retinopatia (distúrbios da retina) de evoluções mais rápidas.

- Câncer de Cólon: dois estudos com mais de 150.000 pessoas mostram uma relação clara entre o fumo e o câncer de cólon.

- Asma: a fumaça pode piorar a asma em crianças.

- Predisposição ao Fumo: as filhas de mulheres que fumavam durante a gravidez têm quatro vezes mais probabilidade de fumar também.

- Leucemia: suspeita-se que o fumo cause leucemia mielóide.

- Contusões em Atividades Físicas: segundo um estudo do Exército dos Estados Unidos, os fumantes têm mais probabilidades de sofrer contusões em atividades físicas.

- Memória: doses altas de nicotina podem reduzir a destreza mental em tarefas complexas.

- Depressão: psiquiatras estão investigando evidências de que há uma relação entre o fumo e a depressão profunda, além da esquizofrenia.

- Suicídio: um estudo feito entre enfermeiras mostrou que a probabilidade de cometer suicídio era duas vezes maior entre as enfermeiras que fumavam.

- Outros perigos a acrescentar à lista: câncer da boca, laringe, gargantas, esôfago, pâncreas, estômago, intestino delgado, bexiga, rins e colo do útero; derrame cerebral, ataque cardíaco, doenças pulmonares crônicas, distúrbios circulares, úlceras pépticas, diabetes, infertilidade, bebês abaixo do peso, osteoporose e infecções dos ouvidos. Pode-se acrescentar ainda o perigo de incêndios, já que o fumo é a principal causa de incêndios em residências, hotéis e hospitais.20

O cigarro também gera diversos problemas para os fumantes passivos. Chamam-se fumantes passivos as pessoas que sendo não fumantes inalam os produtos de

19 INSTITUTO NACIONAL DE CÂNCER. Observatório da política nacional de controle do tabaco. Rio de

Janeiro, 2012. Disponível em: <http://www.inca.gov.br/tabagismo/frameset.asp?item=faq>. Acesso em: 19 agosto 2012.

20 Fumo, cigarro e suas consequências. Disponível em: <http://www.areaseg.com/toxicos/fumo.html>, acesso

(19)

combustão do cigarro. A fumaça dos derivados do tabaco em ambientes fechados é denominada poluição tabagística ambiental. Estima-se que o ar poluído contenha “três vezes mais nicotina e monóxido de carbono, e até cinquenta vezes mais substâncias cancerígenas do que a fumaça que entra pela boca do fumante depois de passar pelo filtro do cigarro”21, segundo o INCA.

Ainda segundo esse Instituto, a absorção da fumaça por não fumantes causa risco 30% maior de câncer de pulmão e 24% maior de infarto do coração em relação aos não fumantes que não se expõem. Em crianças, causa maior risco de doenças respiratórias como pneumonia, bronquite e asma. São ainda efeitos imediatos causados pela poluição tabagística ambiental: irritação nos olhos, manifestações nasais, tosse, cefaleia, aumento de problemas alérgicos e cardíacos.

Alguns autores defendem que o cigarro possui, assim, uma periculosidade inerente, ou seja, “trazem um risco intrínseco atado a sua própria qualidade ou modo de funcionamento”.22

Porém, para que um produto seja classificado dessa maneira, a periculosidade deve ser normal e previsível, como ocorre nas facas, no álcool, sacos plásticos, agrotóxicos.

O produto que possui periculosidade inerente pode ser comercializado com as advertências cabíveis, pois o próprio fim a que se destina depende da periculosidade, como no caso da faca que precisa estar afiada para alcançar sua finalidade. Suprir a periculosidade inerente de um produto seria acabar com sua própria natureza.

Nestes casos, os consumidores estão cientes dos riscos e, utilizando o produto da forma recomendada, não irão sofrer danos.

Mas no caso do cigarro, a periculosidade não pode ser considerada inerente. A periculosidade do cigarro não é normal e, durante o período em que foi comercializado sem que houvesse informação adequada aos consumidores, não tinha como se falar em previsibilidade.

21 INSTITUTO NACIONAL DE CÂNCER. Rio de Janeiro, 2012. Disponível em:

<http://www.inca.gov.br/tabagismo/frameset.asp?item=passivo&link=tabagismo.htm>. Acesso em: 12 setembro 2012.

22 BENJAMIN, Antônio Herman V.; MARQUES, Claudia Lima; BESSA, Leonardo Roscoe. Manual de Direito

(20)

No cigarro, a periculosidade é tida por exagerada, “seu potencial danoso é tamanho que o requisito da previsibilidade não consegue ser totalmente preenchido pelas informações prestadas pelos fornecedores”.23

A mera informação de que o produto colocado no mercado causa prejuízos à saúde do consumidor, apesar de preencher o requisito da previsibilidade, não é capaz de eliminar a responsabilidade pelos danos gerados.

Por isso, diz-se que os produtos com periculosidade exagerada “[...] não podem em hipótese alguma - em face da imensa desproporção entre custos e benefícios sociais da sua produção e comercialização - ser colocados no mercado”.24

Importante avaliar se a periculosidade de um produto é elevada a ponto de ser classificada como exagerada (não podendo ser comercializado) ou apenas inerente (devendo ser comercializado com advertências).

”De qualquer modo, com a ajuda do Restatement (Second) of Torts, sction 520, é possível elencar alguns pontos que podem ser levados em consideração pelo juiz para tal determinação: a) se a atividade em si envolve um alto grau de risco de dano; b) se o dano hipotecário é de grande gravidade; c) se o risco não pode ser eliminado pelo exercício de cuidado razoável; d) se a atividade não é matéria de uso comum; e) se a atividade é inapropriada para o local onde é exercida; e, finalmente f) o valor da atividade para a comunidade”.25

Avaliando o cigarro, percebe-se que este possui alto grau de risco de dano, sendo este de grande gravidade, podendo levar à morte. Como bem destaca Sérgio Luís Boeira: “Não existe um consumo regular do tabaco isento de risco à saúde”26

, mesmo utilizado da forma como é recomendada, mata.

A mera informação e normatização não são suficientes para diminuir os riscos graves causados pelo consumo do produto, visto a desproporção clara entre os custos e benefícios sociais da sua produção e comercialização. Logo, um produto como esse não poderia ser colocado no mercado e, muito menos, mantido por tantos anos sem informação adequada.

23

BENJAMIN, Antônio Herman V.; MARQUES, Claudia Lima; Bessa, Leonardo Roscoe. Manual de Direito do Consumidor.2ª ti. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008, p. 119.

24 Ibidem, p. 119. 25

Ibidem, p. 119.

26 BOEIRA, Sérgio Luís. Atrás da cortina de fumaça. Tabaco, tabagismo e meio ambiente. Estratégias da

(21)

Dessa forma, o cigarro viola preceitos de proteção à saúde e à vida constitucionalmente tutelados. Não cabe, por tudo quanto exposto, defender a licitude de um produto tão danoso.

1.3 Comercialização do produto

Estima-se que o descobrimento do tabaco se deu no ano 1000 a.C.27, pela população indígena que vivia nas Américas, sendo utilizado nos rituais religiosos bem antes da chega dos europeus. Com a colonização e o escambo, essa folha plantada em todo o continente espalhou-se pela Europa e, em pouco tempo, já se fumava cachimbo em todo o continente europeu.

Logo isso se tornou um símbolo de civilização, sendo retratado por diversos pintores que ilustravam reis, generais e outras figuras importantes fumando ou aspirando rapé, representando elevado status econômico-social. A produção cresceu enormemente, chegando a ser a maior fonte de renda dos cofres públicos na Europa.28

O cigarro foi a forma mais cômoda e econômica de carregar e utilizar o tabaco, mostrando sua explosão nas décadas de 1860 e 1880, quando começou a ser produzido em larga escala por máquinas específicas. A princípio, seu consumo se restringia aos homens, sendo somente a partir da Segunda Guerra Mundial, com a utilização maciça da publicidade pela indústria de cigarros, que seu consumo se disseminou entre as mulheres.

Marcantes são as campanhas publicitárias do cigarro. Associavam o seu uso à imagem de sucesso, aventura, status, prazer. Incontáveis os filmes de Hollywood nos quais os atores principais apareciam fumando.

Por muito tempo, a publicidade desse produto foi veiculada sem nenhum tipo de controle específico, existindo até médicos que diziam que o ato de fumar não fazia mal à saúde. Nesse sentido é o trecho a seguir, extraído do site de segurança do trabalho:

“Outro personagem muito conhecido no mundo do cigarro é o cowboy machão, despreocupado, cuja mensagem, nas palavras de um rapaz, é:

27 DELFINO, Lúcio. Responsabilidade civil e tabagismo no código de defesa do consumidor. Belo Horizonte:

Del Rey, 2002.

28 ALIANÇA DE CONTROLE AO TABAGISMO. Tabagismo. São Paulo, 2012. Disponível em: <

(22)

‘quando você está fumando, ninguém o segura’. Consta que o produto de consumo mais vendido no mundo é um cigarro que controla 69% do mercado entre os fumantes adolescentes e que a marca que mais investe em publicidade. Como um incentivo a mais, todo maço traz cupons que podem ser trocados por jeans, bonés e roupas esportivas do gosto da moçada”.29

O filme Thank You for Smoking retrata bem esse poder do marketing

quando o personagem principal, Nick Naylor, lobista, busca provas de que os cigarros não viciam e é mal sucedido. Sua conclusão, mesmo assim, é confiante: “o mais importante: temos o controle da mídia”.30

Foi com esse poder da publicidade que o cigarro passou a fazer parte da rotina de milhares de pessoas, sendo considerado prova de independência, liberdade e fator de inclusão em diversos grupos sociais. Fumar era quase obrigatório para se sentir inserido socialmente. Exemplo clássico dessa relação do cigarro com fama, sucesso e inclusão social é trazido pelo site já citado acima:

“Aqui no Brasil, a minissérie Presença de Anita, chamou a atenção aos vários cigarros consumidos pela protagonista de apenas 18 anos. A representação foi tamanha, ao ponto da própria atriz tornar-se dependente. A mensagem descarada é que fumar dá prazer, boa forma, virilidade e popularidade. ‘Onde eu trabalhava’, disse um consultor de publicidade, ‘tentávamos de tudo para influenciar a garotada de 14 anos a começar a fumar’. Os anúncios na Ásia apresentam ocidentais atléticos, saudáveis e cheios de juventude, divertindo-se a valer em praias e quadras esportivas – fumando, é claro. ‘Top models e estilos de vida ocidentais criam padrões glamorosos a imitar’, comentou um informe de marketing, ‘e os fumantes asiáticos nunca se fartam disso’”.31

Slogans como “A decisão inteligente”, “Para quem sabe o que quer”, “Para quem tem bom gosto” já foram utilizados nas publicidades de cigarro e demonstram exatamente a ideia que as indústrias gostariam de passar: o cigarro demonstra capacidade de escolha, liberdade, independência.

Esse glamour perdurou até o início da década de 1920, quando começaram os primeiros alertas a respeito dos riscos do cigarro, surgindo as primeiras leis contra o tabagismo nos Estados Unidos. Em 1964 e 1972 foram publicados relatórios e feitas

29

SITE DE SEGURANÇA DO TRABALHO. Fumo. Curitiba, 2002. Disponível em: <http://www.areaseg.com/toxicos/fumo.html>. Acesso em: 29 setembro 2012.

30 THANK YOU FOR SMOKING. Direção e roteiro de Jason Reitman, baseado em livro de Christopher

Buckley. Estados Unidos:Fox Searchlight,2005. DVD.

31 SITE DE SEGURANÇA DO TRABALHO. Fumo. Curitiba, 2002. Disponível em:

(23)

investigações a respeito dos males causados pelo cigarro neste país, o que gerou certo recuo nas vendas do cigarro.

“Nos Estados Unidos os anúncios de cigarro na TV foram banidos há mais de vinte anos. Como se não bastasse, o rigor das leis americanas impede o tabagismo em restaurantes, cinemas, elevadores e lojas, punindo aqueles que se aventurarem na infração, com pagamento de multa pesada. Isso significa que lá, tal qual em países com leis semelhantes, tornou-se difícil vender cigarro. A solução encontrada pelas indústrias fumígenas foi simples e eficiente: voltar sua artilharia para países onde inexistem legislações sérias, com intuito preventivo de problemas relacionados ao uso do tabaco”.32

As empresas, mesmo conhecendo os riscos do produto, continuaram incentivando o seu uso. Reagiram rapidamente, buscando ao máximo controlar informações vitais, analisar e segmentar o público-alvo de seu produto, além de promover a colaboração entre os competidores desse ramo. Chegaram a manipular estudos com intuito de enganar os consumidores ao enunciar que o cigarro fazia bem à saúde.

É nesse contexto que surge a publicidade enganosa dos cigarros. O art. 37, §1º, CDC traz a noção de publicidade enganosa nos seguintes termos:

Art. 37. É proibida toda publicidade enganosa ou abusiva.

§ 1° É enganosa qualquer modalidade de informação ou comunicação de caráter publicitário, inteira ou parcialmente falsa, ou, por qualquer outro modo, mesmo por omissão, capaz de induzir em erro o consumidor a respeito da natureza, características, qualidade, quantidade, propriedades, origem, preço e quaisquer outros dados sobre produtos e serviços”.

Dessa forma, são proibidas propagandas que sejam inteira ou parcialmente falsas ou ainda que induzam em erro o consumidor. As propagandas de cigarro se utilizavam justamente da falsa informação para relacioná-lo ao vigor físico, à vida esportista, induzindo os consumidores a um erro que custaria a própria saúde e, em muitos casos, a vida.

Um produto altamente perigoso e danoso à saúde relacionado em propagandas à vida saudável. Só por essa informação, a propaganda do cigarro já seria enganosa. Observa-se, pela redação do artigo 37, que não é necessário que ocorra um fato danoso ao consumidor, a mera violação aos deveres de informação já configura a propaganda como enganosa.

(24)

Além disso, não se pode deixar de questionar as omissões que esses anúncios traziam, afinal, sequer tratavam dos riscos aos quais os consumidores estariam expostos consumindo esse produto. Como bem questiona Lúcio Delfino: “Se o consumidor tivesse tido conhecimento de determinada característica do produto antes de adquiri-lo, teria, mesmo assim, concretizado o negócio?”.33

No caso do cigarro, seria essencial constar, por exemplo, as substâncias tóxicas contidas no produto e seus efeitos no organismo. São dados que se aparecessem nas propagandas, certamente não haveria indivíduo que quisesse se submeter a tal risco.

O Código do Consumidor é ainda mais específico ao tratar da oferta e apresentação de produtos e serviços no caput do art. 31:

Art. 31. A oferta e apresentação de produtos ou serviços devem assegurar informações corretas, claras, precisas, ostensivas e em língua portuguesa sobre suas características, qualidades, quantidade, composição, preço, garantia, prazos de validade e origem, entre outros dados, bem como sobre os riscos que apresentam à saúde e segurança dos consumidores”.

Assim, as informações sobre as características, qualidades, composição entre outras devem ser passadas ao consumidor de forma correta, clara e precisa, fato que em nada se aproxima das propagandas de cigarro.

Todos esses pontos demonstram a responsabilidade das empresas fabricantes de cigarro no período em que vigoraram essas propagandas e, após a proibição das mesmas, em relação aos consumidores que já estavam viciados. Por muitos anos o produto foi comercializado sem que se soubessem seus efeitos, um descaso não só das empresas fabricantes, quanto do Poder Público que tem a função de fiscalizá-las.

Acrescenta-se a isso, o fato de ser obrigatória a observância de algumas etapas antes do produto ser disponibilizado no mercado. Entre elas, exige-se que o fabricante realize diversos testes para conhecer os efeitos do produto e certificar-se que ele não é nocivo. Assim, não cabe às empresas se defenderem afirmando que desconheciam os efeitos nocivos do produto, passando a conhecê-los apenas na década de 1990.

33

DELFINO, Lúcio. Responsabilidade civil e tabagismo no código de defesa do consumidor. Belo Horizonte: Del Rey, 2002, p. 136.

(25)

Tem-se configuradas assim, não só a negligência a deveres básicos de cuidado das empresas, ao comercializar um produto sem certificar-se dos seus efeitos, como também a propaganda enganosa e ainda a violação ao dever de informação.

(26)

2 RESPONSABILIDADE CIVIL DAS EMPRESAS FABRICANTES DE CIGARRO E DO ESTADO

Sabe-se que a responsabilidade civil dos fornecedores é objetiva, ou seja, independe de culpa. Porém, mesmo sem ser necessário comprovar esse fator, em alguns casos é extremamente complicado demonstrar o nexo causal, surgindo, assim, diversas discussões a esse respeito e várias teorias que tentam encontrar uma solução para esses conflitos.

Além disso, deve-se atentar ao fato do poderio dos fornecedores, em especial as empresas fabricantes de cigarro, ante um consumidor vulnerável e um Estado omisso. Por tudo quanto exposto, muito se discute a respeito da responsabilidade civil dessas empresas e do Estado quando à produção e comercialização do cigarro e dos fatores que levam os indivíduos a consumir esse produto e manter seu uso após as constatações dos males que ele causa.

2.1 Responsabilidade objetiva das empresas

A responsabilidade civil passou por grandes evoluções do Código Civil de 1916 para o Código Civil de 2002. No código antigo, a responsabilidade subjetiva era a regra, com apoio na culpa provada, art. 159.

Art. 159. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência, ou imprudência, violar direito, ou causar prejuízo a outrem, fica obrigado a reparar o dano. (Vide Decreto do Poder Legislativo nº 3.725, de 1919). A verificação da culpa e a avaliação da responsabilidade regulam-se pelo disposto neste Código, arts. 1.521 a 1.532 e 1.542 a 1.553”.

Esse artigo era tão específico que afastava qualquer outra modalidade que não fosse a culpa subjetiva. Em poucos casos, arrolados nos arts. 1.521, 1.527, 1.528 e 1.529, admitia-se a culpa presumida e a responsabilidade objetiva.

Ainda hoje, segundo a teoria clássica, a culpa é pressuposto da responsabilidade civil subjetiva, como se observa no Código Civil, art. 186.

Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito”.

Dessa forma, a vítima só teria direito a indenização caso o agente responsável pelo dano agisse com culpa.

(27)

Porém, com a evolução da sociedade, desenvolvimento industrial e a produção em massa, observou-se que em muitos casos era necessária a devida reparação, sem que fosse preciso comprovar a culpa tradicional. Os juristas notaram que a teoria subjetiva não mais se adequava aos anseios da sociedade, principalmente no que se referia aos acidentes de trabalho que se tornaram muito comum com a mecanização e o consequente despreparo dos operários. Percebeu-se que a dificuldade em se comprovar a culpa do empregador era tamanha que o operário acabava desamparado judicialmente, sem a devida reparação.

Surge, assim, a responsabilidade objetiva, aplicada entre outros casos, nas relações de consumo. Nas palavras de Sérgio Cavalieri Filho:

“[...] a responsabilidade estabelecida no Código de Defesa do Consumidor é objetiva, fundada no dever e segurança do fornecedor em relação aos produtos e serviços lançados no mercado de consumo, razão pela qual não seria também demasiado afirmar que, a partir dele, a responsabilidade objetiva, que era exceção em nosso Direito, passou a ter um campo de incidência mais vasto do que a própria responsabilidade subjetiva”.34

Aliada à ideia de responsabilidade objetiva, veio a teoria do risco, no final do século XIX, desenvolvida principalmente na França. Segundo essa teoria, risco significa perigo, uma probabilidade maior de dano, significando que, aquele que exerce ou oferece um produto perigoso, deve arcar com os riscos e reparar os danos que dele forem decorrentes.

Entre as diversas espécies de risco apontadas pela doutrina, a comercialização do cigarro se enquadra no risco-proveito. Segundo Sérgio Cavalieri Filho, “responsável é aquele que tira proveito da atividade danosa, com base no princípio de que, onde está o ganho, aí reside o encargo - ubi emolumentum, ibi ônus”35

Há quem queira aplicar à indústria do cigarro a teoria do risco criado, segundo o qual aquele que, em razão da atividade ou profissão, cria um perigo, estaria sujeito à reparação, a menos que se comprovasse que todas as medidas foram tomadas para se evitar o dano. Contudo, no capítulo anterior, já houve a conclusão que a mera informação e previsibilidade não isenta os fabricantes dos danos causados, devido à imensa desproporção

34

CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de Responsabilidade Civil. 6. ed. São Paulo: Malheiros Editores Ltda, 2005, p. 40.

(28)

entre os custos e benefícios sociais da produção do cigarro e sua consequente periculosidade exagerada.

Assim, as empresas de cigarro se submetem à teoria objetiva da responsabilidade civil, havendo que se provar apenas o dano sofrido e o nexo de causalidade entre a conduta/omissão do agente e o dano arcado pelo consumidor, conforme já expressamente disposto pelo legislador no art. 931 do Código Civil.

Art. 931. Ressalvados outros casos previstos em lei especial, os empresários individuais e as empresas respondem independentemente de culpa pelos danos causados pelos produtos postos em circulação”.

O dano causado pelo cigarro é de fácil comprovação. Conforme já apontado em tópicos anteriores, o cigarro é responsável por diversos tipos de câncer, enfisema pulmonar, entre outros sérios problemas de saúde. Além disso, há que se apontar o dano psicológico causado pela dependência química e psíquica provocado, principalmente, pela nicotina presente nesse produto.

O dano social também ocorre, pois a família do fumante é afetada diretamente pelo vício do consumidor direto. O fumante passivo também sofre os efeitos do cigarro, apresentando diversas doenças relacionadas à fumaça. Ainda cabe elencar o dano moral arcado pelos familiares de parentes falecidos em decorrência do fumo.

O nexo de causalidade é o vínculo entre causa e efeito, da ação/omissão do agente causador do dano e do dano propriamente dito. Não há que se falar em reparação civil, se não há nexo de causalidade, por isso sua relevância.

Ocorre que, muitas vezes, essa determinação do nexo causal não é de fácil percepção, podendo, inclusive, ter situações em que ocorram diversas causas concomitantes para a ocorrência do fato danoso.

Ensina Otavio Luiz Rodrigues Junior, que

“Diante de múltiplas causas concomitantes, ao juiz caberá: (i) identificar qual dessas causas é preponderante, de modo a excluir as demais; e (ii) quando mais de uma causa tiver relevância decisiva para a produção do resultado, ou quando se mostrar impossível a determinação de qual delas foi

(29)

verdadeiramente preponderante, repartir o dever de indenizar, ocorrendo então o que se convencionou denominar culpa concorrente”.36

Dessa forma, primeiro tenta-se identificar uma causa preponderante, caso não seja possível, aplica-se a culpa concorrente, repartindo o dever de indenizar.

Algumas empresas argumentam que não seria possível identificar qual marca era utilizada pelo usuário do cigarro, rompendo-se assim, o nexo causal. Porém, esse argumento é facilmente afastado quando se tem entre as provas cabíveis, a testemunhal, permitida e prevista no Código de Processo Civil (CPC)37.

Art. 332. Todos os meios legais, bem como os moralmente legítimos, ainda que não especificados neste Código, são hábeis para provar a verdade dos fatos, em que se funda a ação ou a defesa”.

Art. 400. A prova testemunhal é sempre admissível, não dispondo a lei de modo diverso. O juiz indeferirá a inquirição de testemunhas sobre fatos: I - já provados por documento ou confissão da parte;

II - que só por documento ou por exame pericial puderem ser provados”.

Portanto, sabendo que os fumantes geralmente elegem uma marca e se utilizam dela durante toda a vida, raramente fazendo uso de outra que não a escolhida, fácil detectar a empresa responsável. Todos que convivem ao seu redor, parentes, amigos, donos de mercados próximos à residência sabem qual marca de cigarro é a mais comprada e podem ser testemunhas em uma possível lide.

Além disso, como se trata de uma típica relação de consumo, deve-se adotar a inversão do ônus probatório, cabendo à empresa, demonstrar que o consumidor não utilizava seu produto, ou que este não causou o dano questionado. Nesse sentido é a orientação do art.6º, inciso VIII, CDC.

Art. 6º São direitos básicos do consumidor:

[...]

VIII - a facilitação da defesa de seus direitos, inclusive com a inversão do ônus da prova, a seu favor, no processo civil, quando, a critério do juiz, for verossímil a alegação ou quando for ele hipossuficiente, segundo as regras ordinárias de experiências;

[...]”.

36 RODRIGUES FILHO, Otavio Luiz; MAMEDE, Gladson; ROCHA, Maria Vital da. Responsabilidade civil

contemporânea: em homenagem a Sílvio de Salvo Venosa. São Paulo: Atlas, 2011, p. 114.

37 BRASIL. Lei nº 5.869, de 11 de janeiro de 1973.Institui o Código de Processo Civil. Disponível em:

(30)

Neste ponto, muitas empresas alegam que a causa da morte do fumante não foi diretamente o cigarro, podendo ser ocasionada por outros fatores, tentando, com isso, romper o nexo causal e eximirem-se da responsabilidade.

Importante observar os índices de mortes relacionadas ao consumo de cigarro passados pelos órgãos de saúde, os números alarmantes de diversos tipos de câncer associados ao cigarro e outras estatísticas de amplo conhecimento na atualidade.

Após anos de consumo de um produto altamente nocivo, tendo a morte do indivíduo determinada por enfisema pulmonar, câncer de faringe, ou outras doenças correlatas, é incabível afirmar que não há nexo de causalidade entre a morte desse consumidor e a comercialização de cigarro.

Afirmar que a morte pode ter sido ocasionada por outros fatores que não o consumo diário de cigarro é desarrazoado, visto que o nexo causal é justamente o “[...] fator determinante do prejuízo”.38

A aplicação da presunção do nexo de causalidade torna-se essencial em diversos casos em que é impraticável exigir da vítima/autor da ação de indenização a prova do nexo causal. Por isso, afirma Caitlin Sampaio Mulholland:

“Daí a conclusão de que, em determinadas hipóteses, poderá o julgador utilizar-se das presunções como forma de benefício à vítima, favorecendo-a devido a sua incapacidade probatória estabelecida durante o processo. Surge, assim, a questão basilar deste livro: a identificação e aplicação da chamada presunção de causalidade, expediente que possibilidade a efetivação da obrigação de indenizar e a concretização do princípio da plena reparabilidade do dano injustamente sofrido, através de um juízo probabilístico”.39

Complementa Flávio Tartuce a respeito da presunção de causalidade, “cite-se, ainda, a correta aplicação da teoria da presunção de nexo de causalidade, utilizada em alguns julgados, que tem relação direta com a pressuposição de responsabilidade pela colocação das pessoas em risco pelo produto (mise em danger)”.40

38

GONÇALVES, Carlos Roberto. Responsabilidade civil de acordo com o Novo Código Civil (Lei n. 10.406, de 10-1-2002). 8. ed. rev. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 520.

39 MULHOLLAND, Caitlin Sampaio. A responsabilidade civil por presunção de causalidade. Rio de janeiro:

GZ Editora, 2010, p. 196.

40 TARTUCE, Flávio. Responsabilidade civil objetiva e risco - a teoria do risco concorrente. São Paulo: Editora

(31)

Ou seja, a exposição das pessoas a produtos nocivos, com periculosidade exagerada, por si só já é capaz de pressupor responsabilidade em caso de dano. Frise-se que há presunção relativa, pois a empresa tabagista poderá provar o contrário.

A aplicação da teoria da presunção de nexo de causalidade não se confunde com a inversão do ônus probatório, fato que permite sua aplicação inclusive aos casos anteriores ao Código de Defesa do Consumidor.

“O que ocorre, no caso, não é a inversão do ônus da prova, mas a consideração de que com a presunção dos fatos - e da causalidade - em favor dos argumentos da vítima, pesará sobre os ombros do réu da ação, pretendido responsável pela reparação, o dever de combater esta presunção, provando que de outra maneira deram-se os eventos que culminaram com o resultado danoso”.41

Dessa forma, deve-se presumir o nexo de causalidade em alguns casos em que se torna impossível a prova feita pelo autor, como nos casos de reparação decorrentes do cigarro anteriores à aplicação do Código de Defesa do Consumidor, ou então, determinar a inversão do ônus probatório, nos casos em que essa lei é aplicável, cabendo ao fabricante demonstrar que seu produto não foi determinante na ocorrência dos danos causados à vítima, ou então que seu produto não é passível de tais efeitos.

2.2 Responsabilidade do fumante em contraposição à das empresas fumígenas

As empresas ainda utilizam como argumento para se eximir do dever de reparação dos danos causados o livre-arbítrio dos consumidores. É o que defende Álvaro Villaça Azevedo em parecer para a Souza Cruz S.A:

“[...] a dependência física ou psicológica até pode enfraquecer o poder de recusa, até pode dificultar a decisão do usuário da substância de decidir não mais consumi-la, ante a necessidade sentida pela pessoa dependente. Porém, essa dificuldade é inerente aos seres humanos que estão acostumados a consumir substâncias que lhes proporcionam prazer”.42

41

MULHOLLAND, Caitlin Sampaio. A responsabilidade civil por presunção de causalidade. Rio de Janeiro: GZ Editora, 2010, p. 207-208.

42 AZEVEDO, Álvaro Villaça, A dependência ao tabaco e a sua influência na capacidade jurídica do indivíduo.

A caracterização de defeito no produto sob a ótica do Código de Defesa do Consumidor, in LOPEZ, Tereza Ancona (coordenadora). Estudos e pareceres sobre Livre-Arbítrio, responsabilidade e produto de risco inerente: o paradigma do tabaco, aspectos civis e processuais. Rio de Janeiro: Renovar, 2009, p. 71.

(32)

Mais a frente, o mesmo doutrinador ainda conclui: “Ainda que o tabaco contenha substância inerente (nicotina) que está associada à dependência, o que determina o começo e o fim dessa dependência é a vontade humana”.43

Destaca-se que esse parecer foi destinado a uma grande empresa de cigarro, logo, seus resultados são visivelmente tendenciosos. Esse argumento, contudo, não merece apoio pelas razões a seguir delineadas.

Cabe, primeiramente, entender o significado da palavra livre-arbítrio. Segundo o Dicionário Houaiss, livre-arbítrio é a “possibilidade de decidir, escolher em função da própria vontade, isenta de qualquer condicionamento, motivo ou causa determinante”.44

Ou seja, para que haja livre-arbítrio, faz-se necessário que não exista nenhum tipo de condicionamento, que a possibilidade de decidir seja plena.

Lúcio Delfino afirma em seu artigo, “O fumante e o livre-arbítrio: um polêmico tema envolvendo responsabilidade civil das indústrias do tabaco”, que

“[...] as decisões de iniciar a prática do tabagismo, e a de mantê-la viva no cotidiano, advêm de um ou alguns estímulos externos. São excitações exteriores que, de algum modo, influenciam a vontade do indivíduo, conduzindo a sua ação em direção ao consumo inicial e contínuo de tabaco. Sendo esse argumento verdadeiro – e ele efetivamente o é – certamente cairá por terra a tese do livre-arbítrio do fumante, sobretudo porque não haveria sentido em se defender uma propensa liberdade de agir, quando a vontade do indivíduo foi maculada, já que pastoreada para um determinado comportamento por fatores outros que não a sua própria consciência”.45

Citam-se como fatores externos capazes de influenciar a decisão livre dos indivíduos as constantes propagandas que veiculavam nos meios de comunicação associando o uso do produto ao sucesso, prática de esportes, intensa sexualidade e até mesmo autoafirmação social. Todo esse marketing em torno do cigarro aliado à omissão a cerca dos

43

AZEVEDO, Álvaro Villaça, A dependência ao tabaco e a sua influência na capacidade jurídica do indivíduo. A caracterização de defeito no produto sob a ótica do Código de Defesa do Consumidor, in Estudos e pareceres sobre Livre-Arbítrio, responsabilidade e produto de risco inerente: o paradigma do tabaco, aspectos civis e processuais. Rio de Janeiro: Renovar, 2009, p. 71.

44

HOUAISS, Dicionário Eletrônico da Língua Portuguesa. Disponível em: < http://200.241.192.6/cgi-bin/houaissnetb.dll/frame>. Acesso em: 22 fev. 2013.

45 DELFINO, Lúcio. O fumante e o livre-arbítrio: um polêmico tema envolvendo a responsabilidade civil das

indústrias do tabaco. Disponível em:

<http://www.rkladvocacia.com/arquivos/artigos/art_srt_arquivo20090329191746.pdf>. Acesso em: 22 fev. 2013.

(33)

perigos de seu consumo tornaram esse consumo um hábito social e influenciaram de forma maciça toda uma geração de jovens e adultos, principalmente entre as décadas de 50 e 90.

Após iniciar o consumo de cigarro, o livre-arbítrio fica ainda mais afastado devido à nicotina. O fumante não é capaz de largar seu vício de forma tão simples como a suposta pelo doutrinador em seu parecer. A nicotina é uma substância tão perigosa que já foi classificada como substância psicotrópica capaz de gerar transtornos mentais e de comportamento.

Não se trata aqui de mera substância que induz o cérebro a produzir a sensação de prazer e bem-estar, como comparou Álvaro Villaça com a cafeína. Adotar essa tese é desprezar um risco muito grande associada ao seu consumo.

Em parecer solicitado pela Associação Cearense de Defesa da Saúde do Fumante e Ex-fumante, o Prof. José Rosemberg fala a respeito do perigo da nicotina:

“Nos cigarros, os efeitos da nicotina são mais rápidos e devassadores. Após uma tragada, ela chega ao cérebro em nove segundos, valendo dizer que, em média, traga-se dez vezes cada cigarro. Quem fuma um maço de cigarros por dia, sofre, portanto, duzentos impactos cerebrais da nicotina, totalizando setenta e três mil impactos por ano. Nenhuma outra droga age com esse volume e intensidade, provocando malefícios e lesando praticamente todos os órgãos. Seu mecanismo farmacológico é semelhante ao da cocaína e heroína, e a dependência que provoca costuma ser mais intensa que a destas últimas”.46

Por isso, conclui Lúcio Delfino,

“Destarte, é de se ver que o argumento pautado no livre-arbítrio do fumante, como arma direcionada a excluir a responsabilidade civil da indústria do fumo, também cai por terra, sob uma análise voltada exclusivamente à nicotina, substância psicotrópica responsável pela dependência do fumante. Essa dependência, implantada no organismo do fumante pelo mero consumo de tabaco, apresenta-se como uma fortíssima influência externa, a mantê-lo na condição de tabagista, já que macula a sua vontade, impedindo-o de abdicar do fumo espontaneamente, por meio apenas de sua vontade”.47

46 DELFINO, Lúcio. Responsabilidade civil e tabagismo no código de defesa do consumidor. Belo Horizonte:

Del Rey, 2002, p. 10.

47

Idem. O fumante e o livre-arbítrio: um polêmico tema envolvendo a responsabilidade civil das indústrias do tabaco. Disponível em:

<http://www.rkladvocacia.com/arquivos/artigos/art_srt_arquivo20090329191746.pdf>. Acesso em: 22 fev. 2013.

(34)

Mais específico ainda são os casos dos fumantes que iniciaram seu hábito antes da divulgação dos efeitos maléficos do cigarro. Nestes casos, não há que se falar em livre-arbítrio, pois os consumidores sequer sabiam os efeitos do produto que estavam consumindo. Assim, para aqueles que começaram a fumar e se encontram hoje viciados, o livre-arbítrio em relação ao fumo é, senão anulado, em muito diminuído pelos efeitos da nicotina.

A alegação do livre-arbítrio fica condizente com a realidade, quando se tem como parâmetro pessoas adultas que iniciaram o consumo de cigarro após o conhecimento dos seus efeitos. Estes consumidores sabiam dos riscos aos quais estavam se submetendo e escolheram, mesmo assim, utilizar esse produto. Mas nem isso isenta totalmente a responsabilidade das empresas, fabricantes de um produto intrinsecamente prejudicial e viciante.

Nas palavras de Lúcio Delfino:

“Atualmente, vê-se o tabagismo como uma doença crônica pela enorme dificuldade para se eliminar o vício do fumante. Já se acreditou que a força de vontade era suficiente para quem quisesse parar de fumar. A ciência se encarregou de provar o contrário, ou seja, na prática, mesmo querendo, é muito difícil abandonar o consumo de tabaco”.48

Além disso, o direito à vida é indisponível. Por isso, ainda que o livre-arbítrio fosse exercido em sua inteira amplitude, não caberia comercializar um produto que atenta à vida do consumidor de forma tão contundente, como ressalta Leandro Adiers:

“Não há hipótese de manter-se no mercado produto perigoso e nocivo, que causa lesões e pode matar se utilizado do modo e para o fim a que se destina, resultados comprovados, atendendo-se à simples imposição de informar ao consumidor, eis que agredidos direitos indisponíveis”.49

Por isso, o simples fato de o ato ser lícito também não exime as empresas do seu dever de reparação dos riscos causados. Não existe direito adquirido de lesar.

Outro argumento utilizado pelas empresas de cigarro é que a livre iniciativa deve ser preservada. Todavia, esse argumento não se consolida, a livre iniciativa só é lícita

48

DELFINO, Lúcio. Responsabilidade Civil & tabagismo. Curitiba: Juruá, 2008, p. 45.

49 ADIERS, Leandro Bittencourt. Responsabilidade civil do fabricante de cigarros. Revista Jus Navigandi,ano 7,

Referencias

Documento similar

A  análise  do  funcionamento  de  cada  un  dos  títulos  e  do  SGIC  de  forma  global 

32. Sobre o tema, alguns estudos se debruçaram no tratamento do dano corporal – para além das obras citadas nesta pesquisa, cfr. 2005: A Reparação do dano corporal na

A gestão na saúde na AB que pretenda gerar o resultado de produzir saúde precisa pautar o tema da autonomia e responsabilidade do trabalhador em saúde, aproximando-o de

Após a análise, emergiram as seguintes categorias de análise: Estratégias de prevenção da obstrução em CVC-TI e Cuidados estabelecidos na desobstrução do

Este trabajo pretende aproximar el cálculo d e la infiltración d e lluvia útil me- diante la aplicación del método de Thornthwaite utilizando datos d e temperatura

sente em contextos da Beira Interior de finais da Idade do Bronze, como o Monte do Frade e a Moreirinha, aí representada pelo tipo 6 (Vilaça, 1995: 154‑155, 158, 231‑233),

Foram tomados como recursos estratégicos, presentes em uma rede do tipo distrito industrial, a transferência de conhecimento entre as empresas, o papel das

Orientação do Resultado (OR) * Nicho ou segmento de mercado * Mix de produtos * Posição de mercado * Participação de mercado * Posição em relação à concorrência * Análise