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Academic year: 2021

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REGINA MARIA HENRIQUES

O SILÊNCIO EM ANÁLISE

Monografia elaborada como trabalho de conclusão de curso para graduação em Psicologia da Faculdade de Ciências da Saúde e da Educação (FACES) do UniCEUB, considerada a ênfase clínica. Orientadora: Dra Marcella Laureano Prottis.

Brasília 2012

Centro Universitário de Brasília

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REGINA MARIA HENRIQUES

O SILÊNCIO EM ANÁLISE

Monografia elaborada como trabalho de conclusão de curso para graduação em Psicologia da Faculdade de Ciências da Saúde e da Educação (FACES) do UniCEUB, considerada a ênfase clínica. Orientadora: Dra Marcella Laureano Prottis

BRASÍLIA, 29 DE NOVEMBRO DE 2012

BANCA EXAMINADORA

______________________________________ Prof. Marcella Laureano Prottis, Dra.

______________________________________ Prof. Leonor Bicalho

______________________________________ Prof. Morgana Queiroz

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RESUMO

Estudar a Psicanálise Contemporânea requer considerar as implicações da contemporaneidade na constituição do sujeito singular que busca a análise com fins terapêuticos. A sociedade atual vive um processo de ocidentalização com foco no desenvolvimento econômico, sendo retratada como a sociedade do espetáculo, na qual prevalece a cultura do narcisismo. Como elementos que compõem a subjetividade neste contexto, destacam-se o acentuado autocentramento individualista e o grande valor dado a uma estética midiática. O sujeito formado nesta sociedade está saturado de imagens e afoga na mídia suas inquietações, antes mesmo de expressá-las a si mesmo, em palavras. O mutismo psíquico precisa ser tocado, o silêncio precisa ser quebrado para que o corpo falante desfrute da própria vida. A Clínica Psicanalítica de cunho lacaniano se faz valer do conceito de discurso analítico como referencial para o percurso do sujeito em análise. A teorização dos discursos possibilitou discernir melhor o que ocorre na relação transferencial e no encaminhamento do processo de análise, levando a uma nova compreensão das possibilidades clínicas. Não se trata de conhecimento e, sim, de um saber que só é apreendido na realidade discursiva do analisando, do seu saber inconsciente. O trabalho analítico com o inconsciente, com os significantes de um sujeito cindido pela linguagem, poderá promover mudanças na posição subjetiva em que ele se coloca. O analista sabe que é preciso “escutar o que está além da palavra, escutar o silêncio, promover a fala” (FREITAS, 2004, p. 3), para desencadear o processo analítico. Constata-se que “o silêncio surge na metapsicologia do processo analítico sob diferentes modalidades” (OLIVEIRA, 2009, p. 118). A lógica do analista e da própria Psicanálise é a lógica do não-saber do outro que leva à construção do saber pelo analisando, no ato analítico, a partir do silêncio. (MOURÃO, 2004). O silêncio, portanto, está presente no setting terapêutico e “seus efeitos são tão decisivos quanto os da palavra efetivamente pronunciada.” (NASIO, 2010, p. 7).

Palavras-chave: Psicanálise Contemporânea. Clínica Psicanalítica. Discursos Analíticos. Silêncio.AtoAnalítico.

“Estou atrasado em cada coisa que devo desenvolver antes de desaparecer e tenho dificuldade de avançar” (LACAN, 1966, no Simpósio de Baltimore apud ROUDINESCO, 2008)

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ... 5

1 PSICANÁLISE CONTEMPORÂNEA ... 10

2 OS QUATRO DISCURSOS E A EXCEÇÃO ... 17

3 A FUNÇÃO DO SILÊNCIO NA ANÁLISE ... 24

4 ANÁLISE DE DADOS: PESQUISA DE CAMPO ILUSTRATIVA ... 30

CONSIDERAÇÕES FINAIS ... 37

REFERÊNCIAS ... 39

APÊNDICE A – TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO ... 43

APÊNDICE B – SÍNTESE DOS PROTOCOLOS DE OBSERVAÇÃO ... 45

APÊNDICE C – ROTEIRO DE ENTREVISTA ... 46

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INTRODUÇÃO

O silêncio, um fato clínico inconteste, tem sido abordado de forma distinta pelos principais teóricos da Psicologia e da Psicanálise, sendo assim bastante diversificados os aspectos epistemológicos e clínicos referentes à questão. No setting terapêutico nada é displicente, nada pode ser displicente... O tema silêncio, em Psicologia, à primeira vista, remete, historicamente, à resistência ao processo de mudança, por parte do paciente, e, tecnicamente, à importância dos não-ditos no processo de investigação clínica a partir da fala. Sua ocorrência durante o processo terapêutico decorre de fatores bastante variados, sendo distintas também as funções às quais atende, segundo o referencial epistemológico adotado pelo analista. Eduardo Cañizal, pesquisador das manifestações não-verbais na comunicação, afirma que “o que possibilita ou impossibilita a comunicação é, em última instância, o silêncio” (CAÑIZAL, 2005 apud PADRÃO, 2009, p. 93), preconizando que em um enunciado oral se escondem “frases do silêncio” (CAÑIZAL, p. 95). O silêncio nos conta uma história, tanto quanto a fala:

Ainda que se apresente como resistência, o silêncio denuncia territórios nos quais evitamos pisar e, assim, promove uma abertura para a emergência do inconsciente. É nesse momento que a interpretação do analista pode contribuir para um “se dar conta”, uma tentativa de se oferecer um sentido para o não-dito. (PADRÃO, 2009. p. 95).

Este contexto, próprio do processo psicoterápico, delimita o estudo do tema no presente trabalho: o silêncio, circunstanciado à sua ocorrência no setting terapêutico. O processo psicoterápico consiste em uma sucessão de estados vivenciados pelos pacientes, em decorrência da relação terapêutica estabelecida com o analista e das intervenções deste, definidas e realizadas com o objetivo de provocar e sustentar mudanças benéficas para eles, os pacientes (BUCHER, 1989). Ao longo do processo psicoterápico atuam diversos fatores, epistemológicos, socioculturais e, sobretudo, intersubjetivos, mediados notadamente pela linguagem verbal. Independentemente da abordagem psicoterápica adotada pelo terapeuta/analista em questão, é marcante o papel exercido pela fala no referido processo. Como parte do processo de comunicação, o silêncio integra este contexto. E, assim, há estudos e reflexões sobre o silêncio, referenciados à maioria das abordagens psicoterápicas, especialmente no que se refere à comunicação humana: o que ocorre diante do silêncio, dos não-ditos?

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Nas psicoterapias em geral, sobretudo nas de cunho humanista, admite-se, por exemplo, o silêncio do terapeuta como uma técnica nas entrevistas, como um artifício terapêutico que proporciona ao cliente a oportunidade de processar cognitivamente e compreender melhor o que foi dito antes, encaminhando o diálogo de forma positiva. O silêncio, geralmente, visa facilitar a introspecção, permitindo que o paciente tome contato com as suas emoções e as elabore. (BRASIL ESCOLA, 2012).

Na Análise do Comportamento, o silêncio expressa um comportamento privado, também chamado de comportamento encoberto, e como tal é considerado. Segundo Skinner (1969 apud DELLITTI, 1993), o comportamento decorre da interação entre

indivíduo e ambiente, sendo a unidade básica de análise do comportamento a contingência

tríplice que o caracteriza – contexto, resposta (o próprio comportamento) e suas consequências. As relações entre estes três aspectos constituem as contingências de reforço

da vida do cliente. Levando-se em conta a história da espécie e do grupo cultural em questão, podem ser estabelecidas condições de discriminação, aprendizagem e ampliação de repertório dos indivíduos. Pela própria natureza do processo psicoterápico, neste caso, o analista do comportamento vai lidar com os comportamentos encobertos do cliente. Os clientes frequentemente chegam ao consultório com a certeza de que seus problemas são causados por seus sentimentos e pensamentos.

[...] a capacidade de auto-observação do terapeuta, ainda que indispensável, não é suficiente. Se o terapeuta não conseguir ter acesso aos encobertos de seus clientes, estará sozinho, monologando ou em silêncio, e os objetivos terapêuticos não serão atingidos. Na prática da terapia comportamental individual há que se fazer, portanto, a análise dos comportamentos encobertos (e também dos abertos) de duas pessoas: do cliente e do terapeuta. (DELITTI, 1993, p. 43).

Os comportamentos encobertos são expressos de diferentes maneiras e adquirem características de uma linguagem especial em terapia. Os clientes se comunicam com seus terapeutas de inúmeras formas. Contam sonhos, recitam poemas. Silenciam. Choram. (DELITTI, p. 45).

Por isso, na Análise do Comportamento, uma das principais tarefas do terapeuta é conseguir levar seu cliente a perceber como seus comportamentos encobertos são apenas um dos elos da contingência tríplice a ser analisada e como eles se relacionam com outros eventos do seu mundo, interno e externo. Nesta abordagem, criar condições para a discriminação das contingências que controlam os comportamentos ê a condição básica para a eficácia do processo terapêutico e o silêncio do cliente é um dos comportamentos analisados, como os demais.

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Na Psicanálise, desde a sua origem, trabalha-se a “cura pela fala” (talking cure). A fala é, em si mesma, o principal recurso utilizado na análise, sendo considerada um pressuposto fundamental de acesso ao inconsciente para que ocorram as mudanças subjetivas almejadas no processo terapêutico dos pacientes adultos. O analista atua a partir de técnicas como a associação livre verbal, na busca de tropeços, atos falhos, expressos pela linguagem. A prática freudiana evidencia a associação livre como forma de revelação do inconsciente em análise. Em Freud, os sintomas neuróticos, os sonhos e a fala revelam a articulação existente entre o inconsciente e a linguagem, aspecto ressaltado por Lacan em sua releitura da obra freudiana: o inconsciente é uma instância que produz efeitos a partir da linguagem (FONTENELE, 2008 apud PADRÃO, 2009).

[...] Será que podemos deixar de lembrar de toda a tradição da Psicanálise ao se referir à tese freudiana do acting out e da passagem ao ato como noções que são promovidas pela impossibilidade ou fracasso da palavra falada? [...] Não podemos deixar de lado, obviamente, [...] a idéia do ato analítico em Lacan. Aqui também, para Lacan, o ato é um dizer... (FERNANDES, 2011, p. 50).

A partir de reflexões decorrentes de passagens como estas, considerando-se a Psicanálise Contemporânea como referência epistemológica, surgiu o interesse em investigar a ocorrência e a função do silêncio no âmbito da clínica psicanalítica, inicialmente buscando ampliar o conhecimento da teoria correlata ao tema. Pensar sobre a ocorrência e a função do silêncio no processo terapêutico requer levar em conta que, em oposição à relação psicológica espontânea que caracteriza toda e qualquer situação de interação humana, a relação psicoterápica pressupõe a existência de suporte teórico definido, de sistematização e de aparatos terapêuticos relativamente padronizados. O psicoterapeuta deve estar consciente de suas ações, sendo capaz, não apenas de saber dizer o porquê da sua atuação clínica, mas, sobretudo, de relatar o como exerce a sua prática, como decide e como faz suas intervenções. A psicoterapia pressupõe diálogo e verbalização daquilo que implica afetiva e cognitivamente o sujeito, portanto, cabe aqui distinguir o silêncio na interação humana (relação psicológica espontânea) e na relação psicoterápica (BUCHER, 1989).

A etimologia da palavra silêncio - do latim silentiu – aliada aos seus significados na língua portuguesa - estado de quem cala, privação de falar, sigilo, segredo – remete ao sentido de singularidade inerente à subjetividade que, em Psicanálise, está diretamente relacionada ao sujeito em análise, o qual silencia por motivos subjetivos e se recusa a fazer

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uso da linguagem (OLIVEIRA; CAMPISTA, 2007). “... diferentemente da palavra, o silêncio apresenta-se como zona de conforto para as personagens, já que, assim, estes evitam a exposição.” (CARVALHO; SPAREMBERGER, 2011, p.[3]).

Neste contexto, complementando o estudo teórico, realizou-se uma pesquisa de campo exploratória, com o objetivo de constatar a ocorrência do silêncio no setting terapêutico e de conhecer a prática clínica quanto ao seu manejo, mediante observação e entrevistas a profissionais que atuam na área. As reflexões de ordem prática decorreram, portanto, de duas1 entrevistas realizadas com profissionais da área experientes e, também, do acompanhamento de um atendimento de base psicanalítica, selecionado no âmbito da clínica-escola do Centro Universitário de Brasília – Centro de Formação (UniCEUB – Cenfor), mediante observação não-participante.

Justificar-se-ia aprofundar o conhecimento do tema – o silêncio no setting terapêutico - dentre as diversas abordagens psicoterápicas. Aqui, optou-se pelo estudo da ocorrência e da função exercida pelo silêncio referenciado à teoria psicanalítica - experiência de linguagem por excelência (talking cure), considerando-se o conceito lacaniano de discurso do sujeito, a partir do qual se estabelece, em síntese, o processo psicanalítico contemporâneo que leva às mudanças subjetivas almejadas (MOURÃO, 2011).

Frente ao exposto, o estudo foi desenvolvido com os seguintes objetivos gerais: 1. possibilitar o desenvolvimento de competências para elaboração de estudos

acadêmicos e pesquisas qualitativas, e

2. ampliar os conhecimentos teóricos e prático sobre o tema em questão - a função do silêncio no processo psicanalítico.

A partir de tais enfoques, estabeleceram-se os objetivos específicos:

1. analisar como a teoria psicanalítica contemporânea aborda a ocorrência e a função do silêncio no contexto clínico, e,

2. com fins ilustrativos, pesquisar a ocorrência do silêncio na prática clínica, em Brasília/DF.

O trabalho está estruturado em quatro capítulos, contextualizando-se a Psicanálise contemporânea e os Discursos analíticos propostos por Jacque Lacan nos dois primeiros capítulos, como pontos de referência para as constatações teóricas sobre o tema proposto –

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Foram realizadas três entrevistas, mas a terceira, relativa à clínica infantil, não foi incluída na análise de dados devido à delimitação final do tema, neste estudo, à clínica psicanalítica com adultos.

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a função do silêncio na análise, apresentadas no terceiro capítulo, e para as investigações relativas à prática clínica, cuja análise de dados compõe o quarto capítulo.

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1 PSICANÁLISE CONTEMPORÂNEA

Para compreender o fenômeno humano é preciso conhecer sua história, compreendendo ao mesmo tempo sua unidade e sua diversidade. A constituição anatômica, fisiológica, cerebral, afetiva é a mesma. Seja qual for a cultura do ser humano, ele é capaz de rir, de chorar, de amar, de odiar. Esta unidade fundamental do ser humano, no entanto, se expressa na diversidade. Ninguém é igual ao outro... O que diferencia a humanidade em relação ao mundo animal é a cultura, a linguagem, as artes, as técnicas. A linguagem humana tem a mesma estrutura, mas as línguas são diferentes entre si. Ainda que se admita, na atualidade, uma tendência à convergência da comunicação na Internet, “na direção da constituição de uma língua universal...” (MELMAN, 2008, p. 192), são muitas as línguas vivas, em distintas culturas. Ao longo dos tempos, a humanidade mudou de caminho várias vezes sem, no entanto, encontrar a solução fundamental para uma sociedade integrada em escala mundial. Sabe-se que a solução não é a democracia parlamentar nem a economia liberal, pois não há como mudar apenas a estrutura econômica e social de um povo. (MORIN, 2012).

Ninguém contestará que estamos, hoje, diante de uma crise das referências. Seja qual for a pertinência dessa expressão, a tarefa de pensar o mundo em que vivemos se impõe, então, mais do que nunca. As transformações de nossas sociedades, subsequentes à conjunção de desenvolvimento das tecnociências, da evolução da democracia e do crescimento do liberalismo econômico, nos obrigam a voltar a interrogar a maioria das nossas certezas de ontem. (LEBRUN apud MELMAN, 2008, p. 9-10).

As mudanças tecnológicas, socioeconômicas e políticas ocorridas nas últimas décadas afetam a vida no planeta e os indivíduos que nele habitam, cercados por mistérios e incertezas, diante da complexidade dos problemas fundamentais e globais. No mundo atual, o ser humano é, cada vez mais, complexo e dotado de contradições, encerrando em si o que há de melhor e o que há de pior. Vive-se em uma civilização ocidentalizada que, formada na Europa ocidental, se espalhou pelo mundo, impondo-se às sociedades locais. Toda a humanidade contemporânea vive um processo de globalização, que é, ao mesmo tempo, ocidentalização e desenvolvimento. Todos os seres humanos na atualidade estão confrontados aos mesmos problemas fundamentais de uma economia em crise e de uma biosfera cada vez mais ameaçada de degradação. Tudo isso em uma época de angústias múltiplas e de muitos medos, de retorno a antigos fanatismos, racismos, problemas de vida

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e de morte. Trata-se de um processo, de fato, ambivalente. Em toda parte, estimula-se o individualismo com suas qualidades no sentido da autonomia e com seus defeitos, sobretudo no que se refere à posição egoísta assumida pelo indivíduo, como consequência. Nas últimas décadas, na maioria das regiões do mundo, a juventude teve acesso à autonomia. O jovem pode se casar livre da vontade dos pais ou da família, pode escolher uma ocupação diferente daquela que seus pais gostariam, pode desfrutar livremente de prazeres, de modo autônomo. A globalização criou zonas de prosperidade, formando novas classes médias na maior parte de países chamados emergentes, como o Brasil. Mas, se grande parte da população pobre obteve o status de classe média, uma outra parte dessa população pobre perdeu sua autonomia. A civilização atual desenvolveu os aspectos positivos do individualismo, como o senso de autonomia, mas também desenvolveu aspectos negativos a ele associados, como o egoísmo, o egocentrismo. O avanço da autonomia reduziu a solidariedade, presente nas comunidades tradicionais: a solidariedade das grandes famílias, entre parentes, entre vizinhos. (MORIN, 2012).

A autoexaltação desmesurada da individualidade [...] implica a crescente volatilização da solidariedade. Enquanto valor, esta se encontra assustadoramente em baixa. [...] A solidariedade seria o correlato de relações inter-humanas fundamentadas na alteridade. Para isso, no entanto, seria necessário que o sujeito reconhecesse o outro na diferença

e singularidade, atributos da alteridade. No horizonte da atualidade, [...] o sujeito vive permanentemente em um registro especular, em que o que lhe interessa é o engrandecimento grotesco da própria imagem. O outro lhe serve apenas como instrumento para o incremento da autoimagem, podendo ser eliminado como dejeto quando não mais servir... (BIRMAN, 2011, p. 25-26).

O processo de globalização, sob a égide do desenvolvimento, foi aplicado como uma noção padronizada, da mesma maneira, em países de culturas as mais diferentes entre si, ignorando-se que cada país, cada nação, tem a sua própria cultura, as suas tradições, as suas artes de viver, as suas sabedorias, os seus conhecimentos, as suas ilusões e, também, os seus erros característicos. Vive-se, então, na atualidade, este fenômeno ambivalente também em termos coletivos: há um esquema global que avança sem fronteiras, mas este processo, ao desconsiderar os valores locais e as qualidades de cada civilização, impõe tecnologias e imprime incertezas, ampliando a complexidade que caracteriza a pós-modernidade. (MORIN, 2012). No capitalismo contemporâneo o parque industrial é globalizado, na busca da melhor alocação dos fatores de produção, sobretudo mão-de-obra mais barata. Sempre que possível, o trabalhador é substituído pelas máquinas. As novas

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exigências do mercado coadunam-se com a dissolução da identidade do trabalhador que, amparado por mecanismos homogeneizadores da relação empregado – patrão, como o seguro-desemprego e os planos de saúde, submete-se cada vez mais à flexibilização de sua carreira, desvinculando-se de manter o trabalho em uma mesma empresa. (BIRMAN; FORTES; PERELSON, 2010). A homogeneização do modo de vida propõe a democratização do acesso à saúde, à educação, ao mercado de trabalho e ao consumo, mediante mecanismos de poder que foram reconhecidos por Foucault (1977 apud BIRMAN; FORTES; PERELSON, 2010) como dispositivos biopolíticos, a serviço do controle das populações. “Tudo isso muda o lugar da psicanálise: ela fica em confronto direto com a operação do biopoder capitalista.” (SOLER, 2012, p. 201).

A sociedade atual, na qual está inserida a Psicanálise Contemporânea, vive essa ocidentalização com foco no desenvolvimento econômico, decorrente da fusão do modo capitalista de produção, em um enfoque marxista, com demandas globalizadas referentes ao consumo de massa, adotando uma lógica que vai muito além das lutas entre classes sociais. (FINGERMANN; DIAS, 2002)

Toda a vida das sociedades nas quais reinam as condições modernas de produção se anuncia como uma imensa acumulação de espetáculos. Tudo o que era diretamente vivenciado se afastou por uma representação. [...] O espetáculo não é um conjunto de imagens, mas uma relação social entre as pessoas, mediatizada por imagens. [...] O espetáculo, compreendido na sua totalidade, é ao mesmo tempo o resultado e o projeto do modo de produção existente [...] e enquanto o setor econômico avançado fabrica uma multidão crescente de imagens-objetos, o espetáculo é a principal produção da sociedade atual”. (DEBORD, 1967 apud FINGERMANN; DIAS, 2002 p . 81).

Estudar a Psicanálise Contemporânea pressupõe, portanto, considerar as implicações da contemporaneidade na constituição do sujeito singular que busca a análise com fins terapêuticos. A sociedade contemporânea é retratada, desde o final da década de 60 do último século, como a sociedade do espetáculo (DEBORS apud BIRMAN, 2011), na qual prevalece a cultura do narcisismo (LASCH apud BIRMAN, 2011). Segundo Birman (2011), as formulações de Lasch (1979 apud BIRMAN, 2011) e de Debors (1992 apud BIRMAN, 20011) sobre uma cultura do narcisismo e uma sociedade do espetáculo são instrumentos teóricos potentes para se entender as novas formas de subjetivação na atualidade. Como elementos que compõem a subjetividade na sociedade contemporânea, destacam-se o acentuado autocentramento individualista, já mencionado, e, ao mesmo

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tempo, o grande valor dado à estética e à exterioridade, sobretudo midiática, conferindo um poder estratégico ao olhar do outro no campo social, almejando-se com isso, não o reconhecimento da alteridade, mas, sim, uma semelhança identitária inalcansável de autoreconhecimento. (BIRMAN, 2011).

O indivíduo dos dias atuais se formou nessa sociedade. Ele está saturado de imagens e estas o sustentam. Não se trata mais de fronteiras entre o prazer e a realidade ou entre o verdadeiro e o falso. Agora, trata-se de manter vivos os indivíduos por serem instrumentos de mercado, capital humano. No mundo midiático, há um imenso esforço de imagens e slogans que produzem nos indivíduos sintomas próprios da relação contemporânea entre consumidor e produtor, buscando, ainda, reduzir aqueles que sejam ditos disfuncionais nesse contexto. (SOLER, 2012). O espetáculo é uma vida de sonho e todos querem usufruir dela. A expressão desse sujeito contemporâneo é padronizada, seu discurso (será que ele tem um discurso seu?) está normalizado. Na sociedade atual há, a cumprir, um “vasto programa: fazer o anoréxico comer, a muda falar, o deprimido sorrir, o estressado ficar tranquilo, o agitado, calmo... É patente: é a hora dos psicotrópicos.” (SOLER, 2012, p.201). A vida psíquica do homem contemporâneo está deslocada entre o uso de drogas para o alívio de seus sintomas e os devaneios proporcionados pela tecnologia midiática, sobretudo a mídia televisiva, diante da qual ele transforma desejos em imagens. “A imagem tem o extraordinário poder de captar suas angústias e seus desejos, de controlar-lhes a intensidade e suspender-lhes o sentido. [...] Não é fabuloso que alguém se satisfaça com uma pílula e uma tela?” (KRISTEVA, 2002, p. 15).

O sujeito, colocado no lugar de objeto, é reduzido a uma imagem pelos discursos da publicidade, da política, da universidade e da ciência. Estamos vivendo a ditadura das práticas médicas, o imperialismo das técnicas e dos números. O corpo, apartado do sujeito, é abordado como uma máquina de funcionamento automático que enguiça e precisa ser consertada. (FERREIRA, 2010, p. 427).

Neste contexto, o sujeito contemporâneo afoga na mídia suas inquietações psíquicas, antes mesmo de expressá-las a si mesmo, antes de colocá-las em palavras. Essa impossibilidade de expressar-se vai se mostrar nas dificuldades relacionais, sexuais e em sintomas somatizados que, em toda a diversidade que se apresentam, têm a mesma origem: uma carência de representação psíquica. A dificuldade de representar psiquicamente afeta a vida sensorial, sexual, intelectual e, também, o funcionamento biológico do indivíduo. O

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mutismo psíquico precisa ser tocado, o silêncio precisa ser quebrado para que o corpo falante desfrute da própria vida. (KRISTEVA, 2002).

[...] o sujeito se desdobra nas idéias de exterioridade e teatralidade. Voltada para a existência no espetáculo, a individualidade se configura pelos gestos constitutivos de seu personagem e de sua mise-em-scène. Assim, o que importa é a performatividade da inserção no espetáculo da cena social. [...] As idéias de intimidade e interioridade tendem ao silêncio no universo do espetacular. (BIRMAN, 2011, p. 263)

Este é o sujeito que procura a clínica contemporânea: “instável inseguro, sempre à procura de reconhecimento, propenso a um consumo exacerbado, tentando construir certezas para apaziguar suas incertezas” (CENFOR, 2ºsem./2012, p. 1). É este sujeito cindido - complexo, ambivalente, alienado, fragmentado - que a psicanálise contemporânea atende. E “o que pode a psicanálise nessa conjuntura, ela que não recusa o objetivo terapêutico?” (SOLER, 2012, p. 202).

No mundo contemporâneo descrito por Kristeva (2002), Melman (2008), Birman (2011) e Soler (2012) os principais referenciais psicanalíticos, epistemologicamente, apontam para Jacques Lacan (1963-64; 1967-68). “O respaldo fundamental da clínica psicanalítica é a formalização teórica rigorosa da obra freudiana, à qual Lacan deu uma contribuição excepcional, obviamente com consequências radicais para a abordagem clínica.” (MOURÃO, 2011, p. 154). Neste sentido, destaca-se o delineamento lacaniano da experiência de uma análise, expresso no esquema do nó borromeu, que representa graficamente a articulação entre o simbólico, o imaginário e o real, sintetizando os três momentos de Lacan. O imaginário (1º Lacan, da Filosofia) se manifesta no estádio do espelho, quando um “grande Outro” apresenta o bebê a si mesmo. O simbólico (2º Lacan, da Linguística e do Estruturalismo) traz a cadeia de significantes para expressar a castração do desejo e as insatisfações, a “falta-a-ser” primordial. O sujeito sai da linguagem para o gozo (para “gozar a qualquer preço”, como expresso por Melman, 2008). E o real (3º Lacan, da Lógica, da Matemática) vem mostrar como o sujeito transforma o desejo em necessidade, mecanismo que o leva às compulsões características da contemporaneidade. Através do trabalho com o discurso, o processo terapêutico leva o sujeito de volta para a linguagem (simbólico), na busca do sentido que lhe permita concluir o significado das suas vivências. As três instâncias psíquicas funcionam juntas, se articulam e são elas que sustentam o trabalho com o inconsciente na clínica contemporânea. (MOURÃO, 2011).

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[...] a experiência com o inconsciente se sustenta, exclusivamente, no campo da palavra e suas implicações – tanto em termos do significante, isto é, daquilo que pode ser nomeado a partir de suas inscrições imaginárias e simbólicas, quanto da letra: daquilo que, por não poder ser nomeado, marca o sujeito em sua particularidade, em seu real. (MOURÃO, 2011, p. 154).

A psicanálise lacaniana contemporânea propõe-se a levar o sujeito cindido a (re)conhecer o que ele está vivendo e a entender melhor a sua própria história de vida na pós-modernidade, onde impera a complexidade, onde o singular e o social estão intrinsecamente articulados, onde não há lugar para o determinismo, onde o adoecer é uma construção – deslocamentos para o corpo de suas marcas psíquicas, mágoas, humilhações. Justamente disso, o difícil de falar, vai tratar a clínica lacaniana que, justamente por isso, se mostra tão atual. (ROUDINESCO, 2012). E o trabalho analítico (de orientação lacaniana) acontece segundo o tempo lógico (não cronológico) de cada paciente. A trajetória clínica do sujeito vai caminhar do sofrimento atual relatado por ele (seu saber consciente, sua queixa expressa) para um estado de produção do saber (em busca do saber inconsciente, sua verdadeira demanda). Para tanto, o analista recorre a um manejo terapêutico que permite ao sujeito se expressar e, aos poucos, desconstruir seus desarranjos subjetivos, nem sempre diretamente pela fala, mas também, ou sobretudo, pelos não-ditos presentes em seu discurso que, ao longo da análise ganham sentido e significado. Neste contexto, o paciente contemporâneo muito se expressa pelo corpo, seja pelos sintomas manifestos, seja pela exacerbação estética.

Vivendo na pós-modernidade, o sujeito contemporâneo coloca o corpo em evidência, em uma manifestação sem lei e sem limites. A imagem corporal construída por ele – o corpo vitrine –expressa, por si só, a necessidade desse sujeito buscar uma identidade que manifeste a sua singularidade, mas, na busca de respostas para suas incertezas, prevalecem o culto ao corpo, o consumo e as compulsões que o mantêm preso em um mundo de ilusões, retratando sua dificuldade de lidar com a falta-a-ser e com a sua modalização de gozo. O sujeito contemporâneo acaba por alienar-se do seu corpo-linguagem (corpo erógeno, construído pela articulação significante), que deveria articular-se com o articular-seu corpo biológico (recebido por herança genética), tornando possível ao sujeito tirar de cena a ilusão do seu corpo–vitrine, uma imagem construída, e colocando em cena o seu corpo vivido. “A fragilidade da elaboração psíquica é a marca dos sintomas corporais na contemporaneidade.” (BIRMAN; FORTES; PERELSON, 2010, p. 82). Inserido na Cultura do Narcisismo que predomina na Sociedade do Espetáculo, em um contexto onde a

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Lei do Pai não é mais referenciada nas configurações familiares e os laços sociais são frágeis, o sujeito contemporâneo vive sem limites e sem referencial simbólico, dominado pela compulsão e pelas manifestações psicossomáticas.

O privilégio do gozo, o enfraquecimento da função simbólica do pai (Nome-do-Pai) e, consequentemente, a degradação da imagem paterna são as marcas da contemporaneidade, também chamada de era pós-industrial, pós-moderna e cibernética. (FERREIRA, 2010, p. 421). A Psicanálise Contemporânea traz um novo olhar para o lidar com o sofrimento humano e oferece uma nova configuração de construção de saber pelo sujeito que quer promover mudanças subjetivas em sua vida, tornando-se um falasser2, alguém que sabe fazer diferente, a partir de seu próprio desejo. (BICALHO, 2012).

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A relação entre saber e gozo introduz a noção lacaniana de falasser, termo que condensa o sujeito do significante com a substância gozante, além de incluir o corpo na noção de sujeito, como suporte para um saber que se encontra no real, ao lado do S1, fora da

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2 OS QUATRO DISCURSOS E A EXCEÇÃO

A adoção do conceito de discurso na Psicanálise Lacaniana decorre daquilo que se constitui fora da linguagem, nos limites do que pode ser dito. No Seminário 17 – O Avesso da Psicanálise, Lacan (1969-70) formula o conceito de discurso como a estrutura necessária para expressar o que está além da palavra, distinguindo discurso de linguagem e discurso de palavra: “Estabeleço esses discursos como uma articulação significante, um aparelho cuja mera presença domina o estatuto existente de alguma maneira e governa tudo o que pode surgir na ocasião da palavra” (LACAN, 1992 apud VEGH, 2001, p. 16). A percepção de algo que não pode ser representado por palavras ou imagens levou a uma forma de abordagem terapêutica para além da palavra, a teorização da dimensão do real. O discurso do sujeito é o elo formador de seus laços sociais e expressa a posição assumida por ele em relação ao seu grupo social, expressando formas possíveis de interação social que, diferentes entre si, delimitam os lugares, posições ou postos que se estabelecem na experiência da análise, a partir da transferência. A teorização dos discursos propiciou, portanto, um aprofundamento da formulação lacaniana da dimensão do real, contribuindo para a elaboração mais precisa da sua articulação com as dimensões do imaginário e do simbólico, fundamental no entendimento da constituição da subjetividade e no estabelecimento de novas perspectivas para a ação analítica (MOURÃO, 2011).

O conceito de discurso vem como referencial fundamental do percurso terapêutico do sujeito em análise psicanalítica. Os movimentos do discurso do analisando que ocorrem durante o processo terapêutico tornam perceptíveis, portanto, as mudanças subjetivas que ele vai fazendo.

Na terminologia psicanalítica, um discurso se define como o produto da articulação significante. Lacan tomou esse conceito para abordar aquilo que é fundado pelos efeitos do significante no sujeito, partindo da evidência posta pela Psicanálise de que não existe realidade pré-discursiva na constituição da subjetividade. A realidade subjetiva se institui na relação (laço) com o Outro, com os significantes do Outro, o que levou Lacan a afirmar que o discurso é aquilo que funda cada realidade: a realidade subjetiva e a realidade discursiva. (MOURÃO, 2011, p. 136).

Segundo Silvia Wainsztein (2001), Lacan descreve os quatro discursos básicos a partir das três profissões consideradas impossíveis por Freud, acrescentando a elas uma a mais: o discurso do mestre (impossível governar), o discurso do universitário (impossível educar), o discurso do analista (impossível analisar) e o discurso da histérica (impossível

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de fazer desejar, expresso por Lacan). Para Lacan (apud VEGH, 2001, p. 17), “o inconsciente está estruturado como uma linguagem e, na análise, se ordena em discurso”. Para representar os discursos, Lacan (1969/70) utiliza uma estrutura algébrica de grupo finito, estabelecendo matemas com quatro lugares e quatro letras. Os lugares, que podem ser considerados posições ou postos intercambiáveis constituem a base da representação dos laços sociais possíveis para cada discurso:

agente outro --- --- verdade produção

Segundo Rabinovich (2001), a linha superior refere-se ao nível manifesto do discurso e a linha inferior ao nível latente, estabelecendo-se uma relação de disjunção entre verdade e produção. Sob tal enfoque, a autora descreve os quatro lugares (posições ou postos intercambiáveis) que compõem o esquema mostrado acima, que, sucintamente, são: o “agente” é aquele que organiza o discurso, aparentemente em nome de quem o discurso é formulado, sendo considerado o lugar (posição ou posto) da aparência; o “outro” é aquele a que(m) o discurso se dirige - havendo algum outro ao qual o discurso se dirige, esse é o Grande Outro, visto como alteridade irredutível; a “produção” marca o lugar do produto engendrado pelo discurso e a “verdade” fundamenta o discurso, para além do circuito “agente-outro”, acessível por um “semi-dito”, não havendo nada a dizer além da meia-verdade. Trata-se dos lugares de apreensão do efeito significante pelo sujeito, sendo o sentido da cadeia significante indicado pelas setas (CASTRO, 2009). Estes lugares (posições ou postos intercambiávies) constituem a base de referência dos matemas propostos por Lacan para representar os quatro discursos, constituindo quatro configurações significantes que se diferenciam e se especificam por sua distribuição espacial. O discurso, para Lacan, em “Instância da letra no inconsciente” (1957 apud RABINOVICH, 2001, p. 10) vai além do referencial linguístico de Saussure e, partindo do algoritmo S , postula a primazia do significante sobre o significado.

s

Lacan reivindica a primazia da cadeia significante, que se desloca além de qualquer sujeito voluntário, consciente, e cuja articulação produz o discurso. [...] O discurso não se funda, então, no sujeito, mas na estrutura da linguagem e, por fim, na (estrutura) do significante. ... O discurso concebido como produto da articulação significante é um discurso sem palavras, que, como tal, gera palavras; é um discurso sem sentido, que gera a própria proliferação do sentido. (RABINOVICH, 2001, p. 10).

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A autora mostra que, segundo Lacan (1975 apud RABINOVICH, 2001) deixa de haver a intencionalidade do discurso da consciência que “conhece” e que “sabe”, para dar lugar à produção inconsciente. Lacan (1975 apud RABINOVICH, 2001, p. 11) postula que “um significante é o que representa o sujeito perante outro significante”, a partir de uma articulação que funda a própria subjetividade, de forma distinta em cada uma das configurações significantes que correspondem aos quatro discursos na psicanálise. As letras S1 (significante unário, significante mestre, aquele que representa o sujeito), S2

(significante binário, o saber), S/ (sujeito barrado, cindido, sem identidade, atravessado pelo desejo e pelo gozo: sujeito do inconsciente) e a (objeto a, restos psíquicos, objeto-causa de desejo, mais-de-gozar) ocuparão os lugares (posições ou postos), segundo uma ordem, que representa matematicamente os discursos - os laços sociais, a interação do sujeito com o outro, o vínculo social. As posições das letras caracterizam, assim, cada um dos discursos, do Mestre (M), da Histérica (H), do Analista (A) e do Universitário (U), possibilitando visualizar as mudanças de posição subjetiva correspondentes:

D. do Mestre D. daHistérica D. do Analista D. do Universitário

S1 S2 S/ S1 a S/ S2 a

---- ---- ---- ---- ---- ---- ---- ----

S/ a a S2 S2 S1 S1 S/

A lógica dos matemas lacanianos põe em destaque simetrias e oposições entre os discursos, como a possibilidade de constatar-se que o discurso do mestre mostra-se como o avesso do discurso do analista. No início dos anos cinquenta, atribuindo ao analista o lugar de “mestre da verdade e das funções da palavra”, Lacan (1966 apud SOUZA, 2003, p. 133) desenvolveu a lógica rigorosa dos discursos radicais. Ao analista cabia desempenhar uma função de intérprete das linguagens que afetavam o sujeito. Mais tarde, Lacan (1976 apud SOUZA, 2003, p. 134) sugeriu um “novo projeto ético e político para o discurso analítico”, reconhecendo que cabia ao analisando interrogar ele próprio o seu desejo e organizar o seu gozo.

Neste contexto, Lacan (1969-70) discute o Saber transmutado em mercadoria, adquirindo o estatuto de objeto (objeto a, na álgebra lacaniana), ocupando o lugar da produção, para ser consumido, uma condição contemporânea ideal. Especialmente em sua jornada de trabalho em Milão, em maio de 1972, Lacan (1978 apud SOUZA, 2003) promove uma ruptura com o seu trabalho dos anos cinquenta, transformando o discurso do

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mestre em um discurso do capitalista, ainda que o tenha considerado uma exceção aos discursos radicais, com a seguinte composição matematizada:

D. do Capitalista

S/ S2 ---- ---- S1 a

No discurso do Capitalista, “também chamado por Lacan de discurso do mestre moderno” (CASTRO, 2009, p. 250), o sujeito ocupa o lugar de dominância (agente), comandando através do Saber (S2, no lugar do outro), em uma relação direta entre o sujeito e o objeto a, que ocupa o lugar da produção. Para Lacan (1976 apud SOUZA, 2003, p. 139), o discurso do capitalista quer “a produção constante de “objetos”, que passam a ser “desejados” pelo sujeito com avidez, com voracidade”. Neste enfoque, segundo o autor, a única coisa válida que o sujeito faz, em sua condição de ser linguageiro, é pensar, o que remete ao Saber e acarreta a submissão do valor de uso ao valor de troca do Saber. Esta seria a alteração de base que distingue o discurso do mestre do discurso do capitalista: o Saber, considerado como um bem de consumo (objeto) tem valor de mercado, produzindo uma subversão do desejo, surgindo como uma promessa de satisfação possível para o sujeito. O sujeito age (ocupa o lugar do agente) como “consumidor” que, submetido às leis de mercado, vai “consumir”, “destruir” e “jogar fora” o objeto do seu desejo. O Saber, tomado com o estatuto de “objeto”, torna-se um “bem de consumo” a ser produzido em massa, para ser consumido, mecanicamente, forçosamente, por um sujeito desligado do seu Saber inconsciente, inibido em sua subjetividade (SOUZA, 2003).

O sujeito capitalista, hoje, corre sem parar [...] pela busca incessante das marcas de uma identidade que só vale no olhar do semelhante, que só pode ser validada por um efeito de massa – reconhecimento público, midiático – e que nunca é definitivamente adquirido. (MELMAN, 2009, p. 172-173).

Este efeito massificador dos sujeitos no mundo capitalista reduz as singularidades e, ao mesmo tempo, enfraquece os laços sociais, reduzindo sua ocorrência, além de situar o analisando aquém até mesmo do discurso do mestre e, portanto, fora do processo representado pelos discursos radicais, que levaria a mudanças subjetivas.

A escrita dos matemas dos discursos radicais expressa as mudanças subjetivas por que passa o analisando durante o processo de análise, representadas a cada “quarto de volta” ou “meia volta” nas posições ocupadas pelas letras. Note-se que os discursos se

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definem pela letra que ocupa o lugar dominante – de agente do processo vivido. O discurso do mestre é, portanto, o discurso do inconsciente, pois S1, o significante mestre, que representa o sujeito para outro significante, ocupa a posição de agente. O discurso da Histérica, com o S/ na posição dominante, é o discurso do analisando, do paciente. Na posição dominante do discurso do Analista está o objeto a, que faz semblante, e no discurso do Universitário quem ocupa o lugar de agente é o Saber. Observa-se assim que, a partir dos movimentos das letras, um discurso gera o outro discurso. A escrita dos discursos lacanianos evidencia o percurso terapêutico delineado a partir das mudanças subjetivas que vão ocorrendo ao longo do processo de análise (WAINSZTEIN, 2001), expressando a forma do paciente estabelecer seus laços sociais e estar no mundo.

A escrita dos discursos lacanianos reflete a necessidade de ir além do mestre de Viena, buscando referenciais para elaborar, de forma estruturada, a clínica psicanalítica no mundo contemporâneo.

Este contexto sugeria, posteriormente e com Lacan, a necessidade de criação de instrumentos que possibilitassem aos psicanalistas dar uma maior coerência e inteligibilidade aos fenômenos e questões com os quais se defrontavam em seu cotidiano clínico - invenção essa a ser diferenciada tanto da lógica na qual se fundamentava e funcionava a instituição universitária quanto dos modelos da ciência convencional. (CASTRO, 2009, p. 248).

Ao descrever o discurso do Mestre, Lacan (1969/70 apud CASTRO, 2009) lança mão da teorização do lugar/função do mestre presente na dialética hegeliana do senhor e do escravo, aliada à mais-valia marxista, e reflete sobre a contraposição entre governar e o poder de saber (e de saber-fazer) na contemporaneidade. Trata-se de contrapor a posição do amo-senhor à posição do escravo-proletário. (SOUZA, 2003). Segundo Ziliotto (2004), na cultura contemporânea há uma montagem entre consumir e trabalhar que resulta em uma subjetividade particular e confere algum grau de gozo ao sujeito. No discurso do Mestre, “a impossibilidade está colocada entre o Mestre (S1) e o Saber (S2)”, indicando-nos assim a impossibilidade “de governar aquilo que não se domina”, a impossibilidade “de mandar no Saber” e a impossibilidade “de fazer o seu mundo, do mestre, funcionar” (Ibid, LACAN, 1969-70 apud CASTRO, 2009, p. 251). O discurso do Mestre caracteriza-se pela alienação do sujeito em relação a si mesmo, pela imputação de culpas a outrem – a culpa de tudo que lhe acontece é sempre do outro – e por não si responsabilizar por seus próprios atos. No discurso do Mestre, “há o recalcamento da falta, é o discurso da (im)possibilidade

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do saber” (ZILOTTO, 2004, p. 218). Geralmente, é o discurso do paciente ao entrar em análise, buscando alívio para seus sofrimentos sem, no entanto, colocar o seu próprio “eu” como agente do processo.

À medida que o processo terapêutico se estabelece, o paciente passa por uma movimentação em seu discurso. Aos poucos, o paciente vai começando a questionar-se se a culpa do que lhe acontece é mesmo do outro. Assim, ao começar a sair da alienação de si mesmo que caracteriza normalmente o início do processo terapêutico, ele realiza sua primeira rotação discursiva e passa a buscar o Saber – “quer saber”, refletindo sobre o que ocorre, mas ainda não se vê como o responsável pelo que lhe acontece. O discurso do Universitário traz S2, o Saber, na posição dominante, mostrando-se como um prolongamento do discurso do Mestre, diante dos significantes do Grande Outro (LACAN, 1969/70) e da fantasia do saber como totalidade, na busca da dimensão do gozo, para além do prazer (RABINOVICH, 2001). “O que se enuncia no discurso do Universitário em nenhum momento mantém relação com o sujeito, [...] não lhe diz respeito.” (SOUZA, 2003, p. 127).

A psicanálise é o descobrimento de um saber que não se sabe – o inconsciente – cuja articulação é a do S2, articulação reticular de

significantes. [...] O Eu do mestre é a verdade do discurso da universidade, aquele que, sem o saber, obedece ao seu imperativo: saber mais. O sujeito universitário, sustentado pelo S1 do mestre é um sujeito

simulado, que supõe um autor do saber. (RABINOVICH, 2001, p. 22).

A continuidade do processo leva o paciente a fazer uma nova rotação, movimentando-se mais uma vez em seu discurso, tornando-o mais flexível. A flexibilidade caracteriza o discurso da Histérica, que coloca o “sujeito” em cena, pela primeira vez. O discurso da Histérica traz o sujeito barrado no lugar do agente, sendo considerado, portanto, o discurso do analisante por excelência, lembrando que Lacan (1969/70) situa o analisante para além da pessoa: o analisante é um discurso, Segundo Flesler (2001), na perspectiva dos discursos, esta posição discursiva indica quando uma análise propriamente dita começa. O sujeito barrado dirige-se, a partir da posição de agente, ao significante mestre, S1, que ocupa o lugar do Outro. Pode-se dizer que, em termos freudianos, o sujeito barrado está abalado pelo sintoma, que se apresenta a ele como algo imposto, estranho ao seu saber, que é seu, mas, ao mesmo tempo, lhe é estranho. “Buscar um ente que possa dominar o saber é o intuito da histérica que, por sua vez, recalca a falta e provoca a fala no corpo” (ZILOTTO, 2004, p. 218).

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A apropriação consciente do “eu” acelera o processo terapêutico, que caminha levando o sujeito a mudanças subjetivas, à medida que segue seu processo, em direção ao quarto discurso, o discurso do Analista. Este, entretanto, “não deve ser considerado como mais importante que os outros três discursos radicais” (SOUZA, 2003, p. 131). O discurso do Analista decorre da movimentação do sujeito no sentido de destituir o analista da posição de suposto saber, passando a reconhecer o saber nele próprio. “O discurso do Analista é a movimentação que a intervenção do analista causa no discurso do sujeito” (FINGERMANN, 2009, p. 65).

Se no início da análise, o ato analítico dá suporte ao sujeito suposto saber, ao final da análise, a destituição do sujeito suposto saber possibilita a inscrição da falta, convocando um sujeito articulado à causa do seu desejo. (DIAS, 2008, p. 401).

Ao realizar o ato analítico, construindo novas posições, o sujeito se movimenta e

demonstra “saber fazer diferente” nos diversos aspectos de sua vida. Nessa etapa, do discurso do Analista, o paciente alcança a posição de agente ativo em sua vida.

A teorização lacaniana dos discursos levou ao aprimoramento da fundamentação da clínica psicanalítica e, também, contribuiu para o avanço da própria Psicanálise, delimitando seu campo de atuação de forma mais precisa e ampliando a possibilidade da sua transmissão. A teorização dos discursos possibilitou discernir melhor o que ocorre na relação transferencial e no encaminhamento do processo de análise, levando a uma nova compreensão das possibilidades clínicas. Ficou claro que o saber em jogo na análise é da ordem do não-sabido ou do não-realizado, sem nada a ver com o conhecimento. Não se trata de conhecimento e, sim, de um saber que só é apreendido na realidade discursiva do analisante, do seu saber inconsciente. Portanto, o trabalho analítico é trabalho com o inconsciente, com os significantes de um sujeito cindido pela linguagem. O trabalho psicanalítico se faz com a palavra e, ao tocar o saber inconsciente do sujeito, poderá promover mudanças na posição subjetiva em que ele se coloca no mundo onde vive. (MOURÃO, 2011).

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3 A FUNÇÃO DO SILÊNCIO NA ANÁLISE

“Não seria justo [...] atribuir os resultados da psicanálise unicamente ao poder das palavras. Seria mais exato dizer que a psicanálise prova o poder das palavras e o poder do silêncio.” (REIK, 1926 apud NASIO, 2010, p. 19). “No início é o silêncio” é o título de um texto de Theodor Reik, de 1926, um dos mais antigos textos sobre este tema na psicanálise e este escrito testemunha uma presença positiva do silêncio nas sessões de análise, tanto por parte do paciente quanto por parte do analista. Sim, o silêncio está presente no setting terapêutico e “seus efeitos são tão decisivos quanto os de uma palavra efetivamente pronunciada.” (NASIO, 2010, p. 7).

O silêncio é um evento intrigante em psicanálise, por ser esta definida como talking cure, a cura pela conversa. Mas foi propondo a seu médico Joseph Breuer que se calasse, para que ela pudesse falar, que Anna O. descreveu o que Freud descobriria e confirmaria como o ponto de partida do processo analítico e sua definição – a qualidade da escuta (em silêncio) do analista, as associações do analisando, que propiciam a fala do analista. O silêncio do analista, atitude de sua abstinência e de sua escuta, instaura a possibilidade e a assimetria necessária no espaço analítico. (OLIVEIRA, 2009, p. 118).

Sabe-se que a psicanálise surgiu da prática clínica freudiana com histéricas e que, a partir dessa clínica foram estabelecidos os conceitos fundamentais da teoria psicanalítica, ancorados na singularidade da escuta terapêutica. (MOURÃO, 2011).

Historicamente, a psicanálise foi definida a partir da constatação dos poderes terapêuticos da verbalização, o que deixava o silêncio em uma posição de obstáculo à rememoração daquilo que estava por trás do sintoma apresentado pelo paciente. Pode-se considerar aqui que, segundo alguns autores, considerados por Gomes (2011), em determinados momentos da prática freudiana buscava-se levar o paciente a expressar aquilo que não estivesse sendo dito, em direção à reversão do fluxo da associação livre e à catarse redentora do sintoma. Quando o silêncio se fazia presente na sessão era atribuído a fatores, em geral, cerceadores do processo analítico: ao retraimento do sujeito diante do analista, à censura diante de algum pensamento (recalque inconsciente), à dificuldade na transferência – como uma resistência à análise, ou à ação da pulsão de morte engendrada pelo aparelho psíquico (GOMES, 2011). O autor apresenta, neste contexto histórico, os principais pressupostos teóricos da psicanálise associados à ocorrência do silêncio:

Censura – advinda dos conteúdos inconscientes, interrompe o fluxo da associação livre e dificulta o estabelecimento da transferência. Sob o enfoque da 1ª tópica

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freudiana, o silêncio-censura pode decorrer de uma falha no recalcamento de uma representação, um “vazio do recalque”;

Recalque – impede as representações inconscientes de emergirem em palavras, considerado, assim, na 1ª tópica, como a origem da resistência;

Transferência x resistência – conjugação essencial para o processo de análise; o silêncio-resistência é visto como uma característica muito importante no manejo da transferência, por ser esta o instrumento fundamental na ação terapêutica;

Mecanismos de defesa – sob a 2ª tópica, o recalcado não opõe resistência à cura; o silêncio passa a ser visto como um mecanismo de defesa ao mundo externo ou à intervenção do analista, na busca de algum caminho que leve à consciência;

Pulsão de morte – age em silêncio - compulsão (repetição), sem representação no inconsciente, leva à inércia e não à vida. A manifestação do silêncio no psiquismo leva a dificuldades na capacidade de simbolização. (GOMES, 2011)

Na psicanálise contemporânea, o silêncio de escuta é ponto de partida da análise. O silêncio do analista se contrapõe à manifestação de um sujeito suposto-saber que o analisando espera encontrar. Neste momento, o analista constitui-se como faltante, diante do analisando. É preciso estabelecer um jogo pulsional ritmado no movimento do tratamento, ainda que o paciente questione ou se inquiete quando, por vezes, o analista parece afastar-se. (ZOLTY, 2010). O analista sabe que é preciso “escutar o que está além da palavra, escutar o silêncio, promover a fala” (FREITAS, 2004, p. 3), para dar início ao processo analítico.

Acolher os silêncios dos pacientes significa, acima de tudo, lhes oferecer uma escuta verdadeiramente analítica: aquela que está para além do ouvir as palavras, que se define pelo não-dito, pela comunicação entre o inconsciente do analista e do analisando. (PADRÃO, 2009, p. 102). Nesta vertente, o silêncio do analista sustenta o “desejo de nada saber” sobre seu paciente ou ainda o lugar do mutismo do analista (lugar do suposto saber) o qual é nada mais do que sinal de aceitação tácita do discurso do paciente. O discurso do paciente, neste sentido, se estabelece através de uma comunicação “infraverbal” e “préverbal”, lugar da intersubjetividade. Sua função é a de ser um catalizador do material comunicado, apreendendo o seu sentido. (GOMES, 2011, p. [1]).

Não são as palavras pronunciadas pela voz que têm importância, mas o que nos diz quem fala. Seu tom se torna mais importante do que o que ele diz. “Fala, para que eu possa vê-lo”, disse Sócrates.3

(REIK, 1956 apud LAGAAY, 2008, p. 55).

É o silêncio do analista, portanto, que dá origem ao processo analítico, compondo

3Tradução livre do original em inglês: “It is not the words spoken by the voice that are of importance, but what it tells us of the speaker. Its tone comes to be more important than what it tells. “Speak, in order that I may see you,” said Socrates.”

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sua atenção flutuante4, convidando o paciente à fala, à associação que toca o inconsciente. “O analista silencia seu desejo pessoal, seus pré-conceitos e, em última análise, sua angústia. Tendo presentes seu lugar, sua teoria, sua experiência e, sobretudo, sua própria análise, ele os conserva latentes (pré-conscientes), atuantes, porém silentes.” (OLIVEIRA, 2009, p. 119).

O silêncio é fundante e sem silêncio não há sentido, o que nos convoca a acolher os momentos silenciosos de nossos analisandos, em nossa prática clínica, momentos estes que certamente produzem efeitos inevitáveis na dinâmica da transferência. (PADRÃO, 2009, p. 101/2).

“Atravessar o vale do silêncio é um desafio proposto ao analista em sua escuta.” (FREITAS, 2004, p. [2]). Segundo a autora, cabe ao analista oferecer aos seus pacientes uma escuta interessada: escuta aberta aos silêncios e às palavras que deles possam brotar.

“Os pacientes dizem a verdade quando dizem que não têm “nada a dizer”, mas para encontrar esse “nada a dizer” é preciso falar. [...] O silêncio do analista convoca esse nada a dizer.” (ZOLTY, 2010, p. 192).

O silêncio de escuta é, assim, próprio do fazer do analista, mas há também silêncio de escuta por parte do analisando, cuja ocorrência no setting analítico impõe um ritmo diferente, ou mesmo faz pausa, a partir de situações bem diferenciadas. O sentido do silêncio, por parte do analisando, costuma vir daquilo que o precedeu, e pode ser apreendido pelas associações que propicia ao ser rompido. O silêncio pode ser decorrência da percepção de um vazio pelo analisando, pode ser um intervalo que interrompe a associação livre ou um efeito da resistência. (OLIVEIRA, 2009).

Na psicanálise contemporânea, há silêncio de resistência ao processo analítico. Segundo Oliveira (2009), em termos lacanianos, silêncios de resistência podem emergir do momento agressivo inaugural frente ao outro e também de irrupções do sexual nas falhas de linguagem. Mas trata-se de vários silêncios, por ser cada um singular, próprio de cada análise, com a sua própria dinâmica, evocando diferentes aspectos do processo analítico.

O analista convoca um dizer do paciente, uma palavra que nada mais diria senão a perda que o faz falar, o ato que origina sua questão. A ética analítica interpela que ponto extremo da experiência quando as palavras se esquivam de dizer a falta. (ZOLTY, 2010, p. 192).

E é sobre a posição que os sujeitos tomam em relação ao seu saber que os seus

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Atenção que não visa a compreender racionalmente o conteúdo expresso, estando voltada para o que se mostra fora do discurso, nos não-ditos, para além da linguagem verbal.

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discursos (analíticos) são articulados.

É na cadeia do discurso, ou seja, na série de associações que realiza ao falar, que o sujeito se produz. Através da linguagem há a tentativa de dar conta do impossível, da impotência que marca o humano; “falar é gozar”, diz Lacan (1969-70), referindo ao quanto há de tamponamento da falta no uso da linguagem. (ZILIOTTO, 2004, p. 218).

“Não existe palavra sem resposta, mesmo quando só encontro o silêncio, desde que haja um ouvinte... e esse é o centro de sua função na análise.” (LACAN apud ZOLTY, 2010, p. 191). A autora parte de Lacan para refletir sobre “o ouvinte do silêncio, que de antemão já adiantamos não ser nem o analista nem o paciente, mas, sim, o lugar que invoca e é invocado no espaço terapêutico.” (ZOLTY, 2010, p. 191).

O silêncio no setting analítico pode indicar um momento de reflexão. “O silêncio fala, como manifestação pulsional e como elemento da linguagem, e demanda, então, interpretação e manejo do analista, que também intervém com seu silêncio.” (OLIVEIRA, 2011, p. 125).

Sendo a palavra e as possibilidades advindas de nomear o mundo (o mundo das coisas, o mundo interior, o mundo das sensações...) o que caracteriza os humanos, pode-se pensar que não são desprezíveis as implicações contidas nesta potencialidade. Desde já, considera-se que as particularidades de usufruto da língua revelam que o sujeito age sobre a sua falação, atribui nuances, significados, sentidos, ultrapassando o arbitrado. Neste sentido, há uma operação que se faz presente: o dizer está para além da linguagem, está do lado do falante. (ZILIOTTO, 2004, p. 216).

Aqui, trata-se especificamente de querer uma pausa em resposta a algo que incita o analisando à reflexão, promovendo um silêncio que, assim, não é vazio, mas pleno do desejo do outro, quase sempre repleto de imagens, de fantasias sonoras e de pensamentos teóricos que dominam as construções mentais do próprio analisando. Neste contexto, o analista vai pontuar, silenciar, favorecer o processo transferencial. Aqui “não é o silêncio da escuta, mas aquele para o qual a escuta deve se abrir. Chamemo-lo de silêncio da transferência.” (NASIO, 2010, p.204).

Nos limites do real, se impõem o simbólico e o imaginário. Entre parênteses, entre vírgulas, o silêncio é Aposto; é uma conjugação oculta, complemento reclamado, interditado... termo reclamado... Metáforas que se calam correspondem a fraturas na articulação da ordem inconsciente... acidentes de percurso: a cena muda é uma produção significante; as articulações podem ser restauradas. O processo transferencial poderá permitir a restauração da palavra, mas não se pode re-articular tudo... como não se pode escutar tudo o que se apresenta além da palavra... (FREITAS, 2004, p. [2]).

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“Frente ao inequívoco limite da interpretação analítica segundo o princípio da neutralidade, a nova clínica deve investir no estatuto da palavra que aparece esvaziada de sentido nos dias de hoje.” (PADRÃO, 2009, p. 102). “[...] pode-se “ouvir” claramente o que seria o silêncio do corpo, nunca efetivado, mas de certa forma perseguido como um dos ideais modernos nos processos de subjetivação.” (FIGUEIREDO, 1995, p. 133).

No silêncio, o analisando toma o corpo do analista, o interior de seu corpo, o vivido de seu corpo, sua voz... seu alento, sua dinâmica motora, até o ponto do intolerável algumas vezes: o analista não sabe disso, mas ele efetua a perda agarrando-se a um imaginário que lhe restituiria sua integridade. Busca vã, pois o sim do analista ao inconsciente marca-o como perda assumida. Desde o início o analista se constitui a partir dessa subtração que ele ignora e que o liga à palavra do seu paciente. (ZOLTY, 2010, p. 195/196).

A fala que detêm o poder terapêutico e transformador não é a que se origina na mente como sede da vontade e depósito de representações claras e distintas, ou seja, não é a fala que argumenta, demonstra e convence. [...] A fala eficaz na clínica só pode ser a que brota deste território que já não é o da mente, na sua pretensa pureza, e muito menos o do corpo que, na sua pura objetividade, é mudo. (FIGUEIREDO, 1995, p. 150/151).

À medida que avança o processo analítico, surge o silêncio que antecede a construção de sentido e de (novos) significados, por parte do analisando.

Situações limite, onde a ética analítica exige articulações que permitam algo novo surgir... instrumentos que passam por um modo de inventar, de criar, de fazer surgir algo novo que jamais aconteceu... tentativas de fazer a palavra surda e muda sair da prisão. O que nunca foi escutado precisa ser escutado... então, é mister que o analista quebre o silêncio. E sua fala seria como inaugurar um atalho, um caminho para o silêncio passar e dar livre trânsito à palavra... (FREITAS, 2004, p. [3]).

A inibição da fala pode ser um sintoma, uma repetição a ser vencida pela dinâmica da transferência no processo analítico, vindo a transformar-se em rememoração, de forma a contribuir para a evolução da análise. O silêncio, portanto, vai muito além da inibição. A partir da interpretação da resistência vai-se favorecendo a ocorrência de mudança psíquica. O silêncio que surge neste momento não se apresenta como obstáculo e, sim, como um processo de elaboração que pode dar a impressão de que a análise esteja estagnada, mas, no entanto, ele traz em si a capacidade de superação da resistência e de assunção de uma nova configuração psíquica em andamento. (OLIVEIRA, 2009).

Lacan (1960/1998 apud HERNANDEZ, 2004) fala de uma ética psicanalítica expressa pelo silêncio: “Uma ética se anuncia, convertida ao silêncio, não pelo caminho do pavor, mas do desejo: e a questão é saber como a via de conversa da experiência analítica

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conduz a ela” (LACAN, 1960/1998 apud HERNANDEZ, 2004). Segundo Mourão (2004) a resposta para esta questão posta por Lacan, para esse “como” a experiência analítica leva ao silêncio do desejo, está na análise do próprio analista. A autora coloca esta análise como a condição fundamental para que a experiência analítica se configure como tal, sobretudo quanto ao passe do analisando a analista, quando ele próprio alcança a dimensão de ser analista, a partir de um “des-ser” de si enquanto sujeito no processo. “Esse “des-ser” que está em estreita relação com o “não-saber” é o que sustenta a escuta e o desejo do analista, elementos ou condições de lógica e ética da práxis analítica que só podem ser alcançados na análise do analista. [...]” (MOURÃO, 2004, p.1)

Constata-se, portanto, que “o silêncio surge, na metapsicologia do processo analítico, sob diferentes modalidades” (OLIVEIRA, 2009, p. 118). A lógica do analista e da própria psicanálise é a lógica do não-saber do outro que leva à construção do saber ali, no ato analítico, a partir do silêncio. (MOURÃO, 2004).

A partir do silêncio chega-se ao ato analítico. Na clínica contemporânea, portanto, o silêncio é o ponto de partida e o ponto de chegada do processo psicanalítico.

Referencias

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