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A construção estética e cultural do crime em Coivara da Memória

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Academic year: 2021

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE

PRÓ-REITORIA DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS – PPGL

A CONSTRUÇÃO ESTÉTICA E CULTURAL DO CRIME EM COIVARA DA

MEMÓRIA

Auda Ribeiro Silva

São Cristóvão – SE Fevereiro de 2016

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE

PRÓ-REITORIA DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS – PPGL

A CONSTRUÇÃO ESTÉTICA E CULTURAL DO CRIME EM COIVARA DA

MEMÓRIA

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal de Sergipe, como requisito para a obtenção do título de Mestre em Letras. Orientador: Prof. Dr. Carlos Magno Gomes

Auda Ribeiro Silva

São Cristóvão – SE Fevereiro de 2016

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Auda Ribeiro Silva

A construção estética e cultural do crime em Coivara da memória

Esta dissertação foi julgada adequada à obtenção do título de Mestre em Estudos Literários e aprovada em sua forma final pelo Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal de Sergipe.

Banca Examinadora

_________________________________________________________ Prof. Dr. Carlos Magno Gomes (Presidente)

Universidade Federal de Sergipe

____________________________________________________________ Profa. Dra. Gislene Maria Barral Lima Felipe da Silva

SEE-DF/UnB

_________________________________________________________ Prof. Dr. Afonso Henrique Fávero

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AGRADECIMENTOS

Gratidão, essa é a palavra que traduz o meu sentimento por aqueles que direto ou indiretamente contribuíram para a realização dessa etapa.

Primeiro, quero agradecer imensamente a minha mãe por não medir esforços para que eu pudesse continuar estudando. Aos meus irmãos, cada um à sua maneira, pelo incentivo de sempre. Ao meu pai (in memória).

Aos meus professores Iranildo Freire, Arlene Soares e Maria do Socorro Soares, que já no Ensino Médio começaram esse trabalho de estímulo à pesquisa, em especial Socorrinha, que me apresentou a literatura.

A Josalba, minha professora de graduação, grande fomentadora às pesquisas avançadas, talvez a responsável por tudo isso. Ao meu orientador Carlos Magno, pelo privilégio de sua presença durante todo esse tempo. Cada orientação um aprendizado, sem sombras de dúvidas, a pessoa híbrida mais incrível que conheci na academia.

Ao meu companheiro Daniel por ter me aguentado nos momentos de loucura e segurado

a barra. E, claro, não poderia deixar de agradecer a todos os super-heróis que entreteram meu filho Bernardo para que essa pesquisa fosse realizada. A ele, pela doçura e compreensão pelos momentos em que faltei.

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Eu não me interesso pela ação, mas pelo que restou dela. (Roberto Polidori)

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RESUMO

Esta dissertação intenta investigar o crime na obra Coivara da memória, ou, por assim dizer, analisar como o delito é construído esteticamente e culturalmente nesse romance. Por consequência, objetiva-se compreender qual a identidade do narrador-protagonista, qual o seu lugar, enfim, como se estrutura essa narrativa. A discussão será norteada a partir do conceito de “mal de arquivo” (Derrida), que seria o desfalecimento da memória através da ambivalência do lembrar e esquecer. Isso porque, o narrador através do processo rememorativo desarquiva e arquiva as coivaras de sua vida e pretende escrever um livro sobre si mesmo na tentativa de expiar a própria culpa. Utilizamos também a noção de terceiro espaço, já que a voz de quem narra é de um sujeito marginalizado. Para tanto, a pesquisa apresenta-se em três capítulos, o primeiro tem como enfoque a recepção da obra de Francisco Dantas e sua fortuna crítica, como também faz uma apresentação do enredo da narrativa na perspectiva do crime, o qual é abordado sob o viés sociológico e enigmático. Esse estudo utiliza como aporte teórico o conceito de crime construído a partir das reflexões de Émile Durkheim (2001), Giddens (1989) e Michael Foucault (1987). O segundo diz respeito ao narrador-protagonista, cujo narrado é feito de acordo com o seu ponto de vista, que ora atua como sujeito, ora atua como objeto de suas memórias, visto ter no tempo uma fronteira pouco nítida entre passado e presente. Por essas e outras razões, esse narrador é fragmentado e contraditório, um sujeito fronteiriço. Essas discussões foram conduzidas pelos teóricos Dal Farra (1973), Mieke Bal (1990), Bhabha (2007), Stuart Hall (2000), Bauman (2006). Por fim, no terceiro capítulo enfatizamos o crime como mal de arquivo, observando os aspectos discursivos e as possíveis tocaias do crime e do texto como todo. Para esse debate usamos os conceitos “discurso” de Michel Foucault (1996), e “mal de arquivo” de Jacques Derrida (2001), dentre outros.

PALAVRAS-CHAVE: “Coivara da memória”, Crime, Narrador-protagonista, Arquivo e

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ABSTRACT

This paper attempts to investigate the crime in the work of Coivara da Memória, or, so to speak, to analyze how the offense is built aesthetically and culturally in this novel. Consequently, the objective is to understand what the identity of the narrator-protagonist, his place, in short, how this narrative is structured. The discussion will be guided by the concept of "archive fever" (mal

de arquivo) (Derrida), which is the breakdown of memory through the ambivalence of

remembering and forgetting. This is because the narrator through the process reminiscent unbinds and archives the coivaras of his life and wants to write a book about himself in an attempt to atone for his own fault. We also use the concept of third space, as the voice of the narrator is a subject marginalized. To this end, the research presents itself in three chapters, the first is to focus the reception of the work of Francisco Dantas and his critical fortune, but also makes a presentation of the narrative plot in crime perspective, which is covered under the sociological and enigmatic bias. This study uses as theoretical support the concept of crime built from the reflections of Emile Durkheim (2001), Giddens (1989) and Michel Foucault (1987). The second concerns the narrator-protagonist, whose narrative is done according to his point of view, which now acts as a subject, now acts as the object of his memoirs, as it has in time an unclear boundary between past and present. For these and other reasons, this narrator is fragmented and contradictory, a frontier subject. These discussions were conducted by theorists Dal Farra (1973), Mieke Bal (1990), Bhabha (2007), Stuart Hall (2000), Bauman (2006). Finally, in the third chapter we emphasize the crime as archive fever, observing the discursive aspects and possible ambushes of the crime and the text as whole. For this discussion we use the terms "speech" by Michel Foucault (1996), and "archive fever" by Jacques Derrida (2001), among others.

KEYWORDS:"Coivara da Memória", Crime, Narrator-protagonist, Archive and Displacements.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ... 9

1. ENTRE A RECEPÇÃO E O CRIME ... 14

1.1 Dantas, um artesão das palavras... ... 16

1.2 O olhar da fortuna crítica ... 20

1.3 Coivara de crimes ... 23

1.4 Mistério de um crime ... 30

2.NARRADOR: FRONTEIRA E CRIME ... 37

2.1 Narração e a construção do narrador-personagem ... 38

2.2 Narrador-protagonista, um sujeito do terceiro espaço ... 46

2.3 Um narrador criminoso ou narrador de um crime? ... 55

3. CONFLITOS E LIGAÇÕES ENTRE ARQUIVOS E CRIME ... 61

3.1 Tocaia e “verdades” ... 62

3.2 O crime como mal de arquivo... 70

3.3 Castigo como manutenção da culpa ... 82

4.CONSIDERAÇÕES FINAIS... 89

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INTRODUÇÃO

A história dos grandes acontecimentos do mundo não é mais do que a história dos seus crimes”.

(Voltaire)

Historicamente “o homicídio é tão velho quanto a fome” (ITAGIBA,1945, p.23). Na Pré-história são vários os relatos arqueológicos de corpos encontrados, através dos ossos era possível perceber a violência sofrida pelos mesmos. Naquela época matar era natural. Na Antiguidade, o homicídio era acordado em seus manuscritos, que ora eram tratados de forma mais severa, ora de forma mais branda. Já na Idade Média havia uma diferença entre o oriente e o ocidente. No oriente, o homicídio era tratado de acordo com a condição social da vítima, enquanto que, no ocidente, a pessoa que praticasse tal delito sofreria a denominada poena

temporales, ou seja, havia uma pena temporária para os homicidas (OLIVEIRA, 2011).

No Brasil, a história do homicídio pode ser dividida entre três fases: antes da colonização, Brasil colônia e Brasil independente. No período que antecede a colonização, o crime de assassinato entre os indígenas era resolvido a partir de vingança, não necessariamente contra o agressor, mas com qualquer membro de sua família. Já no Brasil colônia, o delito de homicídio era resolvido de acordo com Portugal, seu colonizador, adotando a legislação que vigorava no país luso, sobretudo, as Ordenações Filipinas, isto é, aquele que matasse ou mandasse matar teria como castigo a pena de morte. Enquanto que no Brasil independente há uma evolução no código penal, cuja pena variava de acordo com o delito, não havendo mais pena de morte. Na contemporaneidade, com muitas modificações, ainda vigora o código penal do Brasil independente, no que se refere à pena de morte e à variação da pena (OLIVEIRA, 2011).

Numa perspectiva sociológica do crime, Anthony Giddens (1989), em sua obra A

construção da sociedade, destaca que os estudos sobre o crime e o desvio se concentram como

fenômeno construído socialmente. Com isso rejeitam a ideia de que haja uma conduta própria do desviante. Para ele, “as teorias funcionalistas veem o crime e o desvio como resultado de

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tensões estruturais e da ausência de regulação da moral no seio da sociedade” (GIDDENS, 1989, p. 209). De modo igual para os interacionistas o crime não pode ser estudado, sem contudo estudar os seus autores sociais.

Nessa mesma direção, Emile Durkheim (2001) é inovador; na obra As regras do método

sociológico, ele explica a normalidade e a funcionalidade do crime, classificando-o como ‘fato

social’. Segundo Durkheim (2001, p.61), “O crime é, pois, necessário, ele se liga às condições fundamentais de toda ‘vida social’ e, por isso mesmo, tem sua utilidade, porque essas condições de que é solidário são elas próprias, indispensáveis à evolução normal da moral e do direito”. Assim, o crime exerce um papel bastante relevante na evolução da moral, pois além de mostrar várias possibilidades de aberturas às mudanças necessárias, em alguns casos prepara essas mudanças, ou, por assim dizer, onde existe é porque os sentimentos da coletividade estão flexíveis à novas formas, podendo ser ele o responsável pela antecipação da moral que está por vir (DURKHEIM, 2001). Portanto, sendo o crime normal, nenhuma sociedade está isenta dele. Michel Foucault, em Vigiar e punir (1987), aborda o crime na perspectiva do castigo. Para ele, fazer da punição e da repressão das ilegalidades uma função regular, coextensiva à sociedade: não punir menos, mas melhor; mas para punir talvez com mais universalidade e necessidade. De acordo com o filósofo, a sociedade deve inserir com mais veemência o poder de punir. (FOUCAULT, 1987)

Não obstante, a literatura sendo um produto dessa realidade, a abordagem sobre o crime está presente nas diversas obras de todos os tempos, seja por uma representação “entre os deuses e a humanidade ou mesmo entre os próprios seres humanos” (Crimes Pecados e Monstruosidades, 2010).

Dessa maneira, a representação do crime “dramatiza, de forma exemplar, a irrupção do mal na experiência humana. Desde os textos religiosos e mitológicos mais antigos, os crimes indicam uma ruptura na ordem social” (Crimes Pecados Monstruosidades, 2010). Basta recordamos, por exemplo, o homicídio relatado no texto bíblico no livro de Gênesis, crime conhecido se não por todos, mas por grande parte dos cristãos, o assassinato praticado por Caim contra o seu irmão Abel. Ele mato-o por ira, visto que Abel havia agradado ao senhor ao ofertar-lhe dos primogênitos do seu rebanho.

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A exemplo desse crime emblemático, encontramos outros tantos na mitologia grega, a começar pela Teogonia de Hesíodo em que o poeta, em seus versos, narra a trajetória dos deuses, inclusive de crimes. Um delito clássico era o que o titã Cronos praticava contra seus filhos recém-nascidos: “engolia-os o grande Cronos tão logo cada um / E o ventre sagrado da mãe descia aos joelhos, / Tramando-o para que outro dos magníficos Uranidas / não tivesse entre os mortais a honra do rei” (HESÍODO, 1995, p. 104). Essa violência era cometida por medo de perder o seu trono para os filhos, assim como aconteceu com o seu pai Urano, que deixou de possuir o trono, perdendo-o para Cronos.

Outra impetuosidade que não poderíamos deixar de mencionar são os crimes cometidos por Medéia na peça de Eurípedes. Ela, cega de ódio, além de já ter matado o seu irmão por amor a Jasão, mata por vingança a princesa, pretendente de Jasão, envenena-a, uma vez que Jasão intentava casar-se com ela. Não contente ainda, e com o intuito de causar toda a dor e sofrimento a Jasão, mata os seus filhos (EURÍPEDES, 1972).

Essa é apenas uma ilustração de que o crime não é novidade na literatura, há muito já eram explorados nos textos literários. No pensamento da era moderna, um dos grandes romances que se destacou nesse período foi Crime e castigo do escritor russo Dostoiévski, considerado pela crítica um dos mais bem escritos de toda literatura mundial. Nesse dito romance, a personagem principal Raskóinikov é um estudante que comete um crime de assassinato, ele mata a machadada a velha proprietária do apartamento onde morava. E, a partir de então, a vida de Raskóinikov é marcada por uma angústia psicológica, apesar de ter sido um crime perfeito (DOSTOIÉVSKI, 1998). “Crime e castigo” é um exemplo dentre outras obras em que o crime é retratado na literatura mundial.

Na literatura brasileira várias são as obras em que o crime se faz presente, sobretudo, com e após a estética naturalista. Lemos Brito (1946) em O crime e os criminosos na literatura Brasileira (1946) faz uma investigação sobre o crime na mesma, a começar pelo poema de Gonçalves Dias, O assassino (1851), cujo delito gira em torno de “um crime infando”

(GONÇALVES DIAS, 1851): ainda no romantismo, Franklin Távora em O cabeleira (1876)

documenta a vida de José Gomes um criminoso perverso que com seu bando devastou

Pernambuco. José de Alencar em Til (1872) apresenta uma personagem mística, que matava

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Na literatura, como já anunciado, a ênfase maior sobre o crime foi a estética naturalista com Aloísio Azevedo em O mulato, Casa de pensão, Memórias de um condenado, A condessa Vésper e outros textos. Ele nos presenteia com personagens conduzidas pelas forças inatas, numa concepção biológica do crime, a exemplo de narrativas como o Mulato (1881) com a trama de dona Quitéria e o religioso secular para a execução, por motivos raciais, do genitor de Raimundo (MESSA, 2002).

No Modernismo, em Angústia (1936) de Graciliano Ramos, Luís da Silva, uma

personagem de mente perturbada pelo assassinato do colega Julião Tavares, por ter conquistado

a sua pretendente. Em 1944 Lúcio Cardoso desnuda a alma humana com a novela Inácio na

qual o narrador Rogério de Palma se envolve numa situação criminal.

Esses e muitos outros exemplos da literatura brasileira servem para aclarar o quanto a literatura, além de uma representação estética e ficcional, fomenta no imaginário coletivo uma discussão e valorização de assuntos cotidianos. Desse modo, o crime sendo um “fato social”, e, portanto, normal, o escritor, atento a isso, transfere ao texto literário o vigor dos significados, de modo a refletir sobre temas cruciais à vida humana.

Posto que a literatura é um espaço que reflete as leituras do social, o tratamento sobre o

crime é presente em vários textos literários, ao longo dos tempos; a exemplo de Coivara da

memória (1991) de Francisco Dantas, cujo crime se apresenta como cerne da narrativa, pois é a partir do assassinato do coronel Tucão, caracterizado como o mandachuva da cidade Rios-das-paridas, ou da prisão do narrador-protagonista, que outras histórias vem à tona doravante ao processo rememorativo, inclusive a morte de seu pai, que tem relação direta com o suposto homicídio do Coronel.

Nesse sentido, uma das questões que mais chamou a atenção para a feitura desta dissertação foi analisar como o crime se apresenta nessa obra, e, ao mesmo tempo, a falta de análises dessa narrativa voltadas a essa temática. O que é uma tentativa de ampliar o olhar para a obra de Dantas.

Ao longo da apresentação da fortuna crítica de Francisco Dantas, é percebida a recorrência de algumas temáticas, a exemplo da abordagem sobre memória que perpassa vários textos, como também o processo de silenciamento e o ponto do ressurgimento do regionalismo (do romance de 30), ou mesmo do neorrealismo. Desse modo, é mister constatar a importância

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literária desse escritor, e obras como a sua sempre oferecem possibilidades de interpretação, sempre abrem leques para novas pesquisas, estudos que não foram ainda executados.

O crime no romance Coivara da memória, por exemplo, é um tema pouco estudado, e,

como é sabido, o homicídio é o motivo desencadeador dessa narrativa. Assim, nesse viés do delito, a presente dissertação intitulada A construção estética e cultural do crime em “Coivara

da memória”, tem como objetivo investigar os recursos estéticos que organizam

estruturalmente essa narrativa, assim como o homicídio é apresentado no texto e como é entendido culturalmente. Ao analisar o crime nessa obra, trabalhamos com a hipótese do crime não só enquanto crime, mas o crime enquanto jogo da linguagem para iluminar a própria interpretação da obra, uma vez que a ideia de crime expressa no texto é tanto forma quanto conteúdo, ou, por assim dizer, é o elemento estético fundido no cultural para dar forma ao texto. Dessa maneira, a investigação sobre o crime em Coivara da memória parte inicialmente de uma visão mais ampla para aspectos mais específicos, a exemplo da análise do crime como

mal de arquivo. Na obra Mal de arquivo: uma impressão freudiana (2001), Derrida faz uma

crítica à concepção clássica de arquivo, deslocando para o mal de arquivo que deixa de ter uma visão ontológica que registra um início e data uma história para movimentar-se por uma pulsão arquiviolítica, sendo pois o lugar da memória, mas também do esquecimento (SOLIS, 2014). Nesse viés, o arquivo do assassinato aparece como o mal de arquivo, uma vez que possibilita um universo de rastros, ou como Dirse Solis em seu texto Tela desconstrucionista (2014) analisa que o arquivo e mal de arquivo, a partir de Jacques Derrida, é denominado sendo “o cemitério povoado de vidas e memórias. É o lugar do morto-vivo” (SOLIS, 2014, p. 385).

Assim, o arquivo é diretamente possibilitado pela “pulsão de morte, de agressão e destruição, isto é, também pela finitude e pela expropriação originárias. Mas além da finitude como limite, há, dizíamos antes, este movimento in-finito de destruição radical sem o qual não surgiria nenhum desejo nem mal de arquivo” (DERRIDA, 2001, pp. 121-122). Nessa direção, ao longo desta pesquisa utilizamos o termo arquivo, no sentido atribuído por Derrida, tanto no que se refere ao arquivo maldito, quanto no sentido mais aberto e revolucionário do lembrar e esquecer.

Essa e outras discussões são feitas neste trabalho dissertativo que está dividido em três capítulos, esses, subdivididos em três tópicos, com exceção do primeiro que está dividido em

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quatro itens. No primeiro deles, “Entre a recepção e o crime”, tem-se uma abordagem da crítica literária sobre a obra de Francisco Dantas, bem como pontua alguns aspectos relevantes de sua vida e de sua fortuna crítica. Em seguida, foi feita uma ambientação da obra, de modo a situar o crime e as personagens de relevo. Logo após, pensando o crime como “fato social” ligado às condições fundamentais em sociedade, fizemos uma discussão sociológica do termo numa relação com o crime retratado na obra. Por fim, analisamos o crime do coronel Tucão, refletindo suas marcas e o mistério que gira em torno dele.

No segundo capítulo, cujo tema é “Narrador: fronteira e crime” foram analisadas características gerais sobre o foco narrativo, visto ser ele o grande responsável pelo conjunto de conhecimento existente no texto. Inicialmente, discutiu-se sobre narrador-personagem, por se tratar de uma narrativa de primeira pessoa, em seguida, foi analisado o narrador-protagonista como sujeito-margem, uma possível personagem do terceiro espaço. Além disso foi debatido sobre a situação criminal desse narrador, examinando a possibilidade do serventuário apenas narrar um crime ou ser um narrador criminoso.

No último capítulo “Conflitos e ligações entre arquivos e crime”, observou-se uma possível correlação existente entre mal de arquivo, tocaias e crimes, uma vez que, sob a nossa perspectiva, a narrativa é construída com base nesse tripé. No primeiro instante, foi verificado a veracidade do discurso do narrador, pois o mesmo é apresentado de forma fragmentada e ambígua, como também, as ciladas apresentadas no texto. Em seguida, debateu-se sobre o crime como mal de arquivo, ou mesmo arquivo maldito, o protagonista ao rememorar ele desarquiva vários arquivos, mas é surpreendido pelas falhas da memória e nesse lembrar e esquecer compõe o arquivo do crime. Ademais, foi examinado o castigo como manutenção da culpa, observando a culpa como parte do ato de narrar.

Por fim, nesta dissertação, não temos o intuito de desvendar o mistério que gira em torno do crime, mas acima de tudo, elucidar como ele se apresenta nessa narrativa tanto no plano estético, quanto no plano cultural.

1 – ENTRE A RECEPÇÃO E O CRIME

Este quadrado de pedras é um retalho íntimo e rumoroso, onde lampadejam réstias e murmúrios, avencas e urtigas. Aqui encafuado, as juntas emperram, as têmporas

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pesam e o ânimo se amolenta, de tal modo que a cada semana vou ficando mais bambo das pernas e zonzo da cabeça” (Dantas, 2013, p.15).

Com essas palavras em epígrafe começa o romance Coivara da memória, cujo

narrador-protagonista se encontra em prisão domiciliar pelo suposto assassinato do coronel Tucão. É sob

o viés dessas lembranças que o crime é apresentado em Coivara da memória, visto ser ele o

desencadeador desse processo rememorativo; ou seja, o crime, ou mesmo a sua prisão, é o que o leva a fazer esse mergulho no seu passado, podendo ser pensado, portanto, como a peça chave dessa narrativa. E ao pensar em crime, tem-se ao longo dos tempos uma evolução conceitual do termo.

Segundo Giddens (1989), uma das primeiras tentativas de explicar o crime foi atribuir a ele um caráter biológico, ou seja, “os indivíduos possuíam traços inatos que seriam a fonte do crime e do desvio” (GIDDENS, 1989, p. 207). Nessa direção, a sociedade em geral entendia o crime de forma restrita, cujo criminoso era compreendido de acordo com as suas características individuais, não existindo uma relação com a sociedade a qual estava inserido. Sociologicamente, o crime passa a ser pensado como funcional e normal, o que seria uma mudança na perspectiva das explicações individualistas para as forças sociais. Dessa forma, a obra de Durkheim enfatiza e compreende a relação entre o crime e a sociedade, ou seja, as ideias desse sociólogo a despeito do crime e o do desvio influenciaram no sentido de transferir esclarecimentos individuais para a sociedade (GIDDENS, 1989). Para ele o crime não tinha um caráter patológico, ele o caracterizava como “fato social”. Nessa natureza, “encarar o crime como uma doença social seria o mesmo que admitir a doença como algo não acidental” (DRUKHEIM, 2001, p.61).

Destarte, ele imprime ao crime um caráter de normalidade, visto que o mesmo está diretamente ligado às condições de vida em sociedade. Ainda de acordo com o teórico, “[...] o crime é normal porque seria inteiramente impossível uma sociedade que se mostrasse isenta dele” (DURKHEIM, 2001, p.58). A partir dessa concepção, o crime não é encontrado somente na maioria das sociedades, mas em todas as sociedades, independente dos tipos. Ao colocar isso, o sociólogo afirma que em todos os tempos existiram homens que conduziam para o crime, explicando assim a sua normalidade.

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No entanto, ele explica que a punição deve ser do tamanho do delito, e que o crime pode apresentar formas anormais, no caso de atingir taxas exageradas. Dessa forma, a interação é responsável pela sociedade. É por meio dela que a sociedade é formada, reiterada e transformada, bem como é pela ausência de interação contínua entre os indivíduos que a sociedade deixa de existir. Desse modo, para os interacionistas o crime não é uma manifestação individual, ele é, antes de tudo, o resultado de uma construção social, ou seja, um indivíduo reconhecido publicamente como um criminoso, a sociedade se relaciona e interage com as expectativas construídas sobre ele, levando sempre em conta a sua ação criminosa (MIRANDA, 2011).

Utilizaremos esses conceitos para entendermos o crime, aqui nesta pesquisa, como ‘fato social’ e, portanto, normal. Dessa forma, como esta dissertação objetiva investigar o crime na obra de Dantas, é pertinente apresentarmos antes, no primeiro tópico deste capítulo, o escritor Francisco Dantas, bem como a recepção de suas obras pela crítica literária. No segundo tópico, abordaremos o enredo da dita obra, como também, uma análise estética e social do crime. No terceiro momento, ainda numa visão estética, discutiremos as marcas de mistério em torno do crime do qual o narrador-protagonista está sendo julgado.

1.1 – Dantas, um artesão das palavras...

Em outubro de 1941 nasce em Riachão do Dantas/SE o eleito pela crítica como um bom prosador, Francisco José Costa Dantas. Ele viveu a sua infância no engenho dos seus avós; quando adulto continuou a vida simples e modesta do campo, e, até hoje, através de seus bichos e de suas plantas, permanece em contato direto com a natureza.

Dantas, ao longo de sua vida foi bastante ativo, visto já ter desempenhado vários papéis, de menino da bagaceira a diretor de escola. Quanto à vida acadêmica, ingressou tardiamente, aos trinta anos, no curso de Letras na Universidade Federal de Sergipe. No entanto, levava consigo um repertório vasto de leitura, visto já ter lido a obra completa de José Lins do Rego, Graciliano Ramos e João Guimarães Rosa. Esses, sem sombras de dúvidas, o influenciaram na composição de sua escritura.

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Em 1981 fez mestrado em Literatura Brasileira pela Universidade Federal da Paraíba, cuja pesquisa tinha como foco a obra de Osman Lins, intitulada Anotações à margem de O Fiel

e a Pedra. Com a tese A mulher no romance de Eça de Queiroz, em 1990 defende seu doutorado

em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo. Foi professor da Universidade Federal de Sergipe, pela qual é aposentado. Em 2000 deu aulas regulares de Literatura Brasileira em Berkeley (Universidade da Califórnia), no mesmo ano recebeu o Prêmio Internacional da União Latina de Literaturas Românicas pelo conjunto de suas obras. Em 1991, publica Coivara

da memória (Estação Liberdade); em 1993, Os desvalidos (Companhia das Letras); em 1997,

Cartilha do silêncio (Companhia das Letras); em 2004, Sob o peso das sombras (Planeta). Em

2005, Cabo Josino Viloso (Planeta) e, em 2012 publica pela Objetiva Caderno de ruminações, até o momento, essas são as obras que compõem a produção de Francisco Dantas.

Destarte, o reconhecimento desse prosador ultrapassa os limites nacionais e ganha prestígio no meio literário, uma vez que é muito bem recebido pela crítica. Dantas é considerado um dos grandes expoentes da literatura brasileira na contemporaneidade, tem-se em seus romances um domínio vocabular do cotidiano empregado de forma poética, cujo simples fica sofisticado. Ele “tempera a palavra, lardeando-a com os sabores mais (in) significantes da vida comum, é uma palavra que redemoinha os sentidos através das sensações e que nos chega por meio das pessoas-personagens” (SACRAMENTO, 2004, p.33). Esse trabalho artesanal com a palavra justifica afirmar que o seu reconhecimento não está em sua regência em sala de aula, mas, sim, em sua produção literária.

As primeiras acolhidas da crítica literária atribuem como origem à narrativa de Dantas o romance neorrealista de 30, sem, contudo, fazer dessa ligação uma característica que reduza o valor de sua obra. Em relação a dita estética, Candido em Literatura e sociedade (2006, p.130) afirma que “a prosa liberta e amadurecida, se desenvolve no romance e no conto, que vivem uma de suas quadras mais ricas. Romance fortemente marcado de neo-naturalismo de inspiração popular, visando aos dramas contidos em aspectos característicos do país”. De modo que as temáticas sobre a decadência da aristocracia rural e formação do proletariado; poesia e luta do trabalhador; êxodo rural; cangaço e vida difícil nas cidades em rápida transformação, dos respectivos escritores José Lins do Rego, Amando Fontes, Jorge Amado, Graciliano Ramos, José Américo, Raquel de Queiroz e Érico Veríssimo são recorrentes em suas obras.

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Assim como a preponderância dos problemas psicológicos dos personagens – a sua força e a sua fraqueza – são traços marcados com frequência no decênio de 1930 (CANDIDO, 2006).

Essa escrita de afirmação que tem como preceito, ou, por assim dizer, que trata do regionalismo objetiva concretizar uma literatura de identidade tipicamente brasileira e necessariamente nordestina, cujo texto está ligado intrinsicamente ao contexto, pois a “integridade da obra não permite adotar nenhuma dessas visões dissociadas e que só podemos entender fundindo texto e contexto numa interpretação dialeticamente íntegra” CANDIDO, 2006, p.12). A esse respeito, Francisco Dantas é um exemplo, visto que as marcas de seu texto provêm de suas raízes, do contexto em que se encontra inserido, essa característica sempre é ratificada por ele. De acordo com o escritor:

A literatura tem de se abastecer nas raízes do contexto de formação do próprio escritor. Que só podemos escrever exuberantemente quando nos abandonarmos e abrirmos os ouvidos às forças inconscientes que nos rodeiam e alimentaram a nossa formação (...) nascem da experiência substancial que só o contato direto possibilita (DANTAS, 2002, p. 390)

Nesse mesmo aspecto, se por um lado, temos em Graciliano Ramos um escritor que tinha em sua escritura uma profunda e visceral ligação ao contexto, por outro, um Guimarães Rosa que deu volta ao mundo e pensou em muitas línguas, no entanto, a sua linha de frente estava em suas raízes, no chão de sua terra (DANTAS 2002). Assim como esses dois escritores, Dantas tira em Sergipe, seio de sua terra, o substrato para a construção de suas narrativas, de modo que as suas experiências como menino de engenho, escrivão de cartório reverberam muito em suas obras, sobretudo em Coivara da memória.

Coivara da memória (1991) marca a estreia de Francisco Dantas na literatura, estreia

atestada pelo próprio como tardia “estreei aos cinquenta anos por escrúpulos, por um sentimento de dignidade diante da literatura. Só aí me senti em condições de passar à confraria rarefeita dos romancistas” (1995, p.8). Ainda assim, não tinha muita confiança e se achava um presunçoso. Nessa dita narrativa, temáticas como: denúncia social, decadência da família patriarcal, o regional através do povo nordestino reaparecem como no romance de 30. Segundo José Paulo Paes:

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Poucas vezes terá visto o romance brasileiro uma estreia tão segura de si quanto a de Francisco J. C. Dantas com Coivara da memória. O precedente, ilustre, que logo acode à lembrança é obviamente o de Graciliano Ramos com Caetés (1933). Tal como ex-prefeito de Palmeiras dos Índios que se apresentou escritor já feito aos olhos dos seus primeiros leitores, este sergipano professor de Letras que, além de ter cumprido a penitência de duas teses universitárias, só publicara até agora contos e ensaios esparsos, é dono de uma linguagem vigorosa, pessoal, rara de encontrar-se num romance de estreia. [...] Coivara da memória é outrossim, como Caetés, um romance meio fora de moda. Melhor dizendo: providencialmente fora de moda. O naturalismo à Eça de Queirós do retrato de costumes provincianos em que Caetés se esmerava era reconhecivelmente tardio em relação ao tom da nova prosa de ficção inaugurada desde 1930 por o Quinze de Raquel de Queiroz, seguido dois anos depois por Menino de engenho de José Lins do Rego, com cuja desafetação tão coloquialmente brasileira contrastava o leve ranço lusitano do Graciliano estreante. (Dantas, 2013, pp. 7-8)

Paes ainda acentua que, ao ressurgirem as temáticas de 30 em seu livro, Francisco Dantas mostra o quanto pode ser um ficcionista instigador com marcas de originalidade, em que mescla a tradição e a invenção e ambas se completam e embelezam o estilo. Assim como Paulo Paes, Bosi no paratexto de Os desvalidos enfatiza que a prosa de Dantas “alcança o equilíbrio árduo entre a oralidade da tradição, cujos veios não cessa de perseguir, e uma dicção empenhadamente literária que modula o fraseado clássico até os confins da maneira” (DANTAS, 1993). Para ele Francisco Dantas esculpe a “figura da dignidade humana na matéria do sertanejo nordestino” (DANTAS, 1993). No tocante aos traços regionalistas na obra de Dantas, sobretudo em Coivara da memória e Os desvalidos, Bosi em História concisa da literatura (2002) afirma:

E se o assunto é trabalho de forma expressiva, sirva de fecho a este esboço de roteiro a menção de duas obras que abriram de modo promissor o último decênio do século: Coivara da memória e Os desvalidos de Francisco J. C. Dantas. Regionalismo ainda? Pergunta que provoca outras, mais pertinentes: teriam, acaso sumido para sempre as práticas simbólicas de comunidades inteiras que viveram no sertão nordestino, só porque uma parte da região entrou no ritmo da indústria e do capitalismo comercial? É lícito subtrair do escritor que nasceu e cresceu em um engenho o direito de recriar o imaginário de sua infância e de seus antepassados, pelo simples fato de ele ser professor de universidade ou digitar seus textos em um computador? (2002, p 437 -438)

Ao fazer esses questionamentos sobre o aparecimento ou o fim das expressões regionalistas, Bosi insere Dantas na ficção de 70 e 90, uma vez que além dos traços regionais presentes na obra desse prosador, o social é bem demarcado. Segundo Bosi, Dantas dá aos excluídos um lugar de relevo, e essa propensão até então era pouco explorada na ficção,

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começou na década de 70, e só então nos anos 80 e 90 que a voz desses anônimos, negros, pobres, loucos, mulheres, aparecem em maior destaque a partir da representação dos tipos sociais que estavam à margem (GLAUCILENE, 2010). Nesse sentido, restringir a narrativa de Dantas apenas ao romance neorrealista de 30 é reduzir o seu valor literário. Prova disso é

quando pensamos no processo memorialístico tão ressaltado em Coivara da memória, em que

Benedito Nunes, no paratexto da obra, não mede esforços ao comparar essa narrativa de Dantas com Em busca do tempo perdido de Proust, cujo tempo e a memória é bem demarcada em ambas. De acordo com Nunes:

[...] A busca do tempo perdido, o mergulho para recuperar ‘algumas manchas luminosas’ do passado, faz-se aqui em luta contra ardis do tempo como revivescência de um mundo arcaico, ‘canteiro de ruínas.

A esses ardis do tempo, transformando coisas e pessoas, o narrador ciente, ‘paparicador’ de livros convertido em escritos capaz de traduzir ‘reminiscências em frases escovadas’ numa mimese da escorreita sintaxe dos escribas públicos fiel a por menores, opõe os ardis da forma. O primeiro é o lastro da cor local na linguagem, possibilitando situar as evocações do narrador nos marcos de uma região. O segundo é a quebra do monólogo interior pela evocação dramática dos antepassados, expandida numa sucessão de episódios. (DANTAS, 1991)

Além da comparação, Nunes define a primeira obra de Dantas como uma “escrita de implantação”, visto estar enraizada à terra, ou seja, ao espaço que serviu de apoio ao patriarcalismo. Dessa forma, embora o autor traga elementos da cultura regional, muitos dos aspectos abordados em suas narrativas excedem os limites locais e discutem problemas humanos além fronteiras.

1. 2 – O olhar da fortuna crítica

A obra de Dantas abre espaço para várias interpretações, com isso muitas abordagens já foram feitas com base em sua ficção. Nesse sentido faremos uma breve apresentação das pesquisas que são relevantes para o reconhecimento da obra de Francisco Dantas.

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A primeira dissertação e de importância para os estudos avançados foi a da pesquisadora Eliana Maria de Freitas Thiossi, intitulada Nas tramas e trilhas do regionalismo defendida pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul em 1996. Nessa pesquisa Thiossi analisa a problemática do regionalismo e as relações intertextuais. Para tanto, a pesquisadora faz um panorama do regionalismo brasileiro e, consequentemente, do romance de 30, como também dos escritores e textos que influenciaram as narrativas de Dantas. Ao pensar nessas influências, Thiossi destaca que a comparação é inevitável entre Francisco Dantas e Lins do Rego e Graciliano Ramos. Enquanto o primeiro se assemelha no tocante ao enredo, visto que ambos falam do ciclo da cana de açúcar, no segundo a parecença está no estilo, ou seja na composição do narrador, das personagens, do espaço e do tempo. Além disso, a pesquisa analisa também os aspectos de “vozes do romance”, “duração enganosa” e “intertextualidade da memória”.

Outra dissertação que merece destaque é a da pesquisadora Adriana Sacramento defendida no ano de 2004 pela Universidade de Brasília, cujo título À sombra da barriguda: memória e experiência em Coivara da memória examina a intercepção da memória e da experiência que perpassa a narrativa, visto que a memória é traduzida em escritura. Seu estudo enfatiza o quanto Dantas projeta a palavra de forma artesanal, em que transcreve para a sua ficção uma espécie do vivido, do experienciado; para ela, Dantas “carrega a pulsação do que vive”. (2004, p. 4). Desse modo, a pesquisadora investiga o discurso rememorativo do narrador, bem como seu processo de escrita.

Numa perspectiva sociológica, Sidiney Menezes Gerônimo apresentou em 2008 pela Universidade Federal de Sergipe sua dissertação de mestrado com o título “Lavoura de delícias”: visibilidades de Gênero nos romances de Francisco Dantas, cuja investigação se pauta na compreensão das entrelaçadas relações de gênero presentificadas no seio patriarcal da região nordeste. O estudo é feito à luz das imagens construídas para o feminino e o masculino nas obras do dito escritor. De acordo com o pesquisador, o que o intrigava era “a conduta das personagens femininas de Dantas, ora expressão de uma ordem social dominada pelos homens, ora mulheres que ousavam sonhar além do que lhes oferecia a sociedade patriarcal” (GERÔNIMO, 2008, p. 12). Da mesma forma, para o estudioso, as personagens do sexo masculino descritas nos romances não estavam de acordo com o meio, ou por assim dizer, estavam deslocadas, pois na sociedade de até então só havia espaço para os homens-machos.

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Enfim, Gerônimo observa que Dantas “assumiu uma perspectiva que considera as identidades de gênero como produtos de uma construção social” (p, 12).

Na tese de doutorado (2007) Entre a fé cega e a faca amolada: representações ficcionais do cangaço, Wagner de Souza analisa o entrecruzamento de fontes históricas e sociológicas presentes nas narrativas ficcionais, dentre elas Os desvalidos de Francisco Dantas. O autor dedica seu quarto capítulo à pesquisa da poética pós-moderna representada pelo “mosaico de vozes em que o cangaceiro fala de si e reclama uma série de eventos que não foram registrados sobre ele, tanto na literatura, como nos cordéis, na sociologia e na história” (SOUZA, 2007, p. 16). Nesse sentido, o pesquisador explora as vozes marcadas pela dualidade dos discursos erudito e popular tão evidenciados no dito romance. Com isso o estudo dá vasão ao diálogo da literatura canônica e a oral, destacados na obra de Dantas.

Isabel Cristina da Costa Bezerra Oliveira em sua tese de doutorado (2010), A dupla

poética do silêncio: uma análise de Fogo Morto e Cartilha do silêncio, examina as pressões

que emergem no seio familiar e social, bem como a decadência e a relação de classe que demarcam os engenhos de formas variadas. A pesquisadora observa nessas obras que o tradicional e moderno se entrecruzam e a temática do silêncio se faz evidente na expansão das ações da trama. Oliveira enfatiza que “o silêncio mencionado nas narrativas revela-se de várias modalidades e características sociais que a modernidade exerce sobre o homem, dentre eles, o silêncio nos percursos das personagens, o silêncio do amor, da morte, da resistência da culpa e da solidão” (OLIVEIRA, 2010, p. 16).

Nesse mesmo ano (2010), Joseane Souza Fonsêca apresenta a dissertação A personagem

feminina subalterna na ficção de Nélida Piñon e Francisco Dantas pela Universidade Federal

de Sergipe, cuja investigação objetiva analisar as personagens femininas dos romances A doce canção de Caetana (1987), de Nélida Piñon, e Cartilha de silêncio (1997), de Francisco Dantas, numa perspectiva comparatista e sociocultural. A pesquisa tem como foco a análise de gênero, observando os dispositivos de poder no que diz respeito a opressão aos subordinados em vários aspectos, principalmente de classe e de gênero.

Em 2010 Maria Luzia Oliveira Andrade defende pela Universidade Federal de Sergipe a dissertação A memória na ficção de Francisco Dantas: cenas da narrativa e do narrador pós-moderno, em que são examinadas as maneiras de narrar a memória e suas implicações,

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observando de que maneira a memória é construída e representada, sabendo-se que todo narrado é feito de forma fragmentada. Em sua análise, a estudiosa alude que o prosador se utiliza da ironia para mostrar o quanto a rememoração reflete a tradição, como também, a partir desse processo rememorativo, Dantas faz vir à tona vozes até então excluídas, ou por assim dizer, o poder do discurso das margens aparece de forma intensificada.

Glaucilene Reis Teixeira, no mesmo ano (2010), apresenta pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul sua dissertação intitulada O desvelar do silêncio em “Coivara da Memória”, de Francisco Dantas, cujo objetivo é elucidar o processo de silenciamento e o percurso existencial das personagens dessa obra; do mesmo modo, entender que o uso da palavra ou mesmo o silêncio tem ligação direta com a dominação social. Nesse sentido, a pesquisadora em seu estudo analisa “que a palavra de ordem legitimada pela religião materializou-se como força de lei em Rio das paridas, lei desigual e injusta que oprime os habitantes desprovido de poder financeiro e interdita a posição dos falantes” (TEIXEIRA, 2010, p. 33). Isso significa dizer, de acordo com a pesquisadora, que a origem da cidade é marcada pela dominação, e por se tratar de uma sociedade patriarcal, a voz masculina é hegemônica em detrimento das mulheres e dos despossuídos que protagonizam um sistema de silenciamento e opressão.

Ainda em 2010, num panorama mais histórico e voltado para os estudos culturais, Aldair

Smith Menezes defende a dissertação O cangaço do sertão d’Os desvalidos, em que investiga

o significado do cangaço e do sertão a partir do romance Os desvalidos de Francisco Dantas, analisando assim as relações sociais e o seu processo de modernização. O estudo é feito na perspectiva de compreender o sertão e o cangaço nos aspectos: social, político, econômico e climático, e, a partir de então, entender a composição das identidades culturais representadas e destacadas nesse romance.

Feita a apresentação do autor e a apreciação da crítica acerca de sua obra, no próximo

item situaremos a obra em análise, a saber, Coivara da memória, numa abordagem do crime.

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Faremos neste tópico uma breve exibição do enredo da obra, para podermos entender de quais crimes estamos falando, de modo a perceber que os mesmos estão diretamente relacionados com os conceitos sociológicos acima abordados, visto que não se trata de uma patologia, mas, sobretudo, de um “fato social”.

Coivara da memória1 é considerada uma das grandes obras do escritor, como

mencionado antes. A história que se desenrola no romance, ambientado no município Rio-das-paridas, cidade fictícia, localizada no Centro-Sul de Sergipe, é uma narrativa, em primeira pessoa, cujo protagonista aguarda julgamento em prisão domiciliar por um crime que ninguém sabe com precisão se ele o cometeu. Concomitante a essa narrativa, outras narrativas aparecem a partir do processo rememorativo, a exemplo da história dos avós maternos do escrivão e do engenho Murituba.

Órfão de pai e mãe, o narrador-personagem, que não é identificado na trama, pois o seu nome não aparece, ressignifica a sua existência a partir da memória de um passado marcado por transformações individuais e sociais, sobretudo no tocante à família Costa Lisboa, que representa o início, o auge e o declínio do ciclo da cana-de-açúcar. O protagonista segue a mesma carreira de escrivão do pai, do qual herda o cartório. Sendo criado pelos avós maternos, o narrador-personagem2 vive a sua infância no engenho Murituba em Rio-das-paridas, onde guarda muitas recordações, especialmente de sua avó. Essa passagem ilustra bastante as primeiras lições de dureza passada por ela:

Foi essa avó assim à sua maneira submissa e sem arrebiques, algemada no inquieto labutar silencioso, quem me ensinou (em vão?), com o refrão de sua prática rotineira, as primeiras lições de dureza, o jeito descarnado de acetar em linha reta os infortúnios, o modo mais cru de domar o quinhão de dores batendo na desgraça de cara, aparando as cacetadas do lajedo do peito. Não sabia sequer implorar com as chamas dos olhos! Sempre descera aos abismos que lhe couberam sem estugar o passo firme, a mão ensopada de feridas. Nada de coleios nem atenuamentos, nada de melindres ou eufemismos! Com a mesma serenidade imbatível, sempre a vi sobrepor aos assaltos que desencadearam a decadência de meu avô. (CM, p.111)

1 Nesta dissertação, para citação no corpo do texto, utilizaremos a 4ª edição do romance Coivara da memória,

publicado em 2013. Como também, usaremos apenas a abreviatura da obra CM, seguido do número das páginas.

2 Usaremos no longo do texto os seguintes termos para designar a personagem principal: escrivão, escrivão do

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Esse foi um período significativo para o serventuário do cartório, pois teve a oportunidade de conviver com a sua avó, que, juntamente com a personagem Tia Justina, são a representação feminina em sua vida, uma no plano do passado (no caso da avó) e a outra no plano do presente (no caso de Tia Justina).

Quanto ao avô, sua representação masculina, era responsável por passar “os pequenos conhecimentos cristalizados em hábitos recorrentes que eram exercidos todos os dias no amanho da terra” (CM, p. 190). O afeto dele para com o neto, por ter um jeito durão de ser, era bastante silenciado, uma das maneiras de demonstrar o seu sentimento era estar a todo tempo com ele “de tanto pegadio com o neto, até nos menores quefazeres fora de hora meu avô me queria com a cara metida nas coisas que as suas mãos manejavam” (CM, p.190).

Das lembranças mais marcantes dessa fase de criança, a morte de seu pai, que morreu a mando do coronel Tucão, de ataque inesperado e traiçoeiro, é sem dúvidas a maior. Alimentado dessa lembrança, faz juramentos de vingança à morte de seu pai. Para o escrivão, dito pelo próprio, “o velho Tucão é quem mais me secava o sono e me tomava o tempo, visto que mandara oficiar a morte de seu pai” (CM, p.291).

Por conseguinte, é acusado de matar o coronel Tucão, tio e desígnio de vingança do protagonista, que é preso em flagrante. Embora estivesse no local do crime, em nenhum momento da narrativa há uma confirmação dos fatos, ou, por assim dizer, o assassinato do Coronel não é esclarecido. Dessa maneira esse crime se configura o grande mistério da obra.

Preso em um cartório, transformado em casa-cadeia, o escrivão volta ao seu passado e revisita a história de sua família, como também o seu relacionamento amoroso com sua prima Luciana, sobrinha do Coronel, do qual é acusado de cometer o delito de homicídio. A personagem principal está preso duplamente, ou seja, recluso a um passado que é preciso ser lembrado para se reconstituir enquanto sujeito e a deliberação da justiça por conta do suposto assassinato.

Assim, Coivara da memória é uma obra instigante e significativa, visto trazer já no título uma carga semântica bastante rica. Segundo Barthes em sua obra Análise estrutural da narrativa (2001, p.311), o título “tem função aperitiva: trata-se de pôr o leitor em apetite”, no caso desse romance, o título já é um indicativo do seu conteúdo. De acordo com o dicionário, o termo coivara de origem Tupi Guarani, significa uma “galhada que desce rio abaixo ou que

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se prende à margem do rio. Restos de ramos e galhos secos não atingidos pelo fogo” (BORBA, 2011, p.299). Dito de outro modo, esses restos, metaforicamente, referem-se a um passado que ficou na memória do escrivão do cartório. Um passado de ruínas, marcado pela lembrança de muita violência. Primeiro, a violência sofrida pela perda do pai, que fora assassinado de forma covarde. Segundo, a violência de ter crescido como órfão.

Nesse sentido, não podemos pensar o crime na obra Coivara da memória, sem contudo,

levarmos em conta esses aspectos sociológicos, uma vez que o mesmo é apresentado na narrativa e traz consigo resquícios de um período marcante da história do Brasil, sobretudo na região nordeste. Em que o fortalecimento do modelo republicano, cujo poder estava sob o domínio das oligarquias agrárias, apresentou um fenômeno social e político típico do período, o coronelismo. Fenômeno esse que exprime as características do desenvolvimento social e político do Brasil, pois ele é a junção entre as formas modernas de representação política e uma estrutura fundiária arcaica fundada na grande sociedade rural (CANCIAN, 2005). Portanto, ao analisar o crime nessa obra é imprescindível que percebamos essas nuances sociais, e, consequentemente, a interação do criminoso com o contexto social em que está inserido.

E ao examinar o crime, vimos que o mesmo se apresenta em vários formatos, dentre eles o homicídio, que, sem sombra de dúvidas, além de ser uma das mais profundas formas de crime, desperta grande interesse acadêmico. Isso porque o homicídio ou mesmo assassinato é reconhecido em todas as sociedades civilizadas como a mais grave forma de crime, sendo reprimido no mundo inteiro através de códigos e leis penais, e, portanto, punido desde os tempos mais longínquos. Etimologicamente a palavra “homicídio” deriva do latim Hominis excidim que formou homicidium, termo que traduz morte violenta, assassínio, homicídio (ALVES, 1999). Segundo Houaiss (2009, p. 1031), “homicídio é a destruição, voluntária ou involuntária, da vida de um ser humano; assassínio, assassinato”.

O homicídio na obra aparece como uma ligação de coisas da mesma natureza, ou que tem entre si certas relações, a saber – os dois assassinatos, o do pai do escrivão, a mando de Tucão, considerado o mandachuva da cidade, e o da personagem coronel Tucão, desígnio de vingança do protagonista. Embora não tenha havido nenhuma punição, o primeiro delito, a morte do pai do escrivão, não deixa dúvidas sobre quem o praticou; há trechos na narrativa que

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dão embasamento para a confirmação do assassinato. Essa é uma cena em que o serventuário do cartório ao rememorar, tem a certeza sobre o mandante do crime da morte do seu pai:

Há um consenso, entre alguns velhos daqui, de que a morte de meu pai começou ser premeditada quando Tucão percebeu que aquele cabeça-dura não o ajudava em suas falcatruas eleitorais. No penúltimo sábado que precedera a emboscada que o levou, Tucão fora ostensivamente ao Cartório, onde se desentendeu com o serventuário aos gritos por questão de meia dúzia de títulos ilegais, que meu pai se recusara a fazer. Muito ofendido na sua soberba de mandachuva, o valentão esticou a meia légua de braço por cima do balcão, arrebanhou um punhado de títulos da ponta da escrivaninha, justamente aqueles que meu pai impugnara, e fê-los em tiras finíssimas, bradando, a seguir, que meu pai arredasse o pé de suas searas! ( p. 248)

Ao desafiar o mandachuva da cidade, o coronel Tucão, o pai do serventuário do cartório assinara a sua sentença, pois além do atrevimento de furtar uma moça da família Costa Lisboa, visto que eles não aceitaram o casamento entre os dois, fazia a cabeça dos eleitores contra os políticos apadrinhados por Tucão, o chefe político de Rio-das-paridas. Não sendo novidade para a população desse município saber quem foi o mandante do crime, uma vez que o próprio coronel arrotava por todo município castigos e vinganças.

A despeito disso, o pai do protagonista não parava de “atiçar os ânimos, berrar contra a valentia encapuçada, exibir a culpa dos inculpáveis, que nessa questão de tomar a peito a dor dos mordidos e injuriados não tinha como ele para abrir a fala em violências e razões que incriminavam” (CM, p.241). De modo que era comum ele fazer tumulto maldizendo abertamente aos mandões do município, sobretudo depois que a finada sua mulher se fora. Foi em um desses tumultos, que na presença de seu filho, ocorreu o que já era sentenciado:

No termo da estrada enlameada, ao cruzarmos a rua torta da Cadeia, ainda de cabeça medrosa e arrepiada – súbito, aquele estrondo! – entrei na chama do estampido com o clarão de relâmpago! Institivamente, de coração na ânsia dos pinotes, joguei minha vida em busca de meu pai. Queria o seu amparo! Queria o seu abrigo! Ainda que atinar com o pingo da evidência, envolto no alarme que só alcança aos meninos – vi meu pai se curvar com uma mão na barriga e a outra no porrete de chifre-de-bode, onde vacilante e malseguro, já não podia mais fazer finca-pé. Aí então, fez uma cara desagradada e curvou-se mais e mais. Quando parecia que ia enrolar como um cipó, enrodilhado sobre si mesmo e em muitas voltas, aí então deu de banda e caiu estatelado, de papo para cima. (CM, p.243)

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Evidencia-se, então, que a morte do pai do escrivão não foi segredo para ninguém, visto que os indícios ficam abertos em relação ao mandatário do crime. “A princípio, temeroso do mandachuva, o povo maliciava baixinho, um tece-tece nas dobras do sussurro, cochicho disfarçado de pé de orelha, completado com o rabo do olho. Como todo mundo comia na mão do chefão e temia se comprometer” (CM, p. 243), ninguém se atrevia a denunciar, pois temia a sua sorte. Cenas como essas são comuns no interior do nordeste, “onde o culpado só aparece de ouvido em ouvido” (CM, p.243) e os crimes geralmente ficam impunes.

Esse é um crime típico no Brasil, principalmente no norte-nordeste, o chamado crime encomendado, mormente, liderado pelo coronelismo. O referido coronelismo, como dito antes, foi um tipo de poder político próprio dos chefes locais que existiu desde o Império, mas teve o seu auge na República Velha no final do século XIX e início do século XX. Olavo Leonel Ferreira em História do Brasil, aborda que “Os coronéis, cujos títulos eram reminiscência dos tempos da Guarda Nacional, eram chefes políticos prestigiados pelo governo. Seu poder às vezes era tão amplo que eles influenciavam as mais altas decisões da administração federal” (FERRREIRA, 1995, p.292).

Os ditos coronéis interferiam diretamente nas eleições, obrigando seus subordinados a votarem nos candidatos que eles determinavam, o denominado “voto de cabresto”. Com seus currais eleitorais eles detinham o poder político de determinada região. Eram homens temidos, grandes latifundiários, eles sempre agiam estrategicamente. Nas palavras de Ferreira:

Pouco antes das eleições, os coronéis costumavam visitar seus eleitores, levando-lhes presentes (botins, vestidos de chita) e oferecendo-lhes condução e almoço no dia da eleição. Quando encontravam alguma reação contrária a seus desejos, os coronéis apelavam para violência, obrigando os descontentes a obedecê-los pela força (FERREIRA, 1995, p. 293).

Isso posto, sabemos que o pai do serventuário do cartório, reagia contrário aos desmandos dos coronéis, como recorda o protagonista: “[...] não foi à toa que meu pai morreu em ano de eleições. Consta que os políticos apadrinhados com Tucão, insatisfeito com o desempenho e a intransigência do escrivão eleitoral, que, invés de facilitar a emissão se punha em dificultar as manobras” (CM, p.247). Podemos inferir que esses políticos, e, principalmente, o mandachuva Tucão, descontentes e intrigados com o atrevimento de um simples escrivão em

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não colaborar com a vitória dos seus candidatos, através de fraudes eleitorais, agiram com violência. É provável que eles usaram da força e do poder que detinham contra o pai do serventuário do cartório, pois, quando a vontade dos coronéis não era atendida, eles usavam de suas forças.

Se por um lado, o pai do escrivão não cooperava com as falcatruas dos coronéis, pois era um homem justo, um “inditoso membro de Justiça” (CM, p. 249), por outro, ele se envolveu amorosamente com a filha de um coronel, e, para os grandes latifundiários era uma afronta, pois não era permitido que um sujeito desprovido de bens materiais e sem tradição familiar pretendesse se casar com uma de suas filhas. Mas como ele, o pai do escrivão, sempre foi impetuoso, decidiu pedir a mão da filha de um Costa Lisboa:

Esse homem que nunca fora indeciso, nem sabia pacientemente esperar, morreria se aquilo continuasse. Contrariando os amigos com quem se aconselhara, saiu de vida partida contra a mais meridiana evidência! Acerado de audácia, pôs roupa branca de vincos impecáveis, ensopou o rosto com água-de-colônia, e largou-se para a casa de meu avô com a cegueira de quem se atira num precipício pedia sua filha em casamento. O pai duro e severo, já informado do calete do atrevido, o mediu da cabeça aos pés – desdenhosamente – e empunhou o carão iracundo para trovejar que o rueirinho deveras não se enxergava! Que se fosse, que batesse noutra porta onde houvesse mulher de sua igualha e esquecesse aquela filha sua, decente demais para ele e bem acostumada ao melhor trato. (p. 245-246).

O pai do protagonista agiu com bastante veemência, característica que lhe era própria, não desistindo do casamento: “os dois atravessaram a fronteira do Estado para se casarem em Ribeira do Conde, onde se demoraram alguns meses, temerosos dos parentes dela, adestrados na vingança” (CM, p. 246). Tal foi a audácia desse senhor, dado que foi um duplo atrevimento, na óptica dos coronéis, não colaborar com os desmandos dos detentores do poder e fugir com uma Costa Lisboa e se casar.

Por mais que o coronelismo esteja num estágio decadente, tendo o nosso país uma estrutura agrária ainda forte, o seu vestígio, até então, perpetua em algumas cidadezinhas do

norte-nordeste. Igualmente, em Coivara da memória, ambientada na cidade fictícia

Rio-das-paridas, essa dita decadência é rememorada pelo narrador-personagem, cujo cenário do engenho Murituba representa do início à decadência do ciclo da cana-de-açúcar.

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Consequentemente, a família Costa Lisboa viveu o apogeu e a derrocada do poder, acima citado. Poder esse, reverberado através da morte do pai do tabelião do cartório.

Portanto, o pai do escrivão com a sua intrepidez não só desafiou os detentores do poder, como também decidiu a sua sorte, de modo que o seu assassinato foi mais um, dentre milhares de homicídios que são executados no interior do país e que ficam impunes. Essa é uma prática que perdurou por muito tempo e até hoje ainda há resquícios, já que o coronelismo “é sobretudo um compromisso, uma troca de proveitos entre o poder público, progressivamente fortalecido, e a decadente influência social dos chefes locais, notadamente dos senhores de terras” (LEAL, 1948, p. 2).

Numa aproximação a esse debate dos crimes no ponto seguinte, trataremos do crime em

Coivara da memória numa perspectiva do mistério em torno do assassinato do coronel Tucão.

1.4 – Mistério de um crime

No contexto literário como é sabido, o mistério é uma ferramenta muito utilizada, a exemplo do romances policiais, góticos e de suspense. Embora Coivara da memória não se encaixe em nenhum desses modelos, é possível encontrarmos traços das narrativas de mistério, narrativas essas, cujo desenvolvimento gira em torno de um suspense que quase sempre é centrado em um crime. Segundo Joselma Oliveira Ramos em seu texto As narrativas de

mistério (2013, p. 118), “o suspense é, na verdade, uma expressão inglesa quase universalmente

empregada para se referir a uma mistura de incerteza, de intensa expectativa [...] que são experimentadas à medida que há a iminência de acontecimentos”. Desse modo, o suspense pode também ser entendido como uma forma em que o autor utiliza para suscitar a curiosidade do leitor que aguarda aflito pelo desenlace da trama, tornando-se uma estratégia narrativa (RAMOS 2013).

Sobre mistério, Josalba Fabiana dos Santos em seu artigo Narrativas monstruosas (2008, p.61) afirma que “o mistério e o segredo são armas – de defesa e de ataque. Conhecer o que não se deve conhecer pode ser um trunfo ou um perigo. Pode-se inventar um segredo ou um mistério para se controlar alguém”. Em Coivara da memória podemos inferir que o mistério

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pode ser uma arma vantajosa ou bastante perigosa quando pensada numa perspectiva do narrador, uma vez que ele narra tudo sob o seu viés, de maneira a usar desse conhecimento para tirar vantagens no sentido de nos persuadir a desvendar o mistério, como também, por ser um narrador-personagem pode se trair no sentido de estar envolvido na trama e deixar pistas para a revelação do mistério, o que torna um perigo para o mesmo.

Não expor de forma clara o crime, ou seja, não desvendar o mistério e apresentá-lo de forma imprecisa, fragmentada, é fazer desse enigma um acréscimo à narrativa. Ou, dito de outro modo, o enigma aparece como movimento ambivalente do arquivo entre o relembrar e olvidar ou ainda, são peças do esquecimento, são lacunas, silêncios quase nunca suficientemente preenchidas. Por mais que o protagonista diga que sabe a verdade, algo lhe escapa como prova. (SOLIS, 2014).

Assim, o crime de homicídio contra a personagem coronel Tucão, que ocasionou a prisão do escrivão e que compreendemos ser o cerne da narrativa, aparece como o grande mistério da trama, pois não são encontradas evidências suficiente para quem o cometeu, ainda que o serventuário do cartório deseje vingar a morte do seu pai e tente executá-la. Na obra não existe uma confirmação dos fatos, como é possível percebermos nas palavras do próprio protagonista: “a partir deste esquisito desfecho [...] sem se quer o consolo de saber ao certo se realmente houve alguma mão safada metida nesta morte imponderável, apesar de aparentemente natural” (CM, p. 351).

Vê-se então, que são questionamentos como esse do narrador-personagem que ficam no ar, de modo que não encontramos indícios concretos acerca do assassinato. O que se tem claro são apenas suspeitas, teria o serventuário do cartório matado o coronel para vingar a morte do seu pai? Ou o coronel Tucão teria sido morto pelos seus sobrinhos, no interesse de ficar com a sua herança? Ou ainda, teria o Coronel morto de morte natural, pois ele estava muito doente? Essa falta de evidências talvez intensifique a atmosfera de mistério, de forma que cause na história um estado de inquietude.

De acordo com Ramos (2013, p. 119) “o mistério se impõe em meio a degradação interior dos sujeitos uma vez que há sempre um estado de angústia pairando sobre a história, juntamente com a sensação de que alguma coisa precisa ser dita”. A autora afirma ainda que nesse revelar do que está obscuro “os personagens fogem do desvendamento da ‘verdade’ e o

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ponto de vista se fragmenta em meio à subjetividade dele” (RAMOS, 2013, p. 119). Podemos pensar que essa fuga das personagens em esclarecer ou mesmo revelar o enigma é mais um elemento construtivo das narrativas de mistério, suscitando a dúvida na cabeça dos leitores, e, consequentemente, a procura incessante de um desvendar do crime, é “como se a verdade precisasse vir à tona” (RAMOS, 2013, p.119).É dentro dessa perspectiva de mistério que esse crime é construído. Não se sabe ao certo quem realmente matou o coronel Tucão. Sabemos que o serventuário do cartório é o grande suspeito, e tinha reais motivos para tê-lo assassinado. A morte de seu pai deixou-lhe muitas marcas, ele só poderia ter vida de fato se realmente colocasse um ponto final nesse assunto; caso não, sua vida só respirava vingança. Embora não falasse abertamente às pessoas, pois a desforra para ele era um sentimento oculto, no momento de bebedeira saia dizendo aos quatro cantos:

[...] Malucando na bebedeira, cheguei a falar de um plano que vinha urdindo para assassinar o matador de meu pai, que já não podia viver mais perseguido pelos olhos deste, que me aparecia nos pesadelos noturnos, se saltando da cara e caminhando no ar. É certo que os pesadelos ainda continuavam, mas o plano desta vingança só existia então no miolo da cachaçada e no meu desejo oculto. (CM, p.338)

E não demorou muito para o mandachuva ser informado do acontecido, e claro, como de costume, o grande coronel Tucão não deixou por menos, encomendando-lhe uma surra. Assim lembrava o escrivão: os capangas “ofegantes, agora batiam descontroladamente, mas com tanta gana que eu sentia os cascos cavando feridas nas minhas ilhargas: a extensão do ódio rasgando fendas...e fendas...!” (CM, p.339). O escrivão, após a surra, saiu às pressas de Rio-das-paridas; diante dessa humilhação o serventuário do cartório precisou encontrar um objetivo de vida para continuar a existir: “foi então que o antigo ódio que eu guardava para Tucão recrudesceu e tornou-se um bicho vivo, tangido pelos olhos de meu pai, pelas cicatrizes ainda abertas” (CM, p. 342).

Todavia, enquanto passou um tempo fora de sua cidade natal, arquitetou um plano para assassinar o seu algoz. Para execução do dito plano contratou um comparsa, o jagunço Malaquias, para pôr fim a um sofrimento que já perdurava por muitos anos. Desse modo, fica evidente que o protagonista tinha razões mais que suficientes para matar o Coronel, porém, como veremos, não há no texto nenhuma constatação dos fatos. Nessas duas passagens da

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