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O reportório das bandas filarmónicas dos distritos de Aveiro e Coimbra: análise e estudo da sua evolução desde 1980

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Universidade de Aveiro Ano 2014

Departamento de Comunicação e Arte

FAUSTO MANUEL

NUNES MOREIRA

O reportório das Bandas Filarmónicas dos distritos

de Aveiro e Coimbra. Análise e estudo da sua

(2)

Universidade de Aveiro Ano 2014

Departamento de Comunicação e Arte

FAUSTO MANUEL

NUNES MOREIRA

O reportório das Bandas Filarmónicas dos distritos

de Aveiro e Coimbra. Análise e estudo da sua

evolução desde 1980

Dissertação apresentada à Universidade de Aveiro para cumprimento dos requisitos necessários à obtenção do grau de Mestre em Música, realizada sob a orientação científica do Professor Doutor António José Neves Vassalo Lourenço, Professor Auxiliar do Departamento de Comunicação e Arte da Universidade de Aveiro.

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o júri

presidente Profª Doutora Helena Maria da Silva Santana

professora auxiliar da Universidade de Aveiro Doutor Luís dos Santos Cardoso

Vogal – Arguente Principal

Prof. Doutor António José Vassalo Neves Lourenço professor auxiliar da Universidade de Aveiro (Orientador)

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agradecimentos Ao Exmo. Doutor Luís dos Santos Cardoso, expresso o meu especial

agradecimento, pela sua dedicação e por todo o seu constante apoio, acompanhamento e disponibilidade.

Aos meus grandes amigos Mestre Jorge Humberto Fernandes Mota, docente no Departamento de Economia, Gestão e Engenharia Industrial da UA, e ao Professor Manuel Cidalino Madaleno pela sua orientação e disponibilidade.

A todos os professores da Universidade de Aveiro que me ajudaram a compreender e aprofundar conhecimentos durante a minha licenciatura e mestrado.

À minha família, colegas e amigos pelo incentivo, amizade, companheirismo, paciência e compreensão.

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palavras-chave Bandas Filarmónicas; Evolução de repertório;

resumo O presente trabalho de investigação pretende estudar a representação da

música portuguesa no reportório das bandas filarmónicas e a sua evolução, nos distritos de Aveiro e Coimbra, na transição do séc. XX para o séc. XXI, tomando como referência temporal o período decorrente entre 1980 e 2011.

Com vista à concretização deste objetivo, foram envidados todos os esforços para a obtenção da mais completa recolha de informação, inventariação de repertório gravado pelas Bandas Filarmónicas – e registado na Sociedade Portuguesa de Autores – e sua subsequente análise.

A motivação para este objeto de estudo residiu na tentativa de fazer alguma luz sobre os principais quesitos correlativos ao processo gradativo de mudança do repertório e ao modo como estas questões influenciaram a evolução do próprio conceito de Banda Filarmónica, conservando, a despeito dos constrangimentos de natureza diversa, a essência da sua emanação popular. Esta aparece abundantemente espelhada em incontáveis artigos e relatos encontrados em jornais locais publicados a partir do final do séc. XIX.

A compreensão do processo da mudança de paradigma assenta, essencialmente, na demonstração quantificada, com base nos registos fonográficos, da evolução das características do repertório, designadamente da diversificação, da proeminência e do declínio dos diferentes géneros musicais, tipos de composição (originais/transcrições/arranjos) e sua origem (portuguesa/estrangeira). O estudo permite concluir que o repertório de concerto das Bandas Filarmónicas sofreu alterações que podem ser classificadas como profundas no que respeita a todos os aspetos em análise.

(6)

keywords Civic Wind Bands; Repertoire Evolution;

abstract This research work aims to study the representation of Portuguese music in

the repertoire of civic wind bands and their evolution in the districts of Aveiro and Coimbra, in the transition of the XX century for the XXI century, taking as time reference the period between 1980 and 2011.

In order to achieve this objective, we made every effort to obtain the most complete collection of information, repertoire inventory recorded by civic wind bands - and registered at the Portuguese Authors Society - and its subsequent analysis.

The motivation for this study is based in an attempt to shed some light on the main questions related with the gradual process of the repertoire change and how these issues influenced the evolution of the concept of Civic Wind Band, preserving, despite the nature of diverse constraints, the essence of his popular emanation. This appears abundantly mirrored in countless articles and reports found in local newspapers published from the end of the XIX century.

Understanding the paradigm shift process is essentially based on quantified demonstration, based on sound recordings, changes in repertoire features, including diversification, of the prominence and the decline of the different musical genres, types of musical composition (original / transcriptions / arrangements) and its origin (Portuguese / foreign).

The study concludes that the concert repertoire of the Civic Wind Bands suffered changes that can be classified as deep with regard to all the analyzed aspects.

(7)

ÍNDICE GERAL

Introdução ... 7

1.O Âmbito da Pesquisa e os Procedimentos Metodológicos ... 9

1.1Definição do âmbito da pesquisa ... 9

1.2 Os procedimentos metodológicos ... 9

2.Evolução do conceito de Banda Filarmónica ... 13

2.1 Alterações na composição das BF ... 13

2.2Alterações na estrutura instrumental das BF ... 14

2.3 Alterações no contexto performativo ... 15

3. As Bandas Filarmónicas nos Distritos de Coimbra e Aveiro – Elementos Históricos ... 17

3.1Coimbra e Aveiro: dois distritos pioneiros ... 18

3.2As filarmónicas como emanação do povo ... 19

3.3As condições de performance... 20

3.4 O ambiente em torno dos despiques – da emulação à violência ... 21

3.5 A qualidade musical e as questões disciplinares ... 22

3.6 A perda de fulgor dos despiques ... 24

3.7 A influência do Clero: os Constrangimentos Religiosos e Morais ... 26

3.8Constrangimentos de natureza política ... 30

4. Surgimento e Evolução da Fonografia ... 37

5.Contextualização e Caraterização do Campo de Estudo... 41

5.1 A relação entre a densidade populacional e o número de Bandas Filarmónicas ... 41

5.2 O distrito de Aveiro – geografia e demografia ... 43

(8)

5.3 O distrito de Coimbra – geografia e demografia ... 48

5.3.1 Localização das BF por Concelho - Coimbra ... 49

5.4 Uniformidade do campo de estudo ... 52

5.4.1As dissemelhanças entre os distritos ... 53

5.4.2 As semelhanças entre os distritos ... 53

6.Análise de Dados ... 55

6.1 Critérios de recolha de dados ... 55

6.2 Análise das gravações por género musical ... 55

6.2.1 Considerações prévias... 55

6.2.2 Marchas de rua / militares ... 57

6.2.3 Marchas de concerto / pasodobles ... 60

6.2.4 Marchas de procissão / solenes / fúnebres ... 62

6.2.5 Aberturas ... 63

6.2.6 Transcrições (suites, aberturas, óperas,…) ... 64

6.2.7 Divertimentos / fantasias / escorços sinfónicos ... 66

6.2.8 Música ligeira ... 68

6.2.8.1 arranjos e originais ... 68

6.2.8.2Medleys / seleções pop ... 69

6.2.8.3Música ligeira de tema único ... 71

6.2.9 Arranjos de música de filmes e musicais / Televisão ... 72

6.2.10Rapsódias (originais e arranjos) ... 74

6.2.11Música tradicional ... 76

6.2.12Obras de circunstância... 77

6.2.13Obras para solistas ... 78

6.2.14Hinos ... 80

6.2.15Suites ... 81

(9)

6.3.1 Conclusões decorrentes da análise dos quadros quantitativos por

géneros (música portuguesa) ... 82

6.3.2 Conclusões decorrentes da análise dos quadros quantitativos por géneros (música estrangeira) ... 85

6.3.3 . Conclusões decorrentes da análise dos quadros relativos aos tipos de composição ... 87

6.3.4 Conclusões decorrentes da análise dos quadros comparativos quantitativos globais ... 91

6.3.5 Conclusões globais ... 92

7.Limitações e sugestões para futuras pesquisas ... 97

Referências Bibliográficas ... 99

Outras fontes ... 100

Lista de notícias de periódicos ... 100

Anexos ... 103

Anexo I... 104

Anexo II... 151

Índice de quadros Quadro 1 - Relação, por distrito/Região Autónoma, entre a demografia e o número de Bandas Filarmónicas ...41

Quadro 2 – Dados demográficos e número de BF por concelho ...44

Quadro 3 – Relação das BF do distrito de Aveiro por concelho, localidade e data de fundação. ...45

Quadro 4 – Dados demográficos e número de BF por concelho ...49

Quadro 5 – Relação das BF do distrito de Coimbra por concelho, localidade e data de fundação. ...50

Quadro 6 – Gravações realizadas (marchas de rua e marchas militares): ...59

Quadro 7 – Gravações realizadas (marchas de concerto/pasodobles): ...61

Quadro 8 – Gravações realizadas (marchas de procissão/solenes/fúnebres): ...62

(10)

Quadro 10 – Gravações realizadas (transcrições): ...65

Quadro 11 – Gravações realizadas (divertimentos/fantasias/escroços sinfónicos): ...67

Quadro 12 – Gravações realizadas (música ligeira – arranjos e originais): ...68

Quadro 13 – Gravações realizadas (medleys/seleções pop): ...70

Quadro 14 – Gravações realizadas (fado/canção/marcha-canção de tema único): ...72

Quadro 15 – Gravações realizadas (arranjos de música de filmes e musicais/TV): ...73

Quadro 16 – Gravações realizadas (rapsódias – originais e arranjos): ...75

Quadro 17 – Gravações realizadas (música tradicional): ...77

Quadro 18 – Gravações realizadas (obras de circunstância): ...78

Quadro 19 – Gravações realizadas (obras para solistas): ...79

Quadro 20 – Gravações realizadas (hinos): ...80

Quadro 21 – Gravações realizadas (suites): ...81

Quadro 22 – Síntese quantitativa das gravações por géneros (música portuguesa): ...82

Quadro 23 – Síntese quantitativa das gravações por géneros (música estrangeira): ...85

Quadro 24 – Síntese quantitativa das gravações por tipo de composição – música portuguesa (originais, transcrições e arranjos): ...87

Quadro 25 – Síntese quantitativa das gravações por tipo de composição – música estrangeira (originais, transcrições e arranjos): ...88

Quadro 26 – Estatística global das gravações – música portuguesa e estrangeira: ...89

Quadro 27 – Sinopse comparativa do número de gravações por género musical: ...91

Índice de ilustrações

Ilustração 1 - Mapa político do distrito de Aveiro 43 Ilustração 2- Mapa político do distrito de Coimbra 48

Índice de gráficos

Gráfico 1 – Marchas de rua/marchas militares (Gráfico demonstrativo de evolução do

peso relativo). 59

Gráfico 2 - Marchas de concerto/pasodobles (Gráfico demonstrativo de evolução do

peso relativo). 61

Gráfico 3 – Aberturas (Gráfico demonstrativo de evolução do peso relativo). 64 Gráfico 4 – Transcrições (Gráfico demonstrativo de evolução do peso relativo). 65 Gráfico 5 – Divertimentos/fantasias/escorços sinfónicos (Gráfico demonstrativo de

(11)

Gráfico 6 – Música ligeira- arranjos e loriginais (Gráfico demonstrativo de evolução do

peso relativo). 69

Gráfico 7 – Medleys/seleções pop compostas por vários temas (Gráfico demonstrativo

de evolução do peso relativo). 70

Gráfico 8 – Fado/Canção/Marcha-canção de tema único (Gráfico demonstrativo de

evolução do peso relativo). 72

Gráfico 9 – Arranjos de música de filmes e musicais/TV (Gráfico demonstrativo de

evolução do peso relativo). 73

Gráfico 10 – Rapsódias (Gráfico demonstrativo de evolução do peso relativo). 75 Gráfico 11 – Obras de circunstância (Gráfico demonstrativo de evolução do peso

relativo). 78

Gráfico 12 – Obras para solistas (Gráfico demonstrativo de evolução do peso relativo). 79 Gráfico 13 - Suites (Gráfico demonstrativo de evolução do peso relativo). 81 Gráfico 14 – Gráfico de evolução dos tipos de composição de música portuguesa

(originais, transcrições e arranjos) 88

Gráfico 15 - Gráfico de evolução dos tipos de composiçãoa de música estrangeira

(originais, transcrições e arranjos) 89

Gráfico 16 - Evolução da Música Portuguesa / Estrangeira (número global das obras

gravadas) 93

Gráfico 17 - Evolução da Música Portuguesa / Estrangeira (percentagem global das obras

(12)
(13)

I

NTRODUÇÃO

As questões relacionadas com o percurso evolutivo das Bandas Filarmónicas (BF) levantam interrogações e perplexidades de ordem diversa. O seu estudo é suscetível de se afigurar particularmente curioso na tentativa de confirmar ou infirmar intuições e de encontrar explicações para alguns dos fenómenos percecionados. De entre estes, assumem particular relevância os aspetos atinentes ao entendimento, mais ou menos empírico, da existência, sobretudo nas últimas décadas, de profundas alterações nos repertórios.

Esta perceção, que, à partida, é também a do autor, identifica-se com a opinião de vozes consagradas do panorama musical das BF, de entre as quais poderão ser referidas, pelo seu peso:

- a do Maestro Catalão Carlos Diègues que comentou na revista Filarmonia ao mais alto nível, a propósito dos concertos realizados no Europarque por iniciativa da empresa Cardoso & Conceição: “Porque não tocaram uma obra portuguesa? Eu notei a sua falta.(…)” (Diègues 2011,49);

- a do maestro professor Luís Macedo que afirmou, no âmbito desses mesmos concertos: “Conheço e reconheço o trabalho dos compositores portugueses, daí considerar de bom gosto e importante a inclusão de uma, duas obras dos nossos compositores: o que é nacional é bom” (Macedo 2010, 39);

- a do maestro António Ribeiro que, no mesmo registo, enalteceu o facto de, contra a corrente, uma BF ter incluído uma obra portuguesa no seu repertório: “(…) é sempre de louvar a preferência por um compositor português que está a apresentar ideias musicais muito interessantes” (Ribeiro 2010, 47).

- a do maestro André Granjo que, na Enciclopédia da Música em Portugal no século XX, escreveu: “O repertório executado pelas BF vem sofrendo algumas alterações, fruto de uma nova realidade artística no seio das BF, mas também das mudanças do paradigma performativo” (Granjo 2010, 1365).

(14)

A despeito de se verificar uma absoluta unanimidade, neste registo, das múltiplas afirmações escritas e opiniões oralmente expressas que foi possível compulsar, a verdade é que parece não existir qualquer trabalho académico metódico, abrangente e quantificado que possa sustentá-las.

Foi esta ausência de demonstração que sugeriu a temática da presente dissertação, partindo do princípio de que poderia revestir-se de interesse a elaboração de um trabalho que pudesse confirmar esta perceção comum, suportando-a, ou colocá-la em causa, em caso de tendência para a sua infirmação.

O tema foi, igualmente, inspirado pelo envolvimento pessoal do autor no mundo filarmónico desde há cerca de quarenta anos, trinta dos quais no cargo de maestro e, a este título, com obrigação de estar particularmente atento à evolução das tendências dos repertórios, que pretende aqui tornar objeto de abordagem estruturada. Esta foi realizada de acordo com procedimentos metodológicos julgados apropriados, que se encontram detalhadamente descritos no capítulo 1., e abrangendo um período o mais longo possível, de modo a permitir retirar ilações sem ambiguidades relativamente ao objecto de estudo.

Com a sua realização pretende responder-se a questões como: a da correspondência das perceções à realidade; a do modo como terá diacronicamente evoluído o repertório das BF no período relativamente ao qual existem dados susceptíveis de servirem de base ao estudo (1981-2011); a dos motivos que poderão ter dado forma e conteúdo à evolução que se pretende averiguar; e a das especificidades e proporções das eventuais mudanças verificadas, dando delas uma ilustração tanto quanto possível objectiva, pelo recurso à quantificação nos diversos parâmetros entendidos como pertinentes.

(15)

1.

O

Â

MBITO DA

P

ESQUISA E OS

P

ROCEDIMENTOS

M

ETODOLÓGICOS

1.1 D

EFINIÇÃO DO ÂMBITO DA PESQUISA

O objeto definido para estudo consistirá na análise da evolução dos repertórios das BF no período compreendido entre 1981 e 2011 na área sócio-geográfica que compreende os distritos de Aveiro e de Coimbra.

Esta definição obedece ao duplo desígnio do autor de se debruçar, de forma aprofundada, sobre o período por si vivenciado no seio do mundo filarmónico e de centrar o estudo na realidade geográfica na qual se movimenta.

Os dois distritos escolhidos com base neste critério são confinantes do ponto de vista geográfico, apresentando caraterísticas relativamente idênticas, por terem ambos importantes faixas litorais e se estenderem por vastas regiões montanhosas interiores. A mesma semelhança relativa se poderá afirmar no que respeita às realidades económicas, sociológicas e culturais. As próprias tradições, designadamente no que respeita às festividades, romarias e manifestações de caráter musical – incluindo as que envolvem a participação das BF – não apresentam diferenças, quer ao nível da forma como se desenrolam, quer ao nível do conteúdo/programação que possam considerar-se significativas ou que retirem coerência ao conteúdo temático em análise ou aos procedimentos metodológicos.

1.2 O

S PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS

Para a condução do estudo, considerou-se a necessidade de reunir informação suscetível de permitir a maior objetividade de apreciação quantitativa e qualitativa. Considerou-se, para o efeito, que de todos os corpos de informação disponíveis, aquele que melhor permitiria atingir tal objetivo consistiria em tomar como indicador significativo o

(16)

número de gravações efetuadas pelas BF desta área geográfica, partindo do princípio razoável de que estas gravações constituirão um corpo representativo das tendências dos repertórios efetivamente executados.

Para aceder a este corpo foi solicitada a colaboração da Sociedade Portuguesa de Autores (SPA) que, muito gentilmente, forneceu todos os elementos referentes às gravações em discos vinil, cassete e compact disk (CD), que foram realizadas pelas BF da área geográfica em estudo, durante o período cuja análise se pretende fazer na presente dissertação.

Na posse destas informações, procedeu-se à sua exploração exaustiva, designadamente em termos de:

- descrição das gravações efetuadas em cada ano do período em estudo, por cada uma das BF, referenciando a origem de cada obra gravada (portuguesa/estrangeira) e o respetivo género musical;

- quantificação das obras gravadas, discriminando-as por ano, por origem (portuguesa/estrangeira) e por género;

- elaboração de quadros quantitativos para cada uma das discriminações; - análise desses mesmos quadros;

- elaboração de curvas ilustrativas do peso de cada género, por ano e por origem, no total das obras gravadas;

- dedução das conclusões permitidas pela apreciação analítica realizada.

Para além da consulta de obras e autores de referência, devidamente inventariadas na Bibliografia, julgou-se interessante juntar à informação aí colhida, uma outra, que se entendeu inovadora em trabalhos desta natureza, por, até ao momento, não ter sido objeto de exploração analítica. Trata-se da compulsação de textos publicados desde o início da imprensa local, no séc. XIX, e que, tendo sido redigidos por pessoas dos meios rurais, que se identificavam com o ambiente de implantação e de atuação das BF, constituem

(17)

documentos genuínos de elevado valor para quem quiser fazer a História do movimento filarmónico. Neste contexto – e na impossibilidade de realização de uma consulta alargada a toda a imprensa local estampada durante mais de um século – foram examinadas exaustivamente as notícias publicadas nos periódicos existentes nas Bibliotecas Municipais de Cantanhede e de Coimbra, e que, refletindo a realidade vivida numa relativamente vasta zona que abrange território de ambos os lados da “fronteira” entre os dois distritos em estudo, se poderá considerar como uma amostragem credível.

Neste âmbito foram consultados os periódios: Jornal de Cantanhede (1899-1917), Defensor do Povo (1889-1890), Notícias de Cantanhede (1910-1917), O Ançanense (1914-1916), Ecos da Cantanhede (1914-1925), Gazeta de Cantanhede (1917-1969), Comarca de Cantanhede (1932-1936) e Boa Nova (1936-…).

Em todos os casos, trata-se de jornais que apresentam a caraterística de serem, no essencial, preenchidos com notícias redigidas pelos correspondentes nas diferentes localidades da região. Estes, tomando muito a sério a sua função, relatavam, minuciosamente, os (poucos) acontecimentos ocorridos nas suas terras e, na ausência de matéria substancial, espraiavam-se em apreciações, que podiam assumir caráter valorativo, sobre as ocorrências, as atitudes, aspetos da vida social e cultural, etc. Em tal contexto, a vida das BF, pela sua importância local e regional enquanto coletividades, era objeto de particular atenção e tratamento.

Por conseguinte, o presente trabalho integra abundantes informações e citações procedentes destes textos, que se acharam relevantes para este estudo. Delas foi elaborada uma lista que consta das referências bibliográficas sob a designação Outras Fontes.

Foram estes, em traços gerais, os procedimentos metodológicos considerados os mais pertinentes e que serviram de base à estruturação da investigação realizada no âmbito da dissertação que a seguir se desenvolve.

(18)
(19)

2.

E

VOLUÇÃO DO CONCEITO DE

B

ANDA

F

ILARMÓNICA

Sendo comummente designadas pelos termos e expressões “banda filarmónica”, “banda de música”, “banda civil”, “banda”, “filarmónica”, ou simplesmente “música”, as Bandas Filarmónicas (BF) são genericamente definidas como agrupamentos musicais constituídos por instrumentos de sopro e de percussão.

Como refere Gòis (1990, 41-43), na definição de “Banda”, cabem múltiplas variantes, quer em termos da sua constituição instrumental (que tende a variar em função das épocas e dos recursos), quer quanto ao seu estatuto institucional. No que a este se refere, poderemos basicamente encontrar as Bandas com enquadramento estatal ou para-estatal (designadamente as Bandas Militares) e as Bandas civis, predominantemente integradas no movimento associativo. Esta diferença de contexto institucional tem alguma repercussão na conotação terminológica, remetendo o termo “Banda” preferencialmente para a ligação às Bandas Militares, enquanto as restantes designações reenviam mais para a esfera “civil”.

Ao longo dos últimos anos, a História das BF tem sido objeto de análises e contributos diversificados, que muito a têm enriquecido. Sendo ocioso repisá-los de uma forma global, ao longo desta dissertação serão citados aqueles cujos temas de estudo sejam considerados pertinentes.

2.1 A

LTERAÇÕES NA COMPOSIÇÃO DAS

BF

De entre os aspetos que não será despiciendo referir, salienta-se o facto de, embora com nuances segundo as regiões, as BF, território exclusivamente varonil até finais dos anos 60, terem, a partir daí começado a acolher, nas suas fileiras, elementos do sexo feminino.

Este fenómeno ter-se-á devido fundamentalmente a duas razões:

- a evolução entretanto produzida no âmbito dos costumes, com a aceitação de novas formas de participação social e cultural por parte da mulher;

(20)

- a escassez de elementos masculinos como consequência do forte movimento migratório daquela década e da participação dos homens na guerra colonial.

Este ingresso das mulheres – gradual, mas que viria a tomar grande peso na constituição das BF, ao ponto de, em algumas delas, predominar agora o número de executantes femininos – afirmou-se como uma enorme lufada de ar fresco para o movimento filarmónico, garantindo, simultaneamente, a sua continuidade e a sua vitalidade.

2.2 A

LTERAÇÕES NA ESTRUTURA INSTRUMENTAL DAS

BF

A abordagem da evolução do conceito de BF não poderá ser feita sem que sejam referidas as modificações e variações da estrutura instrumental por estas sofridas ao longo do tempo. De entre os aspetos que mais contibuíram para estas alterações estruturais, deverão ser salientados:

- a promoção dos Ciclos de aperfeiçoamento de regentes amadores de Bandas Civis, pelo INATEL, durante todo o último quartel do séc. XX;

- a criação, em 1989, das Escolas Profissionais de Música;

- o aumento do número das escolas de música, e designadamente o surgimento das Academias com paralelismo pedagógico um pouco por todo o país (Granjo 2010, 1366);

- a criação de cursos de direção para orquestras de sopros em Universidades e Institutos Politécnicos, a exemplo de Aveiro, Viseu e Almada (Granjo 2010, 1366);

- a promoção de numerosos cursos para jovens maestro e músicos, frequentemente orientados por competentes maestros estrangeiros.

- a introdução de novos instrumentos de percussão (primeiro a bateria de Jazz e, mais tarde, os instrumentos de lâminas, tais como o glockenspiel, o xilofone e a marimba, entre outros), que contribuíram para novas sonoridades e novas instrumentações.

(21)

- a introdução de novos instrumentos até aí quase exclusivos das orquestras sinfónicas (oboé, corne-Inglês, fagote, clarinete baixo, trompa de harmonia, trombone de varas, contrabaixo de cordas e até violoncelos), fez com que algumas bandas se transformassem nas chamadas Bandas Sinfónicas.

Dois estudos, realizados por Granjo (2010, 1366) são reveladores da evolução havida neste aspeto. No primeiro, efetuado em 2001, em 121 BF inquiridas, “podíamos encontrar 20 oboés, 13 fagotes, 12 clarinetes baixos e 54 trompas.” No segundo, realizado entre 2007 e 2010, em 50 bandas da mesma região (menos de metade das bandas do estudo anterior), verificou-se a existências de 34 oboés, 32 fagotes, 34 clarinetes baixo e 138 trompas de harmonia.

O autor comentava os resultados destes estudos, anotando duas conclusões relevantes:

- a de que “Esta constatação, embora [refletisse] apenas uma parte do universo das bandas da Região Centro do país, [era] sintomática de uma mudança substancial na matriz instrumental das BF (…)” (Granjo 2010, 1366);

- a de que tal mudança havia constituído o resultado óbvio das inciativas supra referidas (criação de escolas e cursos – com o consequente aumento do número de músicos –, formação de maestros, contacto com maestros e músicos estrangeiros).

2.3 A

LTERAÇÕES NO CONTEXTO PERFORMATIVO

Estas transformações foram acompanhadas, no tempo, de alterações no contexto performativo, que podem ter resultado da convergência de diversos fatores, entre eles:

- o surgimento de uma enorme diversidade de novas ofertas para preenchimento da componente musical das festas;

- a consequente redução do espaço habitualmente ocupado nessas festas pelas BF (que ficou, muito frequentemente reduzido às arruadas, missas e procissões);

(22)

Em contraponto, começaram a surgir progressivamente oportunidades de performação em espaços e contexto de concerto “(…) que vão desde os encontros/festivais de BF até concursos ou ainda grandes ciclos de concertos de BF em espaços de concerto até há pouco tempo vedados a estes agrupamentos (…)” (Granjo 2010, 1365).

Contudo, a tentação simplista que possa surgir de alguém pretender afirmar a existência de uma correlação direta entre as mudanças verificadas e as alterações do contexto performativo deverá ser evitada enquanto tal matéria não tiver sido objeto do necessário estudo, que não parece caber no âmbito do objeto definido para este trabalho.

(23)

3.

A

S

B

ANDAS

F

ILARMÓNICAS NOS

D

ISTRITOS DE

C

OIMBRA E

A

VEIRO

E

LEMENTOS

H

ISTÓRICOS

Segundo Franco (2011, 177-226), em 1800, haveria doze BF em Portugal, tendo sido a mais antiga criada em 1700 a do Grupo Musical Fraternidade Pampilhosense , no distrito de Coimbra. O mesmo autor enumera a fundação de mais dez até 1815 e situa em 1818 o início do grande movimento de fundação de BF, como consequência da ação do rei D. João VI e da rainha D. Maria II.

As profundas transformações conhecidas ao longo dos tempos foram condicionadas por grande diversidade de aspetos, de entre os quais sobressaem os referentes aos recursos materiais e humanos, à formação musical dos regentes, à qualidade da formação musical ministrada aos músicos e às questões determinantes da escolha do repertório (sobretudo as estratégias diretivas e os contextos de performance).

Em todos os domínios que dão corpo à História das BF, os distritos de Coimbra e de Aveiro – que são objeto deste estudo – parecem ser bem representativos do que se terá passado a nível nacional, a começar pela questão de as filarmónicas terem “(…) encontrado o seu modelo inspirador (…)” (Lameiro 2010, 108) no fardamento das Bandas Militares,inspiração essa que se terá mantido muito viva durante mais de um século e que, com alguma frequência, se terá mesmo transformado numa espécie de obsessão. Isso se deduz de um texto datado de 1906, que ilustra particularmente o que se passava no início do séc. XX:

“Também merece atenção especial a tineta das filarmónicas para usarem fardamento que se aproxima o mais possível das bandas militares. Há músico que, tendo metido pregos por costuras e agulhas por alfinetes para se livrar do serviço do exército, dá o cavaquinho por se apresentar em público com a farda da filarmónica.

Esta maluqueira mansa chegou, em tempo, a tal grau de intensidade, que o ministério da guerra fez uma reclamação e o do reino ordenou que não fosse permitido os filarmónicos usarem fardamentos que se pudessem confundir com os dos músicos das bandas regimentais” (Jornal de Cantanhede 1906, 3).

(24)

3.1 C

OIMBRA E

A

VEIRO

:

DOIS DISTRITOS PIONEIROS

De acordo com a listagem, aparentemente exaustiva, estabelecida pelo mesmo autor, os distritos de Coimbra e de Aveiro aparecem como pioneiros na dinâmica de fundação das filarmónicas. Com efeito, três das quatro primeiras BF portuguesas foram criadas nestes dois distritos (Pampilhosa da Serra, em 1700; Santiago de Riba-Ul, em 1722 e Figueiredo, em 1741). E, entre as primeiras vinte e duas, fundadas no país até 1815, sete situavam-se igualmente nesta área geográfica. Nela, o movimento foi ganhando dimensões consideráveis nas últimas décadas do séc. XIX, recorrendo-se, para a obtenção de meios, ao apelo ao bairrismo das populações e à disponibilidade económica de personalidades locais. Ilustra-o o caso da Banda da Pocariça, cuja criação uma notícia de 1895 afirmava estar dependente do surgimento de alguém que se prestasse (…) a abonar sob fiança a quantia precisa para aquisição do instrumental necessário” (Jornal de Cantanhede 1895b, 3).A mesma notícia referia que, se esta filarmónica viesse a ser instituída, só no concelho de Cantanhede passariam a existir seis BF. E, logo a seguir, na Tocha, seria fundada a sétima. Tal proliferação suscitava mesmo o comentário galhofeiro de que seriam já “(…) gaitas de mais para o concelho” (Jornal de Cantanhede 1895b, 3). De facto, a abundância de BF constituía, neste caso, uma ameaça à subsistência de todas elas, havendo quem preconizasse, como medida de salvaguarda, a fusão das bandas geograficamente mais próximas, (Ecos de Cantanhede 1921, 2). Quem fazia estas apreciações e recomendações pretendia, acima de tudo, que fosse acautelado o importante papel social e cultural das Bandas, escrevendo que:

“(...) do tríplice ponto de vista civilizador, ilustrativo e recreativo, as filarmónicas podiam e deviam mesmo, representar um papel importante nessas vilas e aldeias onde os divertimentos escasseiam e a estupidez abunda. É sem dúvida muito mais louvável e civilizado que duas dúzias de homens se entretenham a fazer passar fusas e colcheias do papel de música para as palhetas dos clarinetes e bocais dos contrabaixos, do que irem para a taberna embebedarem-se [ou] envolverem-se em desordem, trabalhando a navalha e o cacete na perfeição das perfeições” (Jornal de Cantanhede 1906a, 3).

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3.2 A

S FILARMÓNICAS COMO EMANAÇÃO DO POVO

Muitos relatos, em diferentes épocas, demonstram que a simbiose entre as BF e o povo era impressionante, constituindo as Bandas uma forma de expressão privilegiada do orgulho e do bairrismo. A cada saída da sua filarmónica, a população mobilizava-se para a acompanhar. Em maio de 1914, o jornal Ançanense comentava que, para onde fosse a “música” de Ançã, ia também “(…) a maioria do povo, [que] até para a cova [ia] com ela” (Ançanense 1914a, 2).

Por conseguinte, as praças animavam-se, enchendo-se de multidões de adeptos que não regateavam os “vivas” às suas filarmónicas e os “morras” às bandas adversárias. O ambiente de emulação assim criado, em que cada banda queria afirmar a superioridade da sua competência musical e do seu repertório, prolongava interminavelmente os concertos, conforme era relatado pelos correspondentes locais dos jornais. Das inúmeras situações assim documentadas, só no triângulo Anadia-Cantanhede-Mira (atravessado pela fronteira entre os dois distritos), citam-se alguns exemplos, a título de ilustração: em 1892, em Vilarinho do Bairro, as filarmónicas da Camarneira e dos Covões debateram-se (…) até à madrugada. Foi um fartote de música para o povo (Jornal de Cantanhede 1892a, 2); no mesmo ano, em Covões, a música local esteve em despique com a da Camarneira “(…) desde as 11 horas da noite até às 7 da manhã” (Jornal de Cantanhede 1892b, 4); em Mira, em 1894, “(…) tocaram ao fogo as duas filarmónicas daqui, Velha e Nova, batendo-se fortemente sem a menor interrupção, desde as 9 horas da noite até às seis da manhã” (Jornal de Cantanhede 1894a, 3); em 1900, na Tocha, “(…) as músicas agradaram em geral, tocando até altas horas do dia (…)” (Jornal de Cantanhede 1900a, 3); em 1901, em Ançã, nenhuma das filarmónicas “(…) queria abandonar o coreto em que respetivamente estavam. Houve músico que até lá dormiu a sua soneca” (Jornal de Cantanhede 1901, 4); em 1904, em Cantanhede, “(…) numa das ruas da alameda, em frente ao jardim tocava um concerto da Filarmónica Restauração, dançando-se muito animadamente desde a meia-noite até às seis horas da manhã” (Jornal de Cantanhede 1904, 3); em 1909, em Covões, «(…) realizou-se, com o costumado esplendor, a festa do “Ano Bom” (…), que foi muito abrilhantada pela filarmónica da terra (…) até altas horas da noite»(Jornal de Cantanhede 1909, 2); em 1914, em Cordinhã, “(…) dançou-se animadamente até de manhã (…) ao som da música da Filarmónica de Ançã” (Ançanense 1915, 2); em 1936, na Camarneira, “(…)

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às 22 horas iniciou-se o concerto que durou 5 horas consecutivas tendo as filarmónicas posto em evidência os seus valores artísticos e os seus vastos repertórios” (Gazeta de Cantanhede 1936, 2).

A tradição perdurou por muitas décadas, sendo, em 1948, ainda noticiado que, em Febres, “(…) o despique das afamadas Bandas da Pocariça e Covões [durou] até de madrugada” (Boa Nova 1948a, 4).

3.3 A

S CONDIÇÕES DE PERFORMANCE

Como refere o Jornal de Cantanhede (1913, 3), anote-se que estas longuíssimas atuações se faziam frequentemente em condições desastrosas. Os coretos, que chegavam a ter estrados “em declive”, eram geralmente de acanhadas dimensões, e suportados por troncos franzinos, sendo a sua construção tão rudimentar que, não raramente, era colocada em perigo a integridade dos músicos. Acontecia mesmo desabarem durante os concertos, “(…) caindo tudo no meio do arraial (…)” (Jornal de Cantanhede 1891, 3), a exemplo do que aconteceu em 1897, em Febres (Jornal de Cantanhede 1897, 3), em 1902, em Cantanhede (Jornal de Cantanhede 1902, 2), e em 1891, em Vilarinho do Bairro, onde “(…) resultou partirem-se alguns instrumentos e haver contusões graves” (Jornal de Cantanhede 1891, 3).

A assombrosa duração dos concertos colocava problemas de repertório, tornando-se impossível não repetir várias vezes as mesmas peças: em 1931, em Ançã, houve concerto “(…) que durou até às três horas da madrugada, sendo aplaudidos e bisados todos os números executados” (Gazeta de Cantanhede 1931, 3). Mas nem sempre as coisas corriam da melhor forma: em 1894, no supra citado concerto de Mira, que durou nove horas, os elementos da “Música Nova” bloquearam a saída do coreto aos da “Música Velha”. Assim, forçados a continuarem em palco, para não darem “parte de fracos”, estes viram-se obrigados a

“(…) repetir a peça dos chocalhos [com] o fim de, por meio desta e doutras que, de quando em quando, fossem repetindo, poderem prolongar o seu pequenino repertório até que a ingrata da [“Música Nova”], à mercê de quem

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estavam, lhes desse licença que saíssem do coreto, o que, ainda assim, lhes valeu terem de repetir bastantes peças, algumas delas mais do que uma vez”, repetições que provocaram a revolta do povo contra a Banda. A “Música Nova”, pelo contrário, depois de assim ter humilhado a “Velha”, “(…) não repetiu uma única, e ainda lhe tocou seis de uma vez” (Jornal de Cantanhede 1894c, 2-3).

3.4 O

AMBIENTE EM TORNO DOS DESPIQUES

DA EMULAÇÃO À VIOLÊNCIA

A conjugação destes fatores criava um clima de rivalidade que se refletia em frequentes desordens entre populares e mesmo entre músicos. Aliás, os jornais locais falavam frequentemente dos despiques usando palavras como “batalha” e “troféu”, o que não deixa de ser revelador.

Deste modo, só numa linha de escassos 15 km entre Covões e Anadia, no curto espaço de oito anos, três incidentes graves estão relatados: em 1892, nas festas de Vilarinho do Bairro, a Filarmónica de Paredes apedrejou a da Camarneira, havendo “(…) grande balbúrdia e [sendo] feridas muitas pessoas” (Jornal de Cantanhede 1892e, 3). Em 1893, em Samel, houve “(…) grande desordem no arraial, entre as filarmónicas de Covões e Camarneira, ficando alguns músicos gravemente feridos, por causa de existirem grandes rivalidades entre as duas povoações da freguesia” (Jornal de Cantanhede 1896, 1). Em 1900, em Ventosa do Bairro, houve despique “(…) entre as filarmónicas da Mealhada e Paredes. Como era de esperar os ânimos estavam exaltados e divididos em dois partidos, de forma que rebentou grossa pancadaria, sendo vítima uma pobre mulher de 60 anos, em mau estado um tal Augusto Bucete de Sepins, várias pessoas contusas, incluindo alguns cabos de polícia” (Jornal de Cantanhede 1900, 4).

A situação de bairrismo exacerbado em torno das filarmónicas era tal que só as precauções tomadas pelas autoridades evitavam um maior número de “batalhas campais”. Em 1892,

“(…) houve quem oficiasse ao Ex.mo

governador Civil, fazendo-lhe uma pintura tétrica do estado de exaltação em que se achava a freguesia de Covões e

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pedindo-lhe uma das alas do regimento de infantaria 23 e o destacamento de cavalaria 10 que se acha em Coimbra. (…). Com as providências tomadas, a autoridade fez um serviço importante às duas músicas: evitou que os trombones e mais instrumentos saíssem em estado de não mais servirem” (Jornal de Cantanhede 1892b, 3).

Em 1895, de novo, só as “(…) salutares providências policiais tomadas (…)” evitaram grandes males (Jornal de Cantanhede 1895, 3).

Das notícias coligidas, constata-se que, nesta atmosfera, os apoiantes das diferentes bandas faziam questão de as distinguir por, invariavelmente, as considerarem vencedoras dos despiques. Entre os prémios – pomposamente designados por “troféus” – mais habituais na área geográfica da Bairrada/Gândara, que compreende território dos dois distritos, são referidos ramos e coroas de flores, leitões assados acompanhados de “rascante1”, folhas de palmeira, e ainda bandeiras “(…) em sinal de glória (…)” [uma de seda azul e outra feita] “(…) um lenço de tabaqueiro, atado ad-hoc num pau de feijões, até com alguma casca ainda (…)”, “(…) um lampião portátil, de papel, com uns desenhos alegóricos e muito bem iluminado” (Jornal de Cantanhede 1892c, 4; 1892d, 3); (Jornal de Cantanhede 1894b, 3; 1894c, 2-3) e “(…) uma fita artisticamente pintada, (…) que agradou bastante a todos os músicos que veem assim premiados os seus esforços” (Gazeta de Cantanhede 1933a, 2).

3.5 A

QUALIDADE MUSICAL E AS QUESTÕES DISCIPLINARES

Estes “galardões” informais remetem para a questão da qualidade musical que, em grande parte dos casos, seria mais do que duvidosa, a exemplo do que era relatado, em 1910, acerca das duas filarmónicas de Cantanhede, que seriam

“(…) o mesmo que não te[r] nenhuma: ninguém a sério, com consciência do que afirma, pode chamar filarmónicas a dois grupos, de uma dúzia de homens cada um, que têm, de tempos a tempos, por única manifestação musical, a

1 O termo “rascante” era utilizado para designar o vinho que deixava travo na garganta por excesso de

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exibição em público, numa aldeia relapsa do concelho, de uns restos de harmonia que lhe ficaram de tempos melhores, [continuando a tocar] o seu antiquíssimo reportório” (Lopes 1910, 3).

No mesmo ano, era referido que a Filarmónica Tochense ia, finalmente, “(…) entrar nos eixos” (Notícias de Cantanhede 1910, 3). Contudo, vinte e seis anos depois, reconhecia-se “(…) nunca ter sido uma boa banda” (Boa Nova 1936a, 4). Em 1912, a Comissão de Festas de Ourentã queixava-se de que a Filarmónica Boa União, de Cantanhede, “(…) pouco agradou aos mordomos e ao povo (…)” (Notícias de Cantanhede 1912a, 3). Em 1936, era aliás referido serem raras as festas para as quais esta era convidada, porque as pessoas “(…) já distinguem músicas boas das fracas (…)” e já não “(…) estamos no tempo em que a Música da Tocha era aplaudida só pelas caras” (Boa Nova 1936a, 4).

Em 1914, era criticada a qualidade da de Ançã, que “(…) desafinou quanto pôde, apesar de celebrar, neste dia, o seu 33.º aniversário” (Ançanense 1914b, 1). No mesmo ano era referido que a Filarmónica “Ressurreição”, de Mira, “(…) estava em completa desorganização [o] que já lhe tem acontecido por diversas vezes”. Os seus músicos teriam, de tal modo, a noção da sua falta de qualidade, que chegaram a ser “(…) sacudidos por uma violenta vaga de terror (…) quasese não segura[ndo] nas pernas (…)”quando tiveram de atuar em Corticeiro de Cima (Comarca de Cantanhede 1935, 4). Em 1948, também eram censurados os mordomos das festas de Murtede que, «(…) esquecidos do rifão “o que é barato é caro; o que é bom custa dinheiro...”», para“(…) não gastarem mais uns escudos, deix[aram] de contratar uma música que satisfaria plenamente”, justando a Banda de Barcouço, a qual “(…) não se portou à altura do nome que usufruía” (Boa Nova 1948b, 3).

À frequentemente duvidosa qualidade musical, haverá que acrescentar a atitude indisciplinada dos músicos, que aparece muitas vezes referenciada. Citam-se três exemplos, que surgem como significativos:

- em 1911, na Tocha, a filarmónica local, que devia atuar nas celebrações religiosas, só apareceu depois de a procissão terminar. Curiosamente, o povo revoltou-se, não contra a Banda, mas contra o pároco, por este não ter esperado pela Banda (Notícias de Cantanhede 1911a, 3).

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- em 1912, em Ourentã, a Filarmónica Boa União abandonou a igreja a meio da comunhão, por não lhe apetecer tocar mais (Notícias de Cantanhede 1912a, 3; 1912b, 3).

- em 1948, em Murtede, a filarmónica de Barcouço terá conseguido sozinha fazer a síntese de tudo aquilo que era motivo das razões de queixa mais habituais:

“(…) começou o serviço contratado três quartos de hora depois da marcada, [apenas] com dezasseis músicos!... Uns vinham pelo caminho, outros nunca mais chegaram... (…) Acompanharam as crianças da Comunhão e nem se dignaram entrar na igreja! (…) À Missa compareceram meia dúzia de músicos; os outros ficaram cá por fora... a tomar os frescos ares... A Missa foi pessimamente executada de tal forma que os sacerdotes não perceberam uma palavra do latim!... (…) Durante a Procissão, com as frequentes e demoradas interrupções, não tocaram mais do que metade do percurso!... (…) Quando, no fim dela, o Rev.º Pároco mandou cantar o Tantum Ergo, não estava um único músico dentro da Igreja!...” (Boa Nova 1948c, 4).

3.6 A

PERDA DE FULGOR DOS DESPIQUES

Até aos anos 70 do séc. XX, prosseguiram os relatos de frequentes incidentes motivados por esta rivalidade “clubística” sem fim, ilustrada, quer pela tentação de despiques a todo o custo – como foi o caso das duas BF da freguesia de Covões (Covões e Camarneira) – ora pela impossibilidade da sua realização, como acontecia com as duas BF de Fermentelos, que só ao fim de cerca de 70 anos (já no final da década de 1980) conseguiram enfrentar-se em despique.

Todos os registos escritos encontrados em jornais consultados desde o séc. XIX deixam a confirmação subentendida daquilo que, pela transmissão oral, é do conhecimento de todos no mundo filarmónico – a existência de um código de regras não escritas pelas quais deve reger-se todo o despique, designadamente a da chamada resposta, ou seja, a BF da festa inicia, normalmente com uma Marcha, à qual a outra responde também com uma Marcha; de seguida a primeira toca uma transcrição de uma obra clássica à qual a sua opositora responde da mesma forma. E a BF que não siga os padrões tácitos assim

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estabelecidos, logo é vista com maus olhos. Cito, a este respeito, uma experiência pessoal, ocorrida há cerca de 25 anos, num despique na Gafanha da Nazaré, no qual a Banda Gafanhense, no concerto da tarde, tocou o Pop Show nº4. Não tendo eu ainda experiência neste meio musical, questionei os músicos mais velhos sobre se seria aceitável tocar essa mesma peça no concerto da noite, ao que eles responderam não haver qualquer inconveniente. Perante esta resposta, decidi incluir o Pop Show n.º 4 no programa. Para minha surpresa, porém, o público reagiu com tal exaltação de ânimos que, não fora o facto de o coreto ser alto, com toda a probabilidade os elementos da minha Banda não teriam escapado a agressões.

A partir da década de 1970, o ambiente em torno dos despiques foi-se progressivamente transformando. O silêncio quase sepulcral com que se escutava a execução do repertório deu lugar a uma atmosfera de barafunda sonora, resultante dos múltiplos ruídos de fundo gerados por carrocéis e engenhos elétricos instalados em “standes” de diversão, muitas vezes equipados, por acréscimo, com amplificações de som que difundem, mesmo durante os concertos, os mais variados conteúdos musicais e apelos publicitários aos potenciais clientes.

Desde aí, um complexo conjunto de razões, sobretudo de natureza social, económica e cultural, foi provocando a perda de fulgor da tradição dos despiques. Os que hoje acontecem são escassos. No distrito de Coimbra, só existirão ainda duas festividades onde este costume é cumprido: a do São Tomé de Mira, todos os anos, e a de Nossa Senhora das Febres (em Febres), com interrupções ocasionais. No distrito de Aveiro esta realidade é um pouco diferente existindo vários lugares onde continuam a realizar-se. Destaco o de 15 de agosto em Fermentelos, o de 8 de setembro em Perrães, e o de São Gonçalinho de Aveiro, no mês de janeiro…

Os concertos onde, noutro contexto, se juntavam BF, eram – à imagem do que ainda hoje acontece – aqueles que se realizavam por ocasião dos seus aniversários, e nos quais participavam Bandas convidadas. Contudo, neste tipo de eventos não era tradição fazer concertos ao despique.

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Mais recentemente começaram a surgir, um pouco por todo o lado, os chamados “encontros” de BF, que podem contar com a participação de um número muito variável de Bandas.

A partir da década de 80 do séc. XX, devido ao surgimento das primeiras gravações em discos de vinil e em cassetes áudio, os concertos ao vivo deixaram de ser as únicas ocasiões de conhecimento do repertório das BF. A tendência para registar os repertórios acentuou-se com o aproveitamento e a generalização do acesso à evolução tecnológica, designadamente a partir da gravação dos primeiros CDs na década de 90. Só é, no entanto, referida uma BF como fazendo o registo de tudo o que toca nas suas diversas atuações desde há alguns anos: a de S. Paio de Antas.

3.7 A

INFLUÊNCIA DO

C

LERO

:

OS

C

ONSTRANGIMENTOS

R

ELIGIOSOS E

M

ORAIS

Até à década de 1960, a regulamentação eclesiástica transformava as BF em elementos-chave da realização das festas religiosas, desempenhando funções litúrgicas, por “(…) só o latim [ser] permitido nos cânticos da missa, momento solene que a Igreja tornou obrigatório para qualquer festa de arraial.” Tal facto determinaria que a Igreja regulamentasse “(…) as suas atuações e os comportamentos individuais dos seus membros, o que resultou por vezes na eclosão de conflitos entre a hierarquia católica e as BF” (Lameiro 2010, 108).

Da desobediência às normas impostas pela igreja poderia resultar a excomunhão das BF, que assim ficavam interditadas de atuar nas festas religiosas – o que, na prática, comprometia a sua sobrevivência. De entre os casos de BF às quais foi aplicada a pena de interdição, citam-se três exemplos: em 1922, o Bispo de Coimbra impôs esta sanção à Filarmónica do Troviscal como consequência da sua participação num enterro civil, punição que só seria levantada em 1939 (Gazeta de Cantanhede 1939, 1); no mesmo ano, o mesmo Bispo interditou a Filarmónica de Covão do Lobo (Vagos) por ter participado, na Praia de Mira, “(…) numa espécie de procissão levando, pela rua principal, em duas padiolas enfeitadas, o “deus do mar” e uma marafona de… barro (…)” (Comarca de

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Cantanhede 1935, 4); em 1948, o Bispo de Coimbra interditou a Filarmónica de Ançã, por ter cometido “(…) violação dos direitos da Igreja (…)”, trazendo “(…) elementos do Jazz, interditos a tocar nos atos religiosos, apesar dos compromissos escritos que tomou de o não fazer” (Gazeta de Cantanhede 1948b, 2).

O receio motivado por esta permanente ameaça de retaliação levaria a que as BF recusassem participar em festas sempre que suspeitassem de que algo poderia colocá-las sob a alçada disciplinar das autoridades eclesiásticas. Exemplo dessa circunstância sobreveio em 1932, quando a BF de Cantanhede, que deveria participar na festa de S. Pedro, em Aljuriça (Cadima), “(…) recuou… benzendo-se três vezes (…)”, perante a ameaça do pároco de que “(…) a música, indo assistir, poderia incorrer em penalidade eclesiástica”(Gazeta de Cantanhede 1933b, 2).

Acrescia a este receio, o do poder arbitrário que alguns párocos se arrogavam de, invocando pretextos de ordem religiosa, castigar as bandas que não eram da sua cor política, proibindo a sua contratação. Essa prática – que seria relativamente frequente dado o enorme poder político do clero nas últimas décadas da Monarquia – é ilustrada pelo relato do sucedido nas festas de Febres de 1898:

“O pároco desta freguesia é de um grande facciosismo político (…). Já tem sucedido deixarem de se fazer algumas festividades [por] ele não consentir que toque dentro da igreja música que não seja da sua feição política.

A filarmónica de Covões está neste caso e, sabendo ele que tinha sido uma das convidadas para tocar na festividade, protestou que a não deixaria tocar na igreja e à procissão, levantando assim um conflito com os mordomos.

O digno administrador do concelho teve de intervir e veio aqui de propósito para harmonizar [mas] o pároco [não] quis transigir. Não consentia que a música de Covões tocasse na procissão e caso o fizesse recolhia imediatamente esta à igreja. (…).

O digno administrador, para evitar talvez algum conflito e maior escândalo, resolveu proibir que a outra música2 tocasse também na procissão.

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E lá saiu a procissão com duas filarmónicas atrás e com os instrumentos debaixo do braço em sinal de luto: parecia um préstito fúnebre” (Jornal de Cantanhede 1898, 3).

Neste aspeto específico, dever-se-á anotar que houve uma interpenetração dos diferentes meios de divulgação, sendo as “estrelas” (não apenas os intérpretes, mas também os compositores) geralmente nomes comuns ao teatro de revista, à rádio e ao cinema. A edição fonográfica acompanhava esta celebrização. Contudo, o facto de serem os mesmos protagonistas a dominarem os diversos palcos apresentava o inconveniente de restringir o número de intérpretes e, consequentemente, os tipos de repertório.

Um tal condicionamento ideológico, sempre sob o pretexto de se atender a valores e conceitos muito apertados de moral e de bons costumes, moldava os gostos dos auditores e os padrões de consumo que tendiam a encontrar motivos para rejeitarem tudo o que não se inscrevesse no paradigma da propaganda do regime. Uma ilustração deste facto pode ser encontrada, por exemplo, no texto seguinte, inserto no jornal Boa Nova (1947, 3), em 13 de dezembro de 1947:

«Mas, se é grande o prazer que sentimos com a boa música religiosa na Emissora [Nacional], não é menor o desgosto que nos invade em ouvindo discos, como ainda há pouco aconteceu, cantando “Os amores do Redentor, de que não reza a história Sagrada3”, cujo tema é a deturpação, à guisa de Renan4, da sublime conversa de Jesus com a Samaritana.

Lamentamos profundamente que a Emissora Nacional não duvide afrontar a fé de grande totalidade de seus ouvintes com um disco blasfemo, demais a mais sob a desconcertante rubrica “Música da nossa terra”.

Será, sim, de terra de comunistas, que nanja da nossa, da qual se lia na exposição do Mundo Português em legenda oficial: Portugal foi sempre cristão.

E saiu isto da Emissora Nacional!»

3 Tratava-se do conhecido fado de Coimbra intitulado “Samaritana”. Tendo passado, inicialmente, o crivo da

censura, na sequência da multiplicação de indignadas reações deste tipo acabaria mesmo por ser colocado no índex, tornando-se proibida a sua execução ou difusão pública.

4 Ernest Renan, filólogo, abandonou funções eclesiásticas e publicou, em 1863, a sua principal obra, A Vida

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Deste texto ressalta também o papel da Igreja que se identificava com a ideologia do regime em termos da “modelação” dos gostos e da cristalização dos hábitos de consumo, contribuindo, tal como o fazia a censura do Estado Novo, para reprimir tudo o que não encaixasse neste desígnio de “aportuguesamento” dos padrões do consumo musical. Assim, eram duramente reprimidos pela hierarquia religiosa, com penas de excomunhão, Bandas Filarmónicas5 menos “obedientes” e grupos musicais com instrumentos de “Jazz”. No que a estes diz respeito, «em 1942, o Bispo de Coimbra “(…) proibiu durante cinco anos, festividades religiosas na Póvoa da Lomba e lançou ainda o interdito, durante seis meses a João Gomes dos Santos, por este ter falado a um jazz que tocou num baile ali realizado, ao ar livre, por ocasião das festas religiosas do dia 9 de agosto em honra de N. S. das Neves» (Gazeta de Cantanhede 1942, 3). No mesmo ano, o categorizado Grupo Musical das Franciscas, que foi interditado em 1942 pelo Bispo de Coimbra por motivo utilização de «(…) instrumentos caraterísticos de “jazze”» 6 (Madaleno 2014, 123-124).

No mesmo objetivo de controlo de géneros musicais e dos próprios executantes (fazendo pesar sobre eles a ameaça de interdição), pelo menos na Diocese de Coimbra, era anualmente tornada pública “(…) a lista das músicas e gaiteiros que, na nossa diocese podem ser convidados para abrilhantar festas religiosas” (Boa Nova 1949, 4).

Também a hierarquia do Sistema Educativo exercia pressões no sentido de serem valorizados os estilos musicais politicamente convenientes. Assim, em 1932, “(…) o Senhor Inspetor Orientador [das Escolas Primárias] lamentou a influência da cidade sobre o campo, fazendo desaparecer quase tudo o que caraterizava o singular povo português: bons costumes e simples, trajes regionais, poesia e música de ignoradosautores, etc.” (Boa Nova 1936b, 4).

5

Assim aconteceu, designadamente, com a Filarmónica do Troviscal (Gazeta de Cantanhede, 1939, n.º 1153), com a Filarmónica do Covão do Lobo – Vagos (Comarca de Cantanhede, 1935, n.º 162) e com a Filarmónica de Ançã (Gazeta de Cantanhede, 1948, n.º 1613).

6 O mesmo autor acrescenta que o termo «“jazze” ou “jazz” designaria, não apenas o conhecido e popular

género musical, mas também, impropriamente, qualquer música de baile, considerada fonte de pecado e, como tal, proscrita. Por extensão, o termo “jazz” era também aplicado para designar os conjuntos musicais que animavam os bailes. Os instrumentos utilizados no “jazz” eram considerados objetos de perversão moral, sendo interdito o seu uso em festas religiosas.»

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A condenação de estilos musicais poderia ainda aparecer dissimulada sob outros pretextos, como era o caso da condenação das simples modas vestimentares e de aparência:

“Ainda há poucos dias, através da T. V., vimos cançonetistas e interpretadores de músicas ié-ié, com os cabelos tão compridos – como se de fêmeas se tratasse” (Gazeta de Cantanhede 1968, 1).

O posicionamento da atividade de edição, distribuição e divulgação fonográfica conformou-se com os desígnios do poder, contribuindo para a cristalização destes valores.

3.8 C

ONSTRANGIMENTOS DE NATUREZA POLÍTICA

Finalmente, também os aspetos de política meramente laica condicionavam o comportamento das BF, conforme se infere do texto seguinte, publicado em 1891, no Jornal de Cantanhede (1891, 3):

«É de saber-se que terra onde haja duas filarmónicas é sempre terra de política assanhada e desordens rijas em perspetiva permanente. Cada filarmónica pertence a determinado cacique da localidade, de partido político diferente, já se vê.

A filarmónica é a expressão dos sentimentos políticos dessas terras e das malandrices desses caciques. Exemplifiquemos:

Estão no poder os progressistas?

Estão bem, porque os puseram lá. Pois desde o momento em que o Diário do Governo publica que eles estão, já a filarmónica partidária do grupo regenerador não pode sair à rua a tocar, nem comparecer nas festas, nem às vezes reunir-se!!!

Estão os regeneradores? Idem na mesma data.

Calcule-se que golfadas de ódios e projetos de vingança não circulam nas veias da labregada musical, forçada a conter no saco, durante três ou quatro anos, enquanto os rivais andam na berra, de fardamento e barretina empenachada, a percorrerem as ruas da vila com trezentos idiotas atrás e um marmanjo de suíças e cinta adiante, a botar foguetes! É de tremer.

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Dado o caso de, por especial mercê, ambos terem licença para sair à rua, milagre será que não venham às mãos e os respetivos instrumentos não sirvam de armas de ataque rijo nessas pelejas de selvagens furiosos.

Caciques mirabolantes, gimbrantes e pedantes têm especial amor às “suas” filarmónicas, às quais, de vez em quando, oferecem fardamentos novos e instrumentos caros.

Eles bem sabem que a sua influência e importância só podem impressionar fundo a alma rude dos povos pelas fífias dos cornetins e barulho dos pratos.

As filarmónicas, não há duas opiniões diferentes, são permanente elemento de discórdia em quase todas as terras.

A saída da filarmónica representa sempre um motivo de sustos e receios para o partido que está fora do poder, e apreensões especiais da parte da respetiva autoridade administrativa.

Passar uma filarmónica a tocar pela rua onde está a casa da filarmónica contrária representa para esta récua de asnos sem igual no mundo, a maior de todas as ofensas e a mais injuriosa de todas as provocações!!!

A reconciliação de duas filarmónicas, caso que raras vezes se dá, atinge as raias do sentimentalismo mais patético (e pateta) que se pode imaginar.

Há abraços, beijos, saúdes, vivas, e alguns velhos tocadores de clarinete até choram!!!

Filarmónico sabe tanto de política como eu de lagar de azeite, mas lá está sempre no seu posto, às ordens do mandão da terra, para anunciar aos povos as boas novas da política.

Em muitas terras, os músicos de uma filarmónica não falam aos da outra, tendo-lhe mesmo raiva adquirida por acumulação de factos e violências antigas.

Só do ponto de vista artístico, todas elas são uma verdadeira lástima, exceção das que não têm rival na sua terra.

Durante o tempo que está no poder o partido contrário, como não podem sair à rua nem são convidados para festas por medo de que haja desordem, os músicos não estudam e perdem os mecanismos dos instrumentos, de maneira que, quando esse ministério cai e eles se encontram de cima, as fífias, a falta de compasso, as entradas fora de tempo e mais descalabros artísticos, dão-se a cada

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momento, reduzindo-as à classe de uma música infernal, capaz de assustar o próprio Belzebu e seus diabólicos companheiros» (Jornal de Cantanhede 1906a, 3).

Nas últimas duas décadas do regime monárquico, quando a simpatia pelas ideias republicanas começou a tomar proporções em algumas camadas populares, uma outra questão de natureza política se colocavam: a da exigência, feita pelo povo, ora da execução do Hino Nacional monárquico (Hino da Carta), ora do Hino republicano (A Portuguesa), conforme as simpatias políticas de quem fazia a exigência. Obviamente, esta situação dava origem a ruidosos conflitos. O primeiro que se encontra reportado na imprensa da referida área (entre Coimbra e Aveiro) refere-se ao ocorrido na festa de Santo Amaro, no Picoto (Covões), em 1890, quando os amigos políticos do pároco se dirigiram

«(…) à filarmónica, com ares de papão, e intima[ra]m-na a que to[casse] o hino da república, ao que esta se opôs tenazmente, sendo então ultrajados, ameaçados, invocando alto e bom som que o senhor vigário, ao retirar, lhes tinha dado estas ordens e que as queriam cumprir: que se não fosse por bem, seria por mal.

Um outro grupo, que nos dizem ser dos “pretos7”, pediu o hino da carta, ao que a filarmónica acedeu, e principiou a executá-lo.

Houve então grande vozearia, (…). Toda a força era empregada em dar vivas à República, e morras aos “pretos”, chegando mesmo, segundo nos consta, a darem tiros de revolver, para o ar, bem entendido» (Defensor do Povo 1890, 2).

A partir daí, até à queda da Monarquia, são muito numerosos os relatos de idênticas ocorrências. E se a confusão já era muita antes da implantação da República, maior passou a ser após o 5 de outubro de 1910, com muitos saudosistas do regime deposto a reclamarem o Hino da Carta. Perante a situação, qualquer que fosse a decisão das filarmónicas, havia sempre uma fação desagradada, como demonstram os três textos seguintes, selecionados entre muitos outros:

- «Soubemos (…) que, em Cadima, a música havia tocado à porta de um antigo monárquico o “Hino da Carta” (…). (…) a responsabilidade deve ser da

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referida música, pois que foi ela que aqui [em Sepins] tocou o mesmo hino malcheiroso, com protesto de muitas almas republicanas que assistiam» (Jornal de Cantanhede 1911a, 3).

- «[Em Ançã], (…) tocava num arraial a filarmónica da localidade, quando um republicano daqui se lembrou de pedir “A Portuguesa”. Ó diabo, que tal fizeste. Cai-lhe em cima a fúria de um homem da localidade, por sinal um talassa de primeira força8 e ei-lo a barafustar, espumante de ódio contra a República e os republicanos» (Jornal de Cantanhede 1911b, 3).

- “[Em Febres], houve fogo preso e filarmónica do Covão do Lobo, que lindamente desempenhou algumas peças do seu variado reportório, esquecendo-se de tocar A Portuguesa (que, para eles é política), apesar de pedida por várias pessoas e por diversas vezes.

Um grupo de Cidadãos portugueses, e alguns naturalizados brasileiros9, apresentaram-se em frente do coreto dando vivas à República, ao Presidente da República, aos Ministros e Deputados.

Nem mesmo assim eles tocaram A Portuguesa. Então o nosso patrício, Sr. Manuel Francisco Jorge, naturalizado brasileiro, tentou içar uma bandeira encarnada e verde, em frente do coreto, dando morras aos talassas e vivas aos candidatos portugueses10, o que levou a música a tocar [só] parte da Portuguesa, porque as músicas lhe tinham esquecido11 (…)” (Notícias de Cantanhede 1911b, 3).

Em 1915, cinco anos após a implantação da República, ainda se verificavam incidentes da mesma natureza:

“De Barcouço recebemos uma carta em que trata dum conflito que ali se deu por causa duma música não querer tocar A Portuguesa, pelo que houve não só morras à música como ao seu presidente” (Notícias de Cantanhede 1915, 3).

Durante o regime do Estado Novo a questão política continuou a exercer forte pressão sobre as BF: em Cantanhede causou escândalo, em 1937, o convite feito à

8 Era assim designado todo aquele que era considerado inimigo da República. 9

A emigração para o Brasil era enorme e muitos emigrantes adquiriam a nacionalidade brasileira.

10 Candidatos republicanos, os únicos considerados patriotas.

11 Será de considerar a hipótese de este “esquecimento” fazer parte da estratégia para evitar executar o

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