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A Identificação da Entidade Titular do Direito de Autodeterminação

2.2 Como Evoluiu a Autodeterminação

2.2.3 A Identificação da Entidade Titular do Direito de Autodeterminação

O problema da determinação da entidade a que se refere o ‘auto’ de autodeterminação decorre sobretudo da opção pela palavra ‘people’/‘povo’, na

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referência aos sujeitos de autodeterminação nos documentos institucionais, já que

‘povo’ é uma noção evasiva e ambígua, dando origem a um problema de circularidade. Citada à saciedade é a afirmação de Robert Lansing, Secretário de Estado do governo de Woodrow Wilson, sobre a ideia de autodeterminação avançada por este último: “Superficialmente, parecia razoável: o povo que decida. [Mas], de facto, era ridículo, porque o povo não pode decidir antes que alguém decida quem é o povo”27 (1921 apud Castellino, 1999: 525). Como nota Lopes, “é povo quem tiver direito de autodeterminação, tem direito de autodeterminação quem for povo” (2003:

95).

Coloca-se então o problema de como definir e identificar povos de um modo politicamente eficaz. As orientações do direito internacional quanto ao reconhecimento de entidades políticas são complexas e imprecisas (Halperin e Scheffer, 1992: 65) ou, no mínimo, plurais (Knop, 2002: 51 ss). As organizações internacionais também não fazem melhor. Ainda que grande defensora do direito de autodeterminação dos povos, em termos gerais, a Assembleia Geral da ONU raras vezes atestou em concreto a existência de povos detentores desse direito (Lopes, 2003: 115).

Outras literaturas procuram os indicadores objetivos e/ou subjetivos que demarcam povos, nações e etnias28. Aliás, para contrariar o ceticismo de Lansing, Wilson havia reforçado a equipa de negociadores dos EUA em Versalhes com historiadores, geógrafos e etnólogos (Franck, 1992: 53). Porém, também aqui se falha em isolar um critério ou um conjunto de critérios que constitua um método

27 Tradução livre da autora. No original: “On the surface it seemed reasonable: let the people decide.

[But] it was in fact ridiculous because people cannot decide until someone decides who the people are” (Robert Lansing 1921 apud Castellino, 1999: 525).

28 Neste contexto, termos relativamente equivalentes.

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coerente, claro, inequívoco e de aplicação universal, para identificar e delimitar comunidades. A língua, a religião, a etnia e a cultura são exemplos de critérios razoavelmente objetivos, mas que se revelam insuficientes, já que a presença/ausência de um deles nunca é decisiva para identificar a existência/inexistência de um povo. Para além disso, é preciso ver que, ainda que se encontrasse um critério desse tipo, ele tornaria irrelevante qualquer expressão da vontade do povo assim identificado. Em contrapartida, um critério puramente subjetivo acabaria por tornar irrelevante a existência de princípios políticos e de normas nesta matéria, uma vez que qualquer comunidade se pode definir a si mesma como um povo. A maioria dos autores inclina-se então para uma combinação de fatores objetivos e subjetivos e para uma avaliação casuística (e.g. Berman, 1988;

Koskenniemi, 1994; Moore, 1997; Musgrave, 1997; Deng, 2008). Mas, também aqui, deparamo-nos com um problema equivalente.

Nathaniel Berman ilustra-o a propósito do uso do referendo em autodeterminação (1988: 93). Quando se pensa em realizar um referendo para aferir da vontade de uma dada população quanto ao seu estatuto político (fator subjetivo), será preciso determinar previamente o universo eleitoral. Isto, por sua vez, requer também uma determinação prévia de aspetos objetivos da situação, a qual, por seu lado, condicionará o resultado da auscultação da vontade da população. Na medida em que essa análise objetiva diga respeito aos atributos de nacionalidade pertinentes, e se houver a intenção de não impor, a partir de fora, critérios apriorísticos e etnocêntricos, a sua determinação, argumenta Berman, deverá passar por uma investigação fenomenológica da cultura em causa, procurando identificar os aspetos culturais privilegiados pela população, ou seja, e uma vez mais, fatores subjetivos.

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Porém, deparamo-nos neste ponto com o problema inicial, desta feita quanto à questão da determinação dos contornos da população junto da qual proceder à investigação.

Se nesta situação estiver em causa um conflito político, muito provavelmente serão esses mesmos fatores subjetivos e objetivos de delimitação de uma entidade que estarão a ser alvo de contestação e disputa entre partes. De facto, os conflitos de autodeterminação resultam basicamente da sobreposição e incompatibilidade de delimitações de selves, ou, dito de outro modo, de identidades que projetam uma dada ‘corporeidade’ em termos de população, território e instituições políticas.

Como resolver então o problema metodológico quanto à identificação de selves titulares do direito de autodeterminação?

Mayall conclui que qualquer tentativa de avaliação teórica e objetiva da existência de um povo e dos seus contornos é necessariamente um exercício especulativo e falacioso, pelo que a solução só pode ser pragmática (1999: 476 ss).

No plano jurídico, Berman sugere uma solução centrada, não em critérios ou categorias gerais, mas na formação de argumentos críticos para casos singulares.

Os melhores textos jurídicos sobre o ‘self’ não procuram uma saída para este impasse [dos fatores objetivos e subjetivos na determinação de um povo] ao nível da abstração lógica. Pelo contrário, partem das conceções opostas para articular argumentos complexos em casos particulares.29 (1988: 94)

Koskenniemi sugere avaliar a particularidade não apenas da caracterização objetiva e/ou subjetiva do povo, mas também das suas práticas, em especial dos meios usados para atingir o objetivo da autodeterminação (1994: 265). Isto é algo

29 Tradução livre da autora. No original: “The best legal texts on the ‘self’ do not seek a way out of this impasse on the level of logical abstraction. Rather, they draw on the opposed conceptions to articulate complex arguments in particular cases.” (Berman, 1988: 94).

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que, de certa forma, já se faz. Está implícito, por exemplo, na distinção entre nacionalismo cívico – considerado o ‘bom’ nacionalismo – e nacionalismo étnico – visto como o ‘mau’ nacionalismo, aquele que gera ‘pandemónio’. Contudo, Oklopcic faz a interessante observação de que

os nacionalismos cívico e étnico não são apenas realidades empíricas ou prescrições normativas. Mais importante que isso, são recursos retóricos contingentes usados por forma a se assumir elevação moral em relação a um oponente, ou a induzir opróbrio moral.30 (2009: 693)

Esta construção de sentido e operação de rotulagem é empreendida sobretudo por atores externos e tem impacto não apenas no reconhecimento de entidades titulares do direito de autodeterminação, mas na própria ação de constituir um Estado independente, com as suas maiorias como referência do nacionalismo cívico e as minorias relegadas para uma “posição retoricamente desvantajosa”31 (Oklopcic, 2009: 694), porque depreciadas como nacionalismo étnico. Em suma, as soluções pragmáticas também produzem enviesamentos.

No plano político, operam na prática dois processos pragmáticos inter-relacionados: um “princípio implícito de autosseleção”32 (Mayall, 1999: 491) e o reconhecimento externo. À escala mais particular, existe o facto político que resulta da crença e asserção identitária, quando uma população tem a convicção de que constitui um ‘povo’ e procura afirmar-se como tal, as mais das vezes pelo recurso à força (Windass, 1968: 186). Nesta luta pela afirmação e reconhecimento de um self, o direito internacional de autodeterminação ou faz a mediação da luta ou é

30 Tradução livre da autora. No original: “civic and ethnic nationalisms are not only empirical realities or normative prescriptions. Most importantly, they are contingent rhetorical resources used in order to assume the moral high ground over an opponent, or to induce moral opprobrium.”

(Oklopcic, 2009: 693).

31 Tradução livre da autora. No original: “rhetorically disadvantageous position” (Oklopcic, 2009:

694).

32 Tradução livre da autora. No original: “implied principle of self-selection” (Mayall, 1999: 491).

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simplesmente apropriado como ideologia (Koskenniemi, 1994: 269). No patamar seguinte, existe o reconhecimento desse self no contexto geográfico regional em que se procura afirmar. Para Archibugi, este é o teste fundamental, quando “tais definições [académicas dos critérios que constituem um povo] são dadas por adquiridas pelas comunidades políticas conflituantes”33 (2003: 491). Por fim, existe o reconhecimento institucional internacional, sendo aqui o grande teste de legitimidade a admissão do povo em causa nas instituições internacionais multilaterais, em especial na ONU (Halperin e Scheffer, 1992: 65-66).

Porém, note-se que não é exatamente o povo em si que é diretamente identificado e reconhecido. Quem é reconhecido e tornado interlocutor na política internacional é o movimento de libertação nacional ou outro tipo de movimento de autodeterminação representativo de um grupo de identidade.

Note-se ainda que, subjacente a todas estas abordagens, parece estar a assunção de que o povo existe prévia e independentemente de se colocar a questão da autodeterminação. Inversamente, como procurarei mostrar no próximo capítulo, o próprio conceito de autodeterminação pode ser visto como constitutivo das identidades corporativas em causa e, portanto, da emergência de um povo.

O povo é, portanto, uma comunidade futura, imaginada por reação à dominação colonial, ao regime de apartheid ou à ocupação estrangeira.

Esta noção de povo torna-se a condição sine qua non para abrir caminho na sociedade de Estados. O povo toma consciência da sua situação de dominado, contesta o imperialismo, o colonialismo e o neocolonialismo.

O povo opera então a sua mutação em movimento de libertação nacional, primeira etapa necessária para aceder a um reconhecimento formal da sua existência. O movimento de libertação nacional constitui desde então a

33 Tradução livre da autora. No original: “such definitions are taken for granted by conflicting political communities” (Archibugi, 2003: 491).

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cadeia de transmissão privilegiada do povo e das suas aspirações.34 (Pointier, 2004: 43)