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António Amaro das Neves Os filhos das ervas monografia10

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Joaquim

Academic year: 2022

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FILHOS DAS ERVAS

A ILEGITIMIDADE NO NORTE DE GUIMARÃES

(séculos XVIXVIII)

neps

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A ilegitimidade no Norte de Guimarães (séculos XVI-XVIII) Autor:

António Amaro das Neves Colecção:

Monografias 10 Edição:

Núcleo de Estudos de População e Sociedade Instituto de Ciências Sociais

Universidade do Minho Guimarães/2001

Depósito legal:

160327/01 ISBN:

972-98695-0-2 Composição:

NEPS Ilustração da capa:

Georges De La Tour, O Recém-Nascido, Rennes, Museu das Belas-Artes.

Impressão e acabamento:

Eden Gráfico, S.A.

Rua dos Casimiros, 21 Apartado 2047 3510-061 Viseu Direitos reservados:

A.A.N./NEPS

Núcleo de Estudos de População e Sociedade Universidade do Minho

Campus de Azurém 4800-058 GUIMARÃES Edição integrada no projecto:

Informatização Normalizada de Arquivos.

Reconstituição de Patróquias e História das Populações.

(PRAXIS XXI 2/2.1/CHS/685/95)

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7 A P R ES EN T A Ç Ã O 9 IN T R O D U Ç Ã O

2 1 I - A M O R ES IL ÍC IT O S N O A N T IG O R EG IM E 2 3 P ec a d o e c o n fis s ã o

4 1 R eg u la ç ã o d a in tim id a d e: d eva s s a e c a s tig o 5 7 A s h u m a n a s fra q u eza s

8 1 II - A IL EG IT IM ID A D E N O NO R T E D E GU IM A R Ã ES 8 3 A terra e o s h o m en s

9 3 E m ig ra ç ã o e eq u ilíb rio d em o g rá fic o 1 0 1 O c o n tex to d a ileg itim id a d e

1 2 1 N a ta lid a d e ileg ítim a n o N o rte d e G u im a rã es 1 2 9 N a s c er a n tes d o tem p o

1 4 1 A o n a s c er: m a is m en in o s 1 4 9 A o m o rrer: m a is m u lh eres

1 5 5 O c a len d á rio d o s a m o res c la n d es tin o s 1 6 1 B a s ta rd ia e a b a n d o n o d e c ria n ç a s 1 6 7 A ileg itim id a d e e a s itu a ç ã o d a m u lh er 1 8 1 M ã es s o lteira s

1 9 7 P a is d e b a s ta rd o s 2 0 1 C O N C L U S Õ ES

2 1 3 Q U A D R O S

2 3 7 B IB L IO G R A F IA E F O N T ES

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A.M.A.P. − Arquivo Municipal Alfredo Pimenta, Guimarães.

C.S.A.B- − Constituições Sinodais do Arcebispado de Braga de 1639 (publicadas em 1697).

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O esforço e o tempo despendidos na montagem, peça a peça, de uma enorme paciência em que se encai- xam sucessivas gerações de residentes em comunida- des históricas, inseridos dinamicamente nos seus con- textos familiares, dificultam depois a exploração con- sequente pelo investigador de todo o manancial de in- formação que ele próprio organizou. A tendência natu- ral do historiador demógrafo é para um discurso parti- cular, remetendo-se quase sempre à análise estandardizada de comportamentos demográficos so- bre pequenas comunidades rurais, com raras pontes de diálogo com outros historiadores.

Contrariando essa tendência, Monografias NEPS, ao mesmo tempo que vem valorizando o aprofundamen- to da análise demográfica, vem abrindo, pelo cruza- mento de fontes sobre as bases de dados com a infor- mação paroquial organizada, novas perspectivas à com- preensão do passado moderno e comtemporâneo.

Neste número 9 de Monografias NEPS, António Amaro das Neves, com grande maturidade científica e profunda sensibilidade, movimenta-se entre as abor- dagens quantitativas próprias da Demografia e a ri- queza de soluções interpretativas próprias da Histó-

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complexidade de um comportamento que autores clás- sicos haviam apreendido como linear. No Antigo Regi- me os Filhos das Ervas eram afinal mais comuns do que geralmente se pensa. Impõe-se que a cartografia da fecundidade fora do casamento seja estabelecida pelos historiadores demógrafos, a basear as análises comparativas, conducentes a uma conseguida interpretração do fenómeno segundo metodologias de historiador.

O trabalho de António Amaro das Neves consti- tui um exemplo feliz de como as metodologias da De- mografia Histórica podem e devem ser usadas pelo historiador, em profundidade científica, em abertura à curiosidade cada vez mais exigente de um público inte- ressado em penetrar as sensibilidades das gerações que nos precederam.

Novembro de 2000 Maria Norberta Amorim

(Coordenadora do NEPS)

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As sociedades europeias antigas, sobretudo as do Sul, católicas e geralmente classificadas de pouco tolerantes, são descritas como universos perfeitamente controlados, onde persistia uma impressionante contenção das pulsões sexu- ais, em que a rede de controlo apertado da Igreja Católica se assumia como sentinela permanentemente vigilante. O prin- cipal testemunho comprovativo da índole virtuosa dos ho- mens e mulheres daquele tempo transparece com toda a evidência da objectividade das investigações demográficas que analisaram as comunidades europeias da época de seis- centos e setecentos: o indicador mais categórico do grau de transgressão aos interdito das relações fora de um contexto de casamento, a natalidade ilegítima, revela valores muito próximos do zero.

A Demografia Histórica, à medida que se foi afirman- do como um novo domínio da investigação, foi desenhando um modelo unitário dos comportamentos demográficos do Antigo Regime, em cujos fundamentos se destacava um con- tingente de ilegítimos muito reduzido. No pequeno número de crianças ilegítimas que colheu para o seu estudo sobre a população de Tourouve-au-Perche, Hubert Charbonneau vis- lumbrou uma prova suplementar da observância das regras prescritas pela Igreja (Charbonneau, 1970:65). Os valores que encontrou, que colocavam o fenómeno muito próximo da inexistência, vinham na esteira dos que, num trabalho pio-

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neiro na reconstituição de famílias, Pierre Goubert tinha en- contrado para Beauvais, onde calculou uma proporção de ilegítimos que, entre 1600 e 1730, não ultrapassou o valor de 0,5 por cento do total de nascimentos registados, isto é, havia um ilegítimo por cada duzentos nascimentos regista- dos. E a explicação encontrada por Goubert já se tinha base- ado na ideia da existência de um elevado grau de respeito pela lei religiosa, que interditava a sexualidade antes do ca- samento (Goubert, 1968).

Valores da mesma ordem são correntes nos estudos demográficos que surgiram, em momentos diferentes, com abordagens à problemática da natalidade ilegítima no con- texto europeu. Jacques Dupâquier encontrou, na bacia de Paris, numerosas paróquias onde não foi registado um único baptismo de crianças ilegítimas no meio século que decorre entre 1671 e 1720 (Dupâquier, 1979:367). Um estudo mais recente, sobre a natalidade ilegítima em vinte e seis paróqui- as de Zamora, entre 1750 e 1800, debruçou-se sobre uma base de 76 crianças baptizadas como ilegítimas, numa popu- lação que rondava os dez milhares de habitantes (Velasco Merino, 1993:3).

Foram valores como estes que permitiram a Pierre Chaunnu desenvolver a noção da existência na Europa do Antigo Regime de uma ascese social colectiva (Chaunnu, 1986:461), na qual irá basear, em grande parte, a sua ideia de sistema demográfico da cristandade ocidental. O contro- lo sobre a actividade sexual seria uma componente funda- mental da existência do homem da Idade Moderna, uma vez que o atraso na idade do casamento se viu acompanhado por um progressivo controlo dos impulsos sexuais (Chaunnu, 1986:458). Partindo de tal fundamento, este autor dividiu a Europa em duas, uma mais controlada (o Sul católico), outra mais permissiva (o Norte).

Porém, a generalização desta regra de férrea conten- ção sexual a todo o espaço geográfico do Sul da Europa pa- rece susceptível de ser posta em causa, pelo menos no que respeita à sociedade do Antigo Regime do Noroeste de Portu- gal, como o demonstram as informações acumuladas pelo

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trabalho dos historiadores demógrafos portugueses que têm revelado a persistência no Minho, ao longo de todo o Antigo Regime, duma notável frequência de baptismos de ilegítimos num território que era tão europeu, cristão e meridional como aquele que Chaunnu concebe como profundamente casto e melhor controlado.

O enunciado de um conjunto de princípios fundamen- tais sobre os quais deverá assentar todo o sistema de com- portamentos demográficos da Europa antiga, colocando à cabeça o preceito da não existência de relações fora do casa- mento, parece capaz de não se ajustar inteiramente ao uni- verso das múltiplas realidades regionais e locais europeias onde os estudos demográficos ainda não produziram um volume de resultados susceptíveis de se constituírem numa base de informação significativa. Os dados hoje disponíveis para o Minho do Antigo Regime revelam traços originais que não se encaixam no modelo demográfico europeu geralmen- te aceite: é esse o caso da mortalidade, em particular da mortalidade infantil, que no Minho se apresenta significati- vamente mais baixa do que a revelada pelos estudos tradici- onais da Demografia Histórica; é também o caso, num grau de diferenciação ainda mais apurado, da frequência da nata- lidade ilegítima. Aqui, tinha plena aplicação a afirmação de Foulcault de que nas sociedades antigas havia com o ilícito uma familiaridade tolerante (Foulcault, 1976:9). Esta ideia de uma maior tolerância social da sexualidade não conjugal no Minho antigo parece afirmar-se como um traço particular da idiossincrasia das gentes destas terras, tal como transparece das palavras de Oliveira Martins, retiradas do seu Portugal Contemporâneo:

Mas o minhoto, naturalista, não é susceptível nos pe- cados de carne: fraquezas humanas! Muitas, muitas rapari- gas casam sem ser virgens e isso, apesar de sabido, não escandaliza (Martins, 1883:189).

No mesmo sentido ia o cinismo corrosivo de Camilo, quando traçava com a sua pena mais áspera o retrato das

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mulheres do Minho:

A mulher do Minho não rege o marido, nem é árbitra no governo da casa, nem na gerência dos negócios externos.

É uma besta de carga que encontrareis no trânsito das fei- ras, vergada sob o peso dos sacos e dos bailéus, enquanto que os maridos endomingados se encovam nas tabernas do mercado, ganhando brios para à noite lhes quebrarem os os- sos em casa - exercício auxiliar à digestão do seu verde.

Quanto a venerarem o vigário as mulheres, dá-se o caso de o venerarem a ele e mais aos coadjutores, algumas, com ex- cesso, se o abade e a clerezia não têm na bexiga ou nas articulações a pedra e a reuma que os tornem mais castos que a fantasia de Jocelyn. A devassidão das minhotas, al- ternada com intermitências de beatério quando os missioná- rios urram, tem sido para mim um objecto de contemplações de que não pude ainda atingir o grau de alienação mental a que pode levar a estupidez. Os solteiros aceitam, sem biocos de honra, as mulheres infamadas que lhes estimulam o cio ou o interesse (Castelo Branco, 1986:43).

A representação camiliana da mulher do Minho era semelhante à que havia já sido expressa por clérigos da Galiza, que acreditavam que as mulheres galegas tinham uma desvergonha imprópria do seu sexo (Rodríguez Iglesias, 1985:243). Note-se que na Galiza havia também uma elevada percentagem de ilegítimos, sendo a bastardia um dos traços culturais mais peculiares da sua sociedade.

Os dados que os estudos demográficos já produziram traduzem com bastante precisão a originalidade do regime de comportamento minhoto em relação à sexualidade não conjugal, consolidando os indícios que nos permitem sus- tentar que, no Minho, existiam relações fora do casamento, a ilegitimidade era maior nas aldeias do que nos núcleos urbanos e a sociedade manifestava um inusitado sentido de tolerância, apesar do rigorismo que enfermava o discurso religioso.

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É este o nosso problema: como delimitar e explicar a incidência deste fenómeno, aparentemente deslocado dos resultados vindos a lume em todos os estudos de demogra- fia histórica do Antigo Regime que se debruçam sobre os diferentes espaços europeus?

2. Neste trabalho pretende-se estudar a problemática da ilegitimidade, enquanto manifestação da sexualidade não conjugal, numa comunidade rural do interior minhoto, cons- tituindo-se uma base de análise tão alargada quanto possí- vel. O percurso desta investigação iniciou-se com uma pri- meira reconstituição da paróquia de Gondomar, no concelho de Guimarães, realizada no início da década de 1980, de cujos resultados se salientavam níveis de natalidade ilegíti- ma muito elevados, em algumas décadas rondando os 30 por cento, os quais colidiam com o regime demográfico europeu, que encontrava numa baixíssima frequência da fecundidade extraconjugal uma das principais marcas da sua identidade.

A tese de Norberta Amorim sobre Guimarães deu con- sistência à ideia de estarmos em presença de um interes- sante fenómeno regional: trabalhando uma base de mais de cinco dezenas de milhar de registos de baptismo, encontrou para a zona urbana de Guimarães e seus arredores rurais uma taxa de ilegitimidade muito elevada, constantemente acima dos cem ilegítimos por cada mil nascimentos (Amorim, 1987). O nosso objecto de estudo foi a busca da compreen- são deste fenómeno.

3. Partindo dos registos vitais de nascimentos, casa- mentos e óbitos, a reconstituição de famílias baseada na metodologia francesa desenvolvida a partir da década de 1950 por Louis Henry e por M. Fleury, identifica os indivíduos, desenvolve a reconstrução das unidades familiares, faz his- tórias de vidas. No entanto, debate-se com o recurso a pro- cessos operativos muito morosos e complexos que, condu- zindo à construção de ficheiros intermináveis, dificultam a obtenção de resultados palpáveis. A especificidade das fon-

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tes paroquiais portuguesas encaminhou sistematicamente para o insucesso as múltiplas experiências de aplicação da metodologia Henry-Fleury que se desenvolveram nas últi- mas décadas, uma vez que, na fase de cruzamento a posteriori das fichas individuais de actos de baptismo, casamento e óbito se colocavam problemas quase sempre insuperáveis na identificação dos indivíduos. Esta dificuldade resulta do facto de, ao contrário do que sucedia em França, nos regis- tos paroquiais portugueses o uso dos apelidos de família não obedecer a qualquer norma padronizada de transmissão (um indivíduo, que ao baptismo foi registado com o nome de Manuel, ao longo da sua vida poderia ser identificado, nas diversas notas paroquiais em que foi sujeito participante, como Manuel Gonçalves, Manuel Pereira ou Manuel Silva;

os seus irmãos, por sua vez, poderiam usar indiferentemen- te cada um destes apelidos ou qualquer outro). Se tivermos em conta que no método de reconstituição de famílias o fio condutor da identificação dos indivíduos é precisamente o sobrenome familiar, facilmente concluiremos pela inoperacionalidade da sua aplicação às fontes paroquiais portuguesas.

Este problema de identificação foi resolvido no méto- do de reconstituirão de paróquias desenvolvido por Norberta Amorim (1980; 1982; 1987; 1991), que utiliza os nomes pró- prios de baptismo dos indivíduos como principal elemento de identificação. Esta metodologia, estando adaptado às con- dições particulares dos nossos registos, possibilita, sem qualquer perda de rigor, a simplificação do processo de reco- lha, organização e cruzamento de dados, permitindo que o essencial do trabalho da reconstrução dos agregados famili- ares se realize no decurso do trabalho de arquivo. Por outro lado, ao utilizar desde o início do processo de investigação uma ficha onde são lançadas todas as informações recolhi- das acerca de cada família, evita a repetição constante do registo de elementos identificativos referentes a indivíduos já conhecidos, o que garante uma maior celeridade a todo o processo de pesquisa em arquivo, permitindo a constituição de grandes volumes de informação, posteriormente sujeitos

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a um tratamento informatizado adequado e já largamente testado com sucesso. Foi esta metodologia de micro-análise demográfica que foi utilizada no trabalho sobre as paróquias de Donim, Gondomar, Santa Maria e São Salvador de Souto.

4. A escolha do território sobre o qual se debruçou a nossa investigação efectuou-se seguindo um percurso na- tural: em seu tempo, Gondomar havia sido escolhida por ser uma paróquia de pequenas dimensões, com registos paro- quiais em bom estado de conservação e sem lacunas signifi- cativas, o que dava maiores garantias viabilidade de concre- tização de um trabalho cuja metodologia na altura se não dominava inteiramente. Quando se colocou a questão de retomar esta investigação, a opção seguida foi a de alargar o âmbito espacial do trabalho já realizado, elegendo-se paró- quias contínuas a Gondomar, de modo a que se pudesse proceder à reconstituição demográfica de uma comunidade mais alargada, construindo-se uma base de dados suficien- temente sólida. Foi assim que se iniciou a reconstituição das paróquias de Donim, Santa Maria e São Salvador de Souto.

Tendo em vista um maior aprofundamento da análise de algumas variáveis demográficas mais significativas, com- pletou-se o trabalho sobre fontes paroquiais com a conta- gem de actos de baptismo e de óbito em mais sete paróquias:

São Cláudio do Barco, Santo Estêvão, Santa Leocádia e São Salvador de Briteiros, Gonça, Santa Eufémia e Santo Tirso de Prazins. Para esse fim, foram criadas fichas de registo de baptismos que permitiam uma leitura por sexos, por meses e por condição de baptismo (legítimos, naturais e enjeita- dos). Em relação à contagem de óbitos, cujo objectivo seria a determinação do índice de masculinidade, procedeu-se ao registo em fichas que os distribuíam por anos e por sexos.

Deste modo, a partir de todas as paróquias observadas, cons- titui-se uma base que ultrapassa dezasseis mil registos de baptismo e nove mil registos de óbitos.

Na perspectiva de definir o enquadramento do fenó- meno da natalidade ilegítima do Minho no contexto portugu- ês, tornou-se necessário estender o trabalho de arquivo a

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fontes paroquiais do Sul do país, em relação ao qual ainda desconhecíamos praticamente tudo o que respeita aos com- portamentos demográficos ao longo do Antigo Regime. As- sim, procedeu-se a sondagens nos registos referentes a S.

Brissos, em Montemor-o-Novo, no interior da planície alentejana, e a Algoz, no litoral algarvio de Silves. Nestas pesquisas utilizaram-se as fichas de registo de contagem de nascimento empregues no Norte de Guimarães, onde foi in- troduzido um novo item de observação: a distinção entre filhos naturais de mulheres livres ou de mulheres escravas, uma vez que desde logo se revelou que a população escrava, praticamente inexistente no mundo rural minhoto, tinha naquelas regiões um peso demográfico significativo, exigin- do, pela natureza da sua condição social e jurídica, um tra- tamento diferenciado.

5. Os limites temporais deste estudo situam-se entre o aparecimento dos primeiros registos paroquiais e o final do século XVIII. O nosso horizonte situava-se no contexto da longa duração, observando-se o fenómeno da ilegitimidade desde tão cedo quanto possível, até ao momento em que as fontes deixassem de permitir uma abordagem segura. Ape- sar da existência de registos disponíveis desde a década de 1560 até ao início do século XX, a nossa pesquisa acabou por se debruçar sobre os séculos XVII e XVIII, uma vez que só a partir do início do século XVII os registos passaram a preen- cher as condições mínimas para o seu tratamento estatístico rigoroso (até aí, os que existiam na zona estudada caracteri- zavam-se quase sempre pela irregularidade e pela falta de rigor). No outro extremo do período de observação, no final do século XVIII, eclodiu um novo comportamento com inci- dência demográfica que irá mascarar completamente o pro- blema da ilegitimidade: o fenómeno do abandono de crian- ças, que ao ser legalizado e favorecido pelo próprio Estado, ia atingir proporções espantosas. Uma vez que uma das regras da protecção à prática da exposição de crianças era a garan- tia do anonimato, não existem meios de determinação segu- ra da condição de nascimento, legítima ou natural, daquelas

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crianças.

As fontes primordiais desta investigação foram, por- tanto, os registos paroquiais de nascimentos, casamentos e óbitos, os quais constituem a base natural dos estudos de demografia histórica portuguesa. Estes registos caracteri- zam-se, como já dissemos, por uma grande irregularidade e falta de sistematização até ao dealbar do século XVII. A partir daí, os párocos foram afinando progressivamente as suas rotinas de registo, mas somente a partir da década de 1720, mercê de um maior controlo hierárquico que transparece dos actos de visitação efectuados aos cartórios paroquiais, é que passarão a ser mais rigorosos tanto quanto à forma como ao conteúdo, tendendo progressivamente para a normaliza- ção dos procedimentos. Todavia, é precisamente a ausência de sistematização dos formulários das notas de registo que se revela, muitas vezes, como um importante manancial de informações pertinentes, nomeadamente quando os páro- cos, colocados perante situações que lhes suscitavam dúvi- das (o que era relativamente comum nos registos de crian- ças nascidas fora do contexto conjugal), elaboravam registos pormenorizados, nos quais descreviam factos que, por re- gra, não deveriam constar de simples notas de actos de bap- tismo, de casamento ou de óbito.

Este trabalho está organizado em duas partes distin- tas. Na primeira, faz-se o enquadramento da problemática dos amores ilícitos em Portugal ao longo do Antigo Regime, nomeadamente com recurso às regulamentações normativas religiosas e civis, ao discurso dos moralistas, a alguns pro- cessos de devassa da moralidade pública e privada. Na se- gunda parte, a partir dos livros de registos paroquiais, pro- cedeu-se à análise demográfica do fenómeno da ilegitimida- de do Norte de Guimarães.

O presente texto resulta da releitura da dissertação de mestrado com o mesmo título, que foi orientada pela Pro- fessora Doutora Maria Norberta Amorim, da Universidade do Minho, a quem me liga uma dívida de gratidão, que vai

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trabalho. Nesta versão foram acolhidas as preciosas ache- gas do Professor Doutor Eugénio dos Santos, da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, para quem aqui fica uma palavra de agradecimento e admiração pela sua paixão pela perfeição.

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Pecado e confissão

(...) Dois corpos tem um casado, O solteiro não mais que um, O virgem tendo nenhum Fica mais avantajado.

(Bernardes, 1759:II, 294)

Como notou Jean Delumeau, nunca como na Idade Moderna uma civilização inteira foi sujeita a uma investiga- ção tão profunda sobre a sexualidade dos seus membros, nomeadamente a que tinha lugar dentro da instituição do casamento (1983:246). Aos olhos dos homens a transgres- são aos preceitos morais relacionados com a sexualidade, tal como era representada no discurso religioso, constituía a principal fonte da perdição das gentes: a sensualidade e a luxúria estavam inscritas no rol dos pecados mortais mais danosos para as almas. Na vasta produção literária e doutri- nária que se destinava a difundir o modelo existencial base- ado na mortificação da carne com vista à salvação da alma, o ideal de pureza era personificado nas figuras de criaturas assexuadas, provavelmente maceradas por padecimentos atrozes associados à continência dos sentidos e à privação amorosa, mas castas, imaculadas e virgens. Todos os outros estados humanos, em maior ou menor grau, estavam man- chados pelo estigma do pecado carnal. No padrão mental desta sociedade era corrente a representação da actividade sexual aparecer associada à imagem do fogo enquanto flagelo

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que tudo abrasa: o corpo, nesta vida, e a alma, na outra. O inventário dos interditos é extenso e enreda todas as ex- pressões da existência humana, a começar pelas manifesta- ções mais platónicas da vida afectiva associadas ao pensa- mento: o simples (não)acto de desejar a mulher do próximo era tido por pecado ruinoso. Desejar a própria também o poderia ser.

Num horizonte existencial estribado numa concepção maniqueísta do mundo e do homem, na perpétua dualidade entre o bem e o mal, as prédicas morais do Antigo Regime pareciam prosseguir na lógica de uma só verdade com duas faces: a virtude e o pecado, a salvação e a perdição, Deus e o Diabo, o Céu e o Inferno, o espírito e o corpo. Neste univer- so estreito, as fronteiras entre as duas margens delimitadoras da existência eram quase sempre ténues: no discurso dos moralistas, o bem estava sempre a um passo do mal. É por isso que era necessário barrar todos os caminhos que con- duziam ao pecado com um imenso rol de interditos e impedi- mentos. Em tal contexto, os aspectos relacionados com a sexualidade, que aparecem englobados nas actividades fu- nestas e pecaminosas susceptíveis de conduzirem os ho- mens aos abismos da perdição e à fatalidade da condenação aos tormentos do Inferno, são objecto primordial dos anáte- mas aterradores dos pregadores e moralistas, que sobrecar- regam os seus discursos com as imagens hediondas dos suplícios com que seriam castigados todos os transgressores que se deixavam transportar pelos deleites dos pecados da carne. Estes, no seu conjunto, constituíam a principal fonte das desgraças espirituais que afastavam o homem de Deus.

A imagem com que se representava o corpo, enquanto espelho em negativo da alma, surgia aos olhos das gentes do nosso Antigo Regime como o reduto da animalidade do ho- mem, o pasto dos instintos a que havia que resistir, mortifi- cando-o com penitências, cilícios e jejuns, o campo dos ape- tites que havia que purgar: as fervenças do corpo, que se não governam pela razão. Muitas vezes, o desejo sexual sur- ge descrito como obra da tentação demoníaca que visava levar as almas à perdição, condenando-a aos tormentos das

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grilhetas do Inferno.

O Padre Manuel Bernardes (1644-1710), na sua Nova Floresta, chama a atenção para o corpo enquanto anagrama de porco:

Não sem razão Corpus, e Porcus, e no Italiano como nós corpo, e porco, e no Espanhol cuerpo, e puerco, e no Fran- cês corps, e porc, se parecem no nome, porque também se parecem na condição, amando por delícias as imundícias: e até na constituição das entranhas se assemelham, pois os Anatómicos suprem este por aquele, para fazerem as suas observações.

(Bernardes, 1759:II, 287) Assim, o corpo era o porco; as práticas sexuais, imun- dícies. No mesmo sentido ia designação, frequente nos es- critos moralistas, usada para identificar o sémen humano:

lixo.

Neste ambiente sombrio, havia que afastar todas as possibilidades de cair em pecado carnal, notando-se, da par- te dos confessores, uma prática de os inquirir rigorosamen- te, quase sempre com uma tal minúcia, que por vezes tende- ríamos a classificar de algo complacente, porque chegava a fazer apelo à descrição explicita dos pormenores mais ínti- mos. Só neste quadro se entende que nos manuais elabora- dos com objectivo de servirem de orientação aos padres con- fessores fosse concedido largo espaço a tudo quanto pudes- se respeitar à luxúria, à sensualidade, ao adultério e à fornicação. Este género da literatura sacra, pelo modo como procede à exposição pormenorizada das diferentes práticas sexuais a indagar nos exames de consciência, aparece-nos como um conjunto de inventários detalhados dos comporta- mentos dos nossos antepassados no campo da sexualidade.

O seu conhecimento, a necessidade de reiterar os interdi- tos, a gravidade das penitências prescritas, revelam-nos, antes de mais, a recorrência de tais práticas nos tempos antigos.

A confissão, no contexto do sacramento da penitência

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dos católicos, constitui a obrigação dos crentes em procede- rem à declaração dos seus pecados, com o objectivo de obte- rem o perdão: trata-se de um ritual de auto-delação indivi- dual, proferida na penumbra do confessionário ao ouvido de um ministro sagrado, que se obriga ao segredo absoluto em relação ao que ouve em confissão e a quem compete admi- nistrar a absolvição. Ao penitente cabe proceder a um rigo- roso exame de consciência, com o objectivo de fazer o enun- ciado dos actos que praticou que, em seu juízo, pudessem ser considerados inconvenientes para a salvação da sua alma.

Aqui, os assuntos associados aos deleites amorosos assu- mem uma clara proeminência, sendo objecto dos quesitos referentes à luxúria, no decurso do exame dos pecados mortais, e às contravenções ao sexto mandamento, que in- terdita a fornicação. Nas obras vindas a lume em Portugal entre finais do século XV e o século XVIII mantêm-se inalterá- veis, no essencial, as traves mestras da ideologia existencial da Idade Média, apologista do valor das virtudes da mortifi- cação e do sacrifício, enquanto meio de acesso à bem- aventurança post-mortem, algures no empíreo, e ferreamen- te penalizadora da vida afectiva e sexual dos nossos ante- passados. As principais mudanças prendem-se com os cui- dados a ter em relação ao modo como eram inquiridos os confessados. Progressivamente, vai-se manifestando esta inquietação: não se estaria a ensinar aos penitentes aquilo que eles porventura não saberiam, quando se lhes pergun- tava explicitamente se haviam feito isto ou aquilo?

Esta preocupação transparecia já do Tratado de Confissom que foi impresso em Chaves em 1489, quando indicava que neste tipo de pecados há de haver mui grande discrição em sua pergunta, ca segundo que põe o direito não deve perguntar pecaste por esta guisa porque então lhe ensi- naria o que ele porventura não fizera e fá-lo-ia depois.

O Jesuíta Cristóvão da Veiga, na sua obra Casos Ra- ros da Confissam, com regras, e modo fácil para fazer uma boa Confissão Geral, ou particular, cuja edição em portugu- ês está datada de 1673, apresenta um vasto conjunto de

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exemplos acerca da necessidade de se confessarem todos os pecados, uma vez que, segundo afirma, o principal autor de calar pecados é o Demónio, partindo da ideia de que Deus deu ao pecado pejo, e vergonha; e à confissão deu-lhe confi- ança; e o Diabo trocou as mãos, fazendo que o pecado tenha confiança que será perdoado. Aliás, é o próprio demónio que manifesta esta opinião, quando, interpondo-se na confissão de uma pecadora, declara: eu sou o que tirei a vergonha a esta mulher, para que sem ela pecasse; e agora lha restituo, para que com ela cale o pecado (Veiga, 1673:10-12).

Numa das suas narrativas exemplares, o padre Veiga conta a história de uma índia do Peru, que estava ao serviço de uma senhora mui principal, que a tinha baptizado com o nome de Catarina. Apesar das advertências da ama, a sua má inclinação se apoderou tanto dela, que tratava, conver- sava, e tinha sua amizade com uns moços mui desonestos, e não deixava por isso de frequentar os Sacramentos, e con- fessava-se amiúde; porém calava sempre suas desonestidades, e desenvolturas, para que o Confessor a não tivesse por louca, e namorada. Tendo caído doente, con- tinuou a confessar-se como era seu hábito, por nove vezes calando os pecados mais graves, porque, sempre que fazia tenção de os contar ao padre confessor, via à sua mão es- querda uma coisa negra, que lhe persuadia a que não se con- fessasse daqueles pecados, porque não eram coisa de im- portância; ao lado direito, via Santa Maria Madalena, ten- tando em vão levá-la a confessar todas as culpas que oculta- va.

A infortunada Catarina acabou por não sobreviver àquela enfermidade. Após a sua morte, a casa onde viveu começou a ser palco de assombrações demoníacas que não poupavam ninguém: o quarto onde se velava o corpo ficou empestado com tão insofrível fedor, que toda a casa infecci- onava, tendo sido necessária a sua remoção para um espaço aberto, para que o ar afastasse o torpe cheiro. Um irmão da antiga ama de Catarina foi arrastado por um Demónio para fora do seu aposento; um criado foi gravemente ferido por uma cutilada; um cavalo, até aí manso, saiu em galope de-

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senfreado pela porta fora, atropelando os que se lhe atraves- savam à frente; os cães da casa, feramente danados, desata- ram a atacar as pessoas. Mesmo depois de lhe ter sido dada sepultura, continuaram as manifestações demoníacas: uma criada, que entrou no aposento que pertencera à defunta, pôs-se em fuga quando sentiu que de uma cantareira lhe atiravam com um grande pote, que dando pelos ares um gran- de estrondo, se desfez em cacos junto dela. Uma outra cria- da daquela casa, em presença de muitas testemunhas, foi agarrada por mãos invisíveis, que a arrastaram por um pé, por largo espaço, dando a pobre miseráveis gritos. Esta invulgar actividade sobrenatural também era notada nas vi- zinhanças: sucedia muitas vezes voarem pelos ares, perto de uma légua, as telhas, e tijolos da mesma casa, fazendo pelos ares tais estrondos, que bem mostravam serem manu- seados pela mão diabólica. As malfeitorias demoníacas pro- longaram-se por vários dias, até que a infortunada defunta apareceu a uma das suas antigas companheiras, que viu que do corpo de Catarina, e de todas as conjunturas dele saíam chamas de fogo, com um pestilencial fedor, que de pés à cabeça a cercava um terrível incêndio. Naquela visão, a moça estava ainda cingida por uma faixa de fogo tão larga, que chegava até à terra, servindo de castigo a suas desonestidades, e desenvolturas.

Morta de medo, a criada ouviu a sua falecida compa- nheira dizer-lhe que estava condenada às penas do Inferno para todo o sempre por haver calado em as confissões os meus graves pecados, dizendo não mais, que as culpas le- ves, e aquilo que menos importava, como são impaciências, leves murmurações, palavras desnecessárias, e outras coi- sas desta sorte; mas calava minhas desenvolturas, amores profanos, e pecados desonestos: porque meu Confessor me não tivesse em conta de pecadora. Antes de desaparecer, dando tristes ais, Catarina disse que foi Deus que a manda- ra avisar as companheiras, para que o seu horrendo castigo a todos servisse de escarmento (Veiga, 1673: 24-26).

Um outro caso de pecados não confessados, carrega- do de pormenores que nos remetem para o imaginário fan-

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tástico, trata da história de uma mulher que resolveu con- fessar a dois dominicanos (um dos quais Penitenciário do Papa) um pecado desonesto de adúltero, que calava havia anos. Enquanto decorria a confissão, o companheiro do Pe- nitenciário, que estava recolhido em oração, observava que da boca da mulher saíam muitos sapos que pela igreja abai- xo iam dando saltos. Viu também que, por vezes, aflorava à boca da mulher que se confessava a cabeça de um fero dra- gão, mas que logo se tornava para dentro, e detrás dele tor- naram a entrar todos os sapos, que pela boca tinham saído.

Terminada a confissão, os dois religiosos retomaram o seu caminho. Quando o Penitenciário ouviu o companheiro con- tar o que observara na igreja, foi tomado de grande aflição, por lhe parecer que tão estranhas visões eram sinais de que a mulher não tinha expurgado todas as suas culpas, calan- do algum pecado. Os religiosos dominicanos, na tentativa de levarem remédio àquele espírito, voltaram atrás, mas já não encontraram a mulher: logo após a confissão, fora acometida de morte súbita. Para intercederem por aquela alma junto de Deus, os dois homens piedosos sujeitaram-se a jejuns e orações durante três dias. Ao terceiro dia, tiveram uma visão aterradora: apareceu-lhes a mulher, cavalgando um horren- do dragão, com duas serpentes enroscadas no pescoço, mordendo-lhe os seios, uma grande víbora na cabeça, ser- vindo de touca, dois torpes sapos nos olhos e com os ouvidos trespassados por duas setas ardentes, lançando chamas pela boca, enquanto que as suas mãos e os seus dedos eram despedaçados pelos dentes de dois cães danados. Dirigin- do-se aos religiosos, a infortunada mulher traçou o retrato da situação em que se encontrava, soltando um espantoso gemido:

Eu sou a desventurada mulher, que confessaste há três dias, e assim como me ia confessando, me saíam sapos pela boca, e o dragão que viu o teu companheiro, que me aparecia na boca, era o pecado desonesto que sempre tive vergonha de confessar, por cuja causa todos os sapos, que eram meus pecados (como não cheguei a confessar o deso-

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nesto, significado em o dragão) tornaram de novo a entrar em minha miserável alma, e desventurado corpo: e neste ponto me tirou Deus subitamente a vida, e sou condenada eterna- mente ao inferno. A víbora que me atormenta a cabeça, por minha soberba, risos e gadelhas com que me enfeitava: tra- go os sapos em os olhos, por castigo das lascivas e desones- tas vistas: as setas ardentes em as orelhas em pena de ouvir vidas alheias, e palavras, e músicas pouco honestas: as cha- mas de minha boca pelas murmurações, e torpes ósculos que usei: as cobras enroscadas, que despedaçam meus peitos, são castigo de meus desonestos abraços: os cães, que mor- dem em minhas mãos, justamente as castigam por minhas desenvoltas obras, e feios toques. Mas o que mais me ator- menta, é o dragão sobre o qual venho sentada, o qual insofrivelmente me atormenta, e eternamente me atormenta- rá por meus sujos deleites, e enormes apetites da carne, que me roem as entranhas (Veiga, 1673: 63-67).

No mesmo sentido de demonstrar que a vergonha deveria ser vencida, confessando-se os pecados cometidos, sob pena de, não o fazendo, serem os pecadores sujeitos a eternos tormentos, vai a narrativa em que se descreve a his- tória trágica de uma rapariga que ocultou a sua gravidez até ao último momento e o castigo implacável que sofreu, às mãos do seu pai:

Uma moça, filha de honrados pais, e talvez enganada de uma criada, ou de alguma falsa amiga, põe os olhos las- civos em um moço; dos olhos, vem aos acenos, e daí ao de- mais; enfim rende-se à culpa, e vendo que o ventre cresce, dissimula quanto pode: mas sempre se declara o fim do su- cesso. A mãe, desconfiando do caso, chamou a filha e per- guntou-lhe o que tinha feito e qual a causa das suas triste- zas, ao que a rapariga respondeu, dissimulando a sua situ- ação: esta tristeza é melancolia: sou opilada, como barro, bebo em jejum. Usando de mezinhas, a mãe tratou de curar a moça dos males que ela dizia padecer. Porém, o ventre cres- cia a olhos vistos. Um dia, quando estava a assistir a uma festa, sentada entre as donzelas nobres, assaltam-na as

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dores, iniciando-se o trabalho de parto. Altera-se a festa, acodem todos, crendo ser acidente, e quanto mais chegam de perto ouvem os gemidos da criança nascida. Todos se admiram do caso, a mãe desmaia; corre a voz aos ouvidos do pai, vem como um leão, representando naquele teatro a tra- gédia da perdida honra, puxa do punhal, e como raio sem contradição, despedaça a filha a puras punhaladas. E o pa- dre Veiga conclui esta narrativa com a sentença: isto é o que passa a quem cala pecados (Veiga, 1673:68-72).

Na sua obra, Cristóvão da Veiga demonstra que para uma alma se condenar a eternos tormentos, bastam os peca- dos de pensamento consentidos, ainda que não sejam pos- tos por obra: e estes tais pecados de pensamento, quando se consentem na vontade, ficam sendo pecados mortais, os quais se não se confessam, são caminho certo da perdição.

Assim sucedeu a uma mulher de grande qualidade, e nobreza, e tão dada à virtude, e santas obras, que o Bispo da Cidade em que morava, a tinha por santa, que um certo dia pôs os olhos lascivamente em um seu criado, e levada (como mulher) de um sensual pensamento, como fraca con- sentiu nele com a vontade. Apesar desta situação nunca ter passado de uma mera fantasia, pôde mais com ela a vergo- nha para encobri-lo, que a obrigação de cristã para confessá- lo; e assim morreu calando o que na vida calou, facto que foi causa dos tormentos por que passou depois da sua morte (Veiga, 1673:84-86).

Cristóvão da Veiga identifica três graus no mau pen- samento: a sugestão (quando o Demónio nos põe em ânimo um pensamento desonesto, o qual vai acompanhado com um princípio repentino de mau desejo: não é considerado peca- do, se se lhe opuser resistência), a deleitação (quando a advertência da razão não seja plena, incorrendo-se em pe- cado venial) e o consentimento (quando o homem advirta o que cuida, e deseje, e voluntariamente se está deleitando em o tal desejo, e pensamento, estando-se perante o pecado mortal a que se refere o nono Mandamento) (Veiga, 1673:87- 88).

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* * *

Segundo o Tratado de Confissom, de 1489, o confes- sor deveria começar por se informar acerca do estado do confessado (se era casado, solteiro ou abarregado) uma vez que este elemento era susceptível de alterar em grau a gra- vidade dos actos declarados. Quanto à luxúria, deveria per- guntar:

Se fornicou com manceba solteira se com casada. Se corrompeu virgem. Se em si mesmo despertou luxúria. Se tra- tou sem vergonha as partes vergonhosas. Se foi poluto por sonho. Se cometeu sacrilégios ou conjurações por luxúria. Se por algum modo cometeu luxúria contra natura. Se olhaste ou desejaste alguma mulher desonestamente. Se provocaste por ti ou por outrem alguma mulher a luxúria. Se porque se afitou bem. Se provocaste os outros a isto. Ou se parou men- tes em este pecado quando o outrem fazia. Se pecou com suas parentas. Se andou em danças por parecer bem (Trata- do de Confissom, 1489:183).

Mais adiante, havia que examinar o respeito pelos Dez Mandamentos sendo dada, como já vimos, particular atenção ao sexto (não fornicarás), em que se fariam dezasseis perguntas:

§ A primeira com quem fez adultério. § A segunda quantas vezes e com quais pessoas. E se for mulher a que se confessa perguntem-lhe se houve algum haver de algum ho- mem que pertencesse a igreja ou o mosteiro. A terceira se for homem pergunte-lhe quantas foram as mulheres casadas, ou virgem, ou viúvas, ou de ordem ou com quantas parentas suas fornicou ou com quantas solteiras dá mancebia e outrossim se dormiu com alguma sua cunhada. A quarta se fez aquele pecado senão como é costume de se fazer. Ou se andava cada uma dessas mulheres com sua frol porque este pecado é muito grave. A quinta se se ajuntou a sua mulher salvante por fazer filhos de benção porque às vezes o casado pode

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pecar mortalmente com sua mulher. A sexta se houve polução.

A sétima se fez isto em lugar sagrado. A oitava se o fez em dias santos ou de jejuns. A ix se jazia nu com a mulher nua. A x se era formosa se feia. A xi se o faz em jejum se depois de comer. A xii se cobiçou alguma que não pudesse haver. A xiii se alcovitou alguém. A xiiii se jouve com elas trabelhando. A

XV se prometeu de casar com alguma mulher sendo seu mari- do vivo. A XVI faça pergunta à pessoa se é casada e se o é direitamente (Tratado de Confissom, 1489:184-185).

Já o Padre Cristóvão da Veiga, no seu livro dos Casos Raros da Confissão, indica em relação ao quarto Manda- mento que os pais se acusem, se se descuidaram de seus filhos, ainda que sejam ilegítimos, em o necessário para a alma, ou para o corpo de sustento, ou ensino e se os enjeita- ram sem justa causa. Para além disto, os casados deveriam igualmente declarar se negaram o débito sem justa causa.

Quanto ao sexto e ao nono Mandamentos deveria todo o fiel que fosse casado declarar, no acto da confissão, se com sua mulher teve palavras desonestas, actos torpes, e outras desonestidades, que pertenciam mais ao apetite sensual do que a geração humana; deviam-se igualmente examinar to- dos os penitentes se nos actos, que hão tido com mulheres, fizeram alguma acção, ou movimento, para que o sémen não gerasse (Veiga, 1673:363-364).

Feita a devassa minuciosa à vida do confessado, e ouvidos os pecados de que se acusava, era chegada a hora de estabelecer a penitência a cumprir, que deveria ser ajus- tada à gravidade dos quesitos resultantes da confissão.

Aos homens eram indicados três estados existenciais no seio dos quais viveriam em conformidade com os ditames divinos: virgindade, castidade (celibato) e continência (no matrimónio), sendo que a Virgindade antecede com vanta- gens ao Celibato, e o Celibato ao Matrimónio. A sorte dos casados segue a natureza: a dos solteiros pende da graça: e a dos virgens participa da glória. Os primeiros parecem ani- mais na terra: os segundos estrelas no firmamento: os tercei-

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ros Anjos no Empíreo (Bernardes, 1759:II, 294). Três figuras bíblicas femininas personificam estes três estados: Maria, a virgindade, Santa Judite, o celibato e Eva, o matrimónio.

No Capítulo XXV da Regra de Cavalaria e Ordem Mili- tar de S. Bento de Avis, dedicado ao voto de Castidade con- jugal, descrevem-se as três virtudes humanas: virgindade, continência e castidade:

Três virtudes há entre si mui irmanadas, posto que diferentes na perfeição. A primeira é virgindade; a qual diz firme propósito de não consentir por toda a vida em gosto algum da carne, ou seja lícito, ou ilícito. A segunda é conti- nência, que é propósito de ao diante não consentir em gostos alguns da carne, ainda que o tal propósito não seja de toda a vida. A terceira é castidade, a qual não deixa consentir em gosto algum de carne ilícito.

Durante o Antigo Regime, mantém-se a pregação do arquétipo da sexualidade no casamento com a função exclu- siva da procriação, inspirada na ideia de Santo Agostinho sobre os três bens do casamento: proles, fides, sacramentum, isto é a procriação, a fidelidade conjugal e a indissolubilidade.

Mas vai-se paulatinamente esboçando a ideia da admissibilidade da função sexual do casamento enquanto meio de temperar as pulsões carnais das criaturas destem- peradas, delimitando-as no interior do matrimónio. Nos seus Diálogos, Frei Amador Arrais fala dos três estados do matri- mónio, nos diversos tempos:

Antes do pecado dos nossos primeiros padres, foi ofí- cio deputado para multiplicação do género humano. Depois do pecado, foi remédio da humana fraqueza. Mas depois que o filho de Deus o autorizou, e santificou com a sua divina presença, e a da sempre Virgem Maria sua Mãe, não é ofício, nem contrato, nem suprimento da fraqueza do homem somen- te, mas também é sacramento. (Arrais, 1974:326).

Leia-se o discurso ao contrário, partindo da palavra

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que se destacou: o casamento não é somente um sacramen- to e ofício para a multiplicação do género humano, mas tam- bém remédio da humana fraqueza: eis como os homens an- tigos, mesmo os mais puritanos dos apóstolos e dos moralis- tas, admitiam a representação do casamento como o territó- rio natural onde os homens encontram lenitivo para as suas pulsões sexuais, as humanas fraquezas.

As transgressões às três esferas em que os homens viviam em conformidade com os preceitos de Deus, constitu- em-se nos três conjuntos de pecados carnais mais comuns:

o estupro, contra a virgindade; a fornicação, contra o celiba- to; o adultério, contra o matrimónio. O rol das infracções em que se poderia incorrer no âmbito da sexualidade, é imenso, como se pode ler no Tratado de Aviso de Confessores, do Arcebispo D. Frei Bartolomeu dos Mártires:

No sexto mandamento se pode perguntar se teve ajun- tamento com casada, porque é adultério. Se com parenta den- tro do quarto grau que é incesto. Se com pessoa sagrada, ou que tem voto de castidade que é sacrilégio. Se com virgem, que é estupro. Se consigo mesmo, que é molície, se com outro da mesma espécie que é sodomia. Se solteiro com solteira que é simples fornicação. Se teve tocamentos impudicos fora do uso matrimonial. Se se pôs em perigo de polução. Se com tensão sensual falou palavras desonestas, ou folgou de as ouvir. Se deliberadamente se deleitou em pensamentos de- sonestos. (Mártires, 1681:17-18)

Por outro lado, na Regra de Cavalaria e Ordem Mili- tar de S. Bento de Avis, datada de 1627, no título que trata do Confessionário da Ordem, e espelho das consciência, ca- racterizando a acusação pelos mandamentos a que deve pro- ceder todo aquele que se confessa, prescreve-se, em relação ao sexto mandamento:

Confessará todo o acto de luxúria que cometeu, com a declaração das circunstâncias das pessoas, que fazem mu-

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dar a espécie de pecado, ou que notavelmente agravam sua matéria: como se fosse com parenta, comadre, casada, ou pessoa do mesmo sexo, etc. E não somente o que nisso fez, mas o conselho, consentimento, ou meio que para isso deu: e ainda o que em sonhos lhe acontecesse por causa do antece- dente, que de propósito deu. E declarará também o desejo, ou pensamento consentido, que nestas matérias teve; por- que, segundo as pessoas a que se dirige, assim mudam a espécie, como a obra.

E quanto ao nono mandamento:

Confessará todo o pensamento e deleitação morosa que teve deliberadamente, para com mulher casada. E posto que a matéria deste preceito se inclua no sexto, por ser de pensamento, cuja obra lá se proíbe, quis o Senhor deste modo recomendar o respeito que neste particular se deve ter a pes- soas obrigadas entre si por vínculo de matrimónio; e com isto nos obriga mais a que tenhamos às que por vínculo de voto, a ele mesmo estão obrigadas.

A Regra, estatutos e reformação da Ordem de Cavala- ria de S. Tiago de Espada de 1627, com o mesmo objectivo, tem um título curioso: “De como se hão de abster de mulhe- res”, obrigando os freires a absterem-se de ajuntamento car- nal com suas mulheres nos dias de jejum, sendo esta orien- tação igualmente válida para as festas de Nossa Senhora, e de S. João Baptista, e dos Apóstolos, e assim nas outras maiores festas, e suas vigílias

No que respeita às práticas a seguir no confessioná- rio, deveriam declarar em relação ao sexto preceito (não fornicarás):

Se teve parte com mulher casada, ou solteira.

Se é casado, e teve parte com alguma mulher.

Se tem outra mulher, se não a sua.

Se gastou sua fazenda com semelhantes pessoas.

Se por estar amancebado, se apartou de sua mulher, ou

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lhe fez algum mal.

Se usou do matrimónio em Igreja, ou lugares proibidos.

Se em tempos proibidos, com desprezo da Igreja.

Se de tal maneira, que impedisse geração.

Se fora do modo natural.

No nono preceito (não desejarás a mulher alheia), o cavaleiros de S. Tiago deveria confessar:

Se desejou carnalmente alguma mulher casada.

E com cartas, sinais, recados, lhe deu a entender seu mau propósito.

Se a importunou com dádivas, ou por qualquer outra ma- neira.

Se a fez querer mal a seu marido.

Se lhe aconselhou que o matasse, por casar com ela.

Se lhe deu palavra, ou juramento de casar com ela, sendo vivo seu marido.

Quando fosse chegado o momento de examinar a cons- ciência do penitente em relação ao terceiro pecado mortal (a luxúria), este deveria comunicar ao padre confessor:

Se teve parte com mulher solteira, ou casada, ou virgem.

Se com parenta em sangue, ou por matrimónio.

Se com freira, ou pessoa que fez voto de castidade.

Se teve por algum tempo amor carnal a alguma mulher.

Se se ocupou em pensamentos e desejos de tal mulher.

Se caiu em polução, dormindo, por sua culpa.

Se estando acordado a procurou voluntariamente.

Se teve parte com mulher contra o modo natural.

Se com homem.

Se com bruto ou besta.

* * *

Neste ambiente de rigorismo contemplativo, o bom cristão era aquele que deveria procurar atingir a perfeição, que apenas estava ao alcance dos que abandonavam, no dizer de Heitor Pinto, as coisas humanas pelas divinas, e se entrega a Deus em holocausto de perpétuo sacrifício. O ideal

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da existência estaria assim identificado com a essência da vida monástica, onde se permanecia gastando o tempo nos louvores a Deus, rezando e cantando os divinos ofícios, su- prindo e sopeando os apetites com vigílias, abstinências, li- ções, meditações, disciplinas, e outros espirituais e corpo- rais trabalhos e exercícios e obras de misericórdia (Pinto, 1984:120). A todos os que não concretizassem este ideal de bons cristãos estavam destinados os padecimentos do Infer- no, território de suplícios vagamente localizado num conti- nente subterrâneo, profusamente representado no imagi- nário, na literatura e na iconografia da sociedade antiga, no qual se padecem dois géneros de tormentos: as torturas físicas e a rejeição perpétua por parte de Deus.

Tome-se o exemplo do quadro do Museu Nacional de Arte Antiga intitulado O Inferno, de autor desconhecido do século XVI. Por entre uma impressionante parafernália de instrumentos de tortura e os corpos contorcidos de dor dos pecadores impenitentes a quem são infligidas as sevícias mais inenarráveis, encontrámos, do lado direito do painel, o espaço onde padecem os que cometeram o pecado da luxú- ria, nomeadamente aquele que aparenta ser um clérigo sodomita acorrentado ao jovem que seria objecto do seu pe- cado e um homem com aspecto de sátiro e uma mulher de olhar enevoado e corpo nu com os traços da sua feminilidade representados com grande nitidez, presos por uma corda que os enlaçava pelos braços: ambos padecerão, às mãos dos algozes infernais, os suplícios mais lancinantes e cru- éis. Porque este era o destino dos que, por fraqueza de índo- le, não conseguiam controlar os seus apetites sensuais e luxuriosos.

O Padre Manuel Bernardes (1759:I, 138-139) relata a história de um soldado pretoriano de Cartago que estragara muito com pecados a sua primeira idade e que, aquando duma pestilência, abandonou a cidade e foi viver com a sua mulher para uma quintinha nos arrabaldes. Aí, o demónio acabou por o levar a cometer adultério com a mulher de um rústico seu vizinho. Pouco tempo depois, o soldado caiu gra- vemente doente, vindo a falecer. No entanto, conseguiria

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tornar ao mundo, para cumprir o tempo de penitência que a gravidade do seu pecado justificava, depois de ter convenci- do um anjo a ficar como seu fiador. É ele que conta a sua experiência no reino da morte eterna, que a todos deveria servir de exemplo, como realça Bernardes numa nota à mar- gem: note-se a graveza do pecado de adultério, que muitos facilmente desprezam.

Segundo o seu relato, quando estava prestes a expi- rar, o soldado viu-se confrontado com uns feros negros agigantados e com dois mancebos formosíssimos. A sua alma, que se esquivara aos primeiros, abandonou-lhe o corpo e entregou-se nas mãos dos segundos, na companhia dos quais viajou através das regiões aéreas, onde apareciam tropas cercando os caminhos e detendo os passageiros. Nos locais por onde passava, havia uma espécie de alfândegas, ou me- sas, cada uma com seu Almoxarife, com livro de razão. Era aí que todas as almas iam prestar as contas dos seus vícios e pecados.

Os dois companheiros de viagem do soldado trans- portavam umas bolsas, que continham todas as suas obras, de onde tiravam com que pagar aos cobradores, que pesa- vam tal por tal, palavra proveitosa, por palavra ociosa, ver- dade por mentira, aplicação na reza por distracção, e em vir- tude por vício, com exacção, e miudeza suma. E foram pas- sando sucessivamente todas aquelas portagens, até ao mo- mento em que alcançaram a alfândega da luxúria, que esta- va mui acima. Nessa altura, já as bolsas com as obras do soldado iam vazias.

Ali me agarraram os malsins, e me representaram vivissimamente na memória quanto neste vício tinha delin- quido, que era muito, e mui feio; porque de idade de doze anos comecei a depravar-me. Oh anos de minha perdição, e miséria! Estava eu desconsoladíssimo, e desanimado por ver tanta fealdade, de que não podia negar ser o autor. A isto acudiram meus companheiros dizendo, que tudo o que per- tencia a este ponto, estava perdoado de graça, quando dei- xara a Cidade, e me retirara a melhor vida. Porém, da contrá-

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ria parte replicaram que ainda depois da retirada cometera adultério duplicado de casado com casada. Neste passo os meus companheiros, não achando nas bolsas virtude que pôr contra tão grave pecado, deixaram-me ali como penhor ou represália, e ausentaram-se.

O soldado foi então açoitado e derrubado sobre a ter- ra, que se abriu, sendo conduzido através de uns labirintos subterrâneos escuros e estreitos, até ao reino da morte eter- na, o lugar onde com os miseráveis moram a tristeza imortal, a dor inconsolável, o pranto, o rugir dos leões esfaimados, e finalmente a total ausência de Deus irado, e irreconciliável.

Era este o destino a que não podiam fugir todos aque- les que não se arrependiam dos seus pecados.

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Regulação da intimidade: devassa e castigo

As autoridades civis e religiosas, no seu esforço legislativo e regulador, revelaram sempre particulares cui- dados em zelar pela moralidade pública. Para tanto, impu- nha-se que se prevenissem situações dúbias, o que explica que parte substancial das medidas decretadas tinham a ver essencialmente com as limitações impostas à circulação de mulheres solteiras e públicas. A lei sobre os julgadores dos bairros da cidade de Lisboa, de 1608, é um documento rico de informação, sendo por isso fonte de inspiração de diver- sas ordenações locais. Vários dos seus títulos são dedicados às mulheres solteiras, ordenando-se nomeadamente que nos diferentes bairros mulher solteira, nem viúva (salvo passan- do dos cinquenta anos, e não tendo filha solteira) tenha es- talagem, nem dê camas em sua casa, senão homens casados de boa vida e costumes; e informar-se-á se nas ditas estala- gens, e casas de camas, se consentem mulheres públicas; e achando nisto culpados os estalajadeiros, ou as pessoas que dão camas, os prenderá e procederá contra eles.

Por outro lado, os julgadores ficam obrigados a recen- sear as muitas mulheres solteiras, que vivem pública e es- candalosamente entre outra gente de bom viver, e com es- cândalo da vizinhança. Identificadas as mulheres que publi- camente vivem, mal ganhando por seu corpo, e não se negan- do a ninguém contra a forma da Lei, os julgadores deveriam expulsá-las dos bairros, obrigando-as a deslocarem-se para as ruas públicas ordenadas pela Lei. No entanto, este pro- cedimento não era aplicável a todas as situações: em relação às mulheres que tivessem em seu viver mais resguardo, e

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não fossem tão públicas e escandalosas, deveriam os julgadores usar de maior tolerância, dissimulando a situa- ção. Como procedimento preventivo, os próprios oficiais de justiça ficavam interditos de entrarem em casa de mulheres mal procedidas, a não ser que a sua missão fosse a de pren- der homiziados; por outro lado, jamais poderiam prender mulheres que vivem mal, sem mandato do julgador do bairro, o qual somente o poderia passar se lhe constasse, e fosse confirmado por testemunhas, que as tais mulheres são pú- blicas, e que se não negam aos que a elas querem ir, porque nestas fala a lei somente.

Pela mesma lei, são obrigados os julgadores a tirarem devassa nos respectivos bairros, de meio em meio ano, con- tra todos os que incorrem, pelas suas práticas, vícios e cos- tumes, nos pecados públicos e privados, nomeadamente contra os amancebados, assim homens como mulheres, barregueiros casados, e de suas barregãs, e de alcoviteiras, dos que dão, ou consentem alcouce em suas casas, e dos que recolhem furtos, e das mães, que consentem suas filhas usar mal de si.

Certamente que inspiradas nestas medidas e pela necessidade de evitar os males que advinham da convivência de mulheres solteiras com os homens das povoações, sur- gem um pouco por todo o lado medidas com os mesmos fins.

No mesmo sentido tinha ido uma medida régia de 1626, que mandava que toda a mulher de qualquer qualidade, que for achada rebuçada, seja presa na cadeia, e condenada em perdimento do manto, e em cem cruzados de pena. Com idên- tico objectivo, em 1692, a Câmara de Guimarães proibiu, sob pena de prisão, multa e expulsão, que se alugassem casas a mulheres solteiras, vindas de fora da Vila para exercerem o ofício de criadas, pelo grande dano que a experiência tem mostrado que esta casta de gentes faz nas repúblicas posta em suas liberdades.

A legislação e os diferentes regulamentos do nosso Antigo Regime deixam transparecer a imagem corrente da mulher enquanto ser eminentemente tentador, sendo a sua

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simples proximidade um objecto de risco. Nesse sentido, são inúmeras as providências que pretendem afastar os homens do convívio com mulheres solteiras, as quais geralmente não podiam viver sozinhas ou encontrar albergue em estalagens ou hospedarias. Em alguns casos, a interdição do contacto com o sexo feminino vai muito mais além, como sucede com os Estatutos do Colégio Militar de Santiago de Espada e S.

Bento de Avis, de 1615, que proíbe o reitor de conceder a qualquer colegial licença para visitar mulheres, senão quan- do forem tão conhecidas, e de tanta qualidade, de que não possa haver suspeita, e a causa tão justificada, que se não escuse a visita -nem também lhes permitirá, que vão falar com freiras, antes lho proibirá, com penas e censuras, e que lhe não escrevam, nem recebam cartas suas -e tendo algum colegial em Coimbra, recolhidas, ou freiras em algum mos- teiro, mãe, irmã, ou tia, irmã de pai ou mãe, poder-lhe-á dar licença para que lhe fale, quatro vezes no ano somente, indo ele sempre por seu companheiro, ou mandando o Vice-Reitor em seu lugar.

Em 1751, enquanto corria o feliz reinado de D. José I, foi publicada uma curiosa lei contra o delito de pôr cornos, tratando de tentar pôr cobro a uma prática bizarra que, ao que parece, naquele tempo seria corrente: o costume de se porem cornos nas portas, e sobre as casas de pessoas casa- das, ou em partes, em que claramente se entende se dirige este excesso contra as mesmas pessoas. Deste uso, de ca- rácter claramente infamante para os visados por estar asso- ciada à presunção de adultério, resultava atrocíssima injúria àqueles contra quem se cometem, e grande perturbação à paz e quietação necessária entre os casados, devendo tirar-se devassa de tais ocorrências. Diligências deste género tinham por vezes efeitos contraproducentes, dando origem a muitas e frequentes desordens, como as que sucediam nas devas- sas de concubinatos, com que procurava evitar-se com o cas- tigo o pecado público.

Foi para prevenir esta situação que em 1769 foi redi- gido um alvará régio proibindo as devassas de concubinatos.

A sua justificação era a seguinte: sucedendo, que as mulhe-

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res casadas, que vivem em boa harmonia com os seus mari- dos, tendo duas pessoas suas inimigas, que vão jurar contra elas nas ditas Devassas, aparecem pronunciadas, presas, e infamadas com descrédito de seus maridos, e expostas ao perigo, que com eles padecem em satisfação da sua honra, que julgam ofendida; sendo aliás nulo o procedimento des- tas Devassas, como contrário às Leis do Meu reino, que não reconhecem parte legítima para a acusação daquele crime, que não sejam os próprios cônjuges: Passando pelo mesmo labéu as filhas, que vivem na companhia de seus pais; ven- do-se por este modo obrigados os pais a casá-las com as mesmas pessoas com quem ficaram infamadas, e com quem talvez as não casariam se se não tivesse publicado aquele trato ou verdadeiro, ou falso. Ordenou então o rei que se não realizassem mais devassas de concubinatos, e que se pu- sesse perpétuo silêncio sobre todas as que já tivessem sido feitas. Este alvará apenas previa uma excepção: os casos de concubinatos com concubinas teúdas e manteúdas com ge- ral e público escândalo.

Como transparece da leitura deste alvará, o esforço legislador do reinado de D. José I, na vigência do consulado do Marquês de Pombal, é revelador de grande clarividência social e política. É disso também exemplo a lei de 1775 ocor- rendo à aliciação, sedução e corrupção dos Filhos Famílias de ambos os sexos, que visava fazer frente aos excessos, abusos e violências relacionados com os processos ardilo- sos, movidos pelo cobiça de um bom partido, utilizados para forçar casamentos através de processos viciosos e nulos na própria origem, uma vez que, ao usarem da coacção e da violência, contrariavam o princípio segundo o qual a validade de um casamento dependia de um recíproco, livre, e espontâ- neo consentimento. Por vezes, esses casamentos eram cele- brados clandestinamente, sem a anuência dos pais ou tuto- res dos nubentes, tida por necessária. Os abusos eram de tal ordem que havendo chegado a tal excesso de escândalo a liberdade de alguns indivíduos, que abandonados a uma vida licenciosa, e destituídos das qualidades, que podiam habilitá-los para casamentos nobres, e opulentos, se valiam

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de quantos reprovados modos inventara a malícia, e a liber- tinagem, para corromperem o espírito das Filhas famílias.

Por tais meios (abuso da amizade ou do parentesco; compra de favores de terceiros; promessa de casamento, etc.) se conseguiam superar todas as dificuldades para a obtenção do matrimónio ambicionado que, noutras circunstâncias, di- ficilmente teria lugar. Os pais das raparigas seduzidas, para remirem as honras de suas Filhas, viam-se colocados peran- te um dilema ou a consentirem nos casamentos, que os aba- tiam, e deslustravam; ou recorrerem à última extremidade de uma exerdação, tão contrária à Natureza e ao comum voto dos Pais, como destrutiva das bases e termos da paternida- de.

Estas práticas estavam já interditas à luz da legisla- ção vigente, que reprimia os crimes de rapto (com o objectivo de realizar casamentos clandestinos que, depois de consu- mados, acabariam por ser aceites pelos pais das noivas) e de estupro (cópula com menor, mediante promessa de casa- mento), mas apenas eram aplicados entre as gentes do povo, delas se eximindo os nobres, cujas vítimas eram as mais afectadas por não acusarem criminalmente aqueles insultos, os sentiam, e sofriam, reduzidos à última necessidade de tomarem o partido de um casamento indigno, que para ser infeliz, bastaria efectuar-se por princípios tão reprovados e aleivosos. Para evitar estas situações, e impedir que os profanadores da honra das famílias, em vez de castigo pelos seus actos, encontrassem o prémio de um casamento acima da sua condição social, o rei estabeleceu que aqueles que cometessem o delito de aliciamento, solicitação e corrupção das filhas alheias que vivem com boa, e honesta educação em casa de seus pais incorriam no crime de rapto por sedu- ção, estabelecendo para esses casos as penas de dez anos nas galés ou de degredo para Angola, no caso dos nobres.

Por outro lado, as raparigas que estivessem debaixo da tute- la de pais ou parentes e se deixassem corromper, ficariam desnaturalizadas das Famílias, a que pertencerem, e iná- beis para delas herdarem, ou haverem alimentos; a mesma pena estava destinada aos filhos família que se casassem

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