• No se han encontrado resultados

Identidade Corporativa e a Relação Generativa entre o Ator e o Sistema

3.2 Da Natureza do Self em RI

3.2.3 Identidade Corporativa e a Relação Generativa entre o Ator e o Sistema

91

3.2.3 Identidade Corporativa e a Relação Generativa entre o Ator e o

auto-92

organizadoras, homeostáticas, que fazem dos atores entidades distintas”99 (1999:

224-225). Inclui uma componente material que, no caso dos Estados, compreende

“muitos corpos e território”, e outra ideacional, “uma consciência e memória do self como um locus separado de consciência e atividade”100 (1999: 225), o que pressupõe a existência de muitos indivíduos dotados de identidade coletiva e, portanto, em agregação consciente. Este self coletivo, considera Wendt, é autogerado e, portanto,

“constitucionalmente exógeno ao Outro”101 (1999: 225).

Esta identidade corporativa funciona como uma plataforma para as outras identidades, as quais Wendt já considera que são intersubjetivas, quer dizer, construídas através da interação social e, portanto, constituídas por significados partilhados. Pelo contrário, a identidade corporativa é o “material bruto do qual se constituem os membros do sistema estatal”, e implica um “aparato organizacional de governação” que Wendt considera ser “um traço constitutivo do estado de natureza antes da interação”102 (1992: 402). Neste ponto, Wendt reproduz a perspetiva subjacente às abordagens neorrealistas e neo-liberais em RI, explicitando o que nestas estava apenas implícito. Vai mais longe do que estas apenas em relação à origem sistémica das outras identidades e à sua ascendência face à formação dos interesses (cf. 1999: 224-233).

99 Tradução livre da autora. No original, respetivamente: “essential properties;” “the self-organizing, homeostatic structures that make actors distinct entities” (Wendt, 1999: 224-225).

100 Tradução livre da autora. No original, respetivamente: “many bodies and territory;” “a consciousness and memory of self as a separate locus of thought and activity” (Wendt, 1999: 225)

101 Tradução livre da autora. No original: “constitutionally exogenous to Otherness” (Wendt, 1999:

225).

102 Tradução livre da autora. No original, respetivamente: “the raw material out of which members of the state system are constituted;” “organizational apparatus of governance;” “a constitutive feature of the state of nature before interaction” (Wendt, 1992: 402).

93

Mas esse postulado de que a identidade corporativa é um “locus separado”, é

“auto-organizada”, “autogerada” e, portanto, “constitucionalmente exógena” ao sistema, é problemático. É também problemática a distinção entre uma identidade intrínseca e outras identidades extrínsecas, sociais, vendo-se estas como se fossem apenas adornos, máscaras – no literal sentido dramatúrgico – que se colocam e sucedem num corpo que já lá está e do qual são independentes103.

E, contudo, esta é uma ideia subjacente à lógica de funcionamento do sistema.

No direito internacional, por exemplo, parece presumir-se “que a existência do Estado flui de dentro, não de fora” (Jodoin, 2008: 6). Porém, quando se coloca a génese e constituição do ator internacional no centro da interrogação teórica, como o fazem a maioria dos autores construtivistas e pós-estruturalistas, torna-se necessário olhar a própria identidade corporativa como um fenómeno social, ou seja, como um efeito da interação ao nível do sistema. Esta questão remete-nos para o debate sobre a relação generativa e constitutiva entre o ator e o sistema.

A tese da prioridade ontológica do ator em relação ao sistema, explicitada e defendida na área construtivista por Wendt, e assumida implicitamente por neorrealistas e neo-liberais, pode ser simplificadamente enunciada do seguinte modo:

em primeiro lugar, existem identidades coletivas (sociedades, nações, etnias, povos), as quais vão formar identidades corporativas (Estados), os quais tornar-se-ão então os atores do sistema internacional. Face a isto, o que uma abordagem ‘mais’

103 Não posso, neste ponto, deixar de notar que, no que diz respeito à pessoa humana, mesmo a ideia de um organismo previamente dado, sobre o qual se constrói a identidade, é problemática. O próprio corpo humano é alvo de construção cultural, o que é um fenómeno universal, bem visível nos documentos mais ou menos etnográficos sobre os mais variados povos e nas inúmeras práticas estéticas e de saúde das sociedades pós-industriais, onde, aliás, a (re)construção estética do corpo é uma área de negócios em franca expansão. Assim, a ideia de que o organismo humano é previamente dado diz respeito essencialmente à existência de vida e cada vez menos a outros aspetos da sua constituição.

94

construtivista poderá introduzir é a possibilidade de inverter a sequência de construção e constituição. Na raiz do construtivismo está justamente a ideia de constituição mútua e de codeterminação entre ator e sistema, agente e estrutura, indivíduo e sociedade104.

Wendt explicita a sua tese em 1992 nos seguintes termos: “o material bruto do qual se constituem os membros do sistema estatal é criado pela sociedade doméstica antes que os Estados entrem no processo constitutivo da sociedade internacional”. Logo de seguida, contudo, faz a seguinte ressalva: “ainda que este processo não implique nem territorialidade estável, nem soberania, as quais são termos de individualidade negociados internacionalmente”105 (1992: 402). Não obstante, já em 1999 vai mais longe e assume a própria soberania como qualidade intrínseca e, portanto, não contingente, do Estado e apoia-se na distinção entre soberania empírica e soberania jurídica para argumentar que a primeira não requer a segunda: “o reconhecimento confere aos Estados certos poderes numa sociedade de Estados, mas a liberdade face à autoridade externa, por si, não o pressupõe”106 (1999:

209).

É de justiça ressalvar aqui que o próprio Wendt assume este argumento da prioridade ontológica do Estado em relação ao sistema como sendo não mais que um dispositivo retórico e metodológico. Assim, pôr a problematização do Estado entre

104 Note-se que esta é uma posição filosófica de princípio. Em questões empíricas, o peso mais ou menos relativo da estrutura ou da agência é sempre uma questão dependente do contexto e a ser investigada e respondida caso a caso.

105 Tradução livre da autora. No original, respetivamente: “the raw material out of which members of the state system are constituted is created by domestic society before states enter the constitutive process of international society;” “although this process implies neither stable territoriality nor sovereignty, which are internationally negotiated terms of individuality”(Wendt, 1992: 402).

106 Tradução livre da autora. No original: “Recognition confers upon states certain powers in a society of states, but freedom from external authority per se does not presuppose it” (Wendt, 1999: 209).

95

parêntesis e, desse modo, pressupor a realidade da sua existência pré-social, tem como objetivo dotar a teoria de uma plataforma minimamente segura a partir da qual se possa analisar a constituição e o funcionamento do sistema interestatal (Wendt, 1992: 402; 1999: 244).

Para além disso, e muito curiosamente, o próprio Wendt tem um vislumbre das virtualidades de se inverter o sentido da cadeia de causalidade e constituição no artigo de 1992, mas que vai deixar cair completamente nas publicações seguintes.

Numa nota de rodapé, fazendo eco do já famoso argumento de Jackson e Rosberg (1982), afirma:

Empiricamente, esta sugestão [de que os Estados são criados pela sociedade doméstica antes de entrarem no processo constitutivo da sociedade internacional] é problemática, uma vez que o processo de descolonização e subsequente apoio a muitos Estados do Terceiro Mundo por parte da sociedade internacional aponta para modos em que mesmo o material bruto ou ‘estadualidade empírica’ é constituída pela sociedade de Estados.107 (Wendt, 1992: 402, n. 40)

Em suma, de toda esta discussão, o que importa retirar é a ideia de que será importante considerar, não apenas como é que os atores, previamente dados, entram em relação uns com os outros e constituem um sistema social, mas também como é que as próprias relações entre grupos de identidade mais ou menos institucionalizados vão constituir os atores internacionais e o próprio sistema, e até, invertendo mesmo o argumento de Wendt, investigar a hipótese de que o próprio sistema internacional, ao favorecer determinado tipo de identidades corporativas em detrimento de outras, seja diretamente responsável pela emergência e organização

107 Tradução livre da autora. No original: “Empirically, this suggestion is problematic, since the process of decolonization and the subsequent support of many Third World states by international society point to ways in which even the raw material of ‘empirical statehood’ is constituted by the society of states” (Wendt, 1992: 402, n. 40).

96

não só de identidades coletivas, mas das próprias identidades corporativas que supostamente as representam108.

Cederman e Daase (2003) dão um contributo interessante nesse sentido, baseando-se no conceito de sociação de Georg Simmel, o qual justamente aborda a questão da formação de identidades corporativas a partir dos processos de interação humana. Nesta perspetiva, a possibilidade da existência de grandes grupos humanos como, por exemplo, os Estados, deve ser investigada em relação a três pontos. Em primeiro lugar, o grande número de pessoas envolvidas requer processos que criem coesão. Um desses processos é o processo de categorização intersubjetiva que permite a criação de comunidades que são ‘imaginadas’ (cf. também Anderson, 1994) em torno de categorias políticas relevantes e não de uma identidade cultural geral. A diferença é importante. Cederman e Daase notam ser este um processo dinâmico em que

o enquadramento simbólico de ações e atores é capaz de alterar abruptamente os cenários estratégicos. […] Novos atores podem assim nascer ou desaparecer ‘do dia para a noite’ sem que tal seja acompanhado de uma mudança na ‘matéria-prima’ cultural, a qual, tipicamente, é bastante estável.109 (Cederman e Daase, 2003: 13)

Em segundo lugar, a sua duração, tendencialmente longa, requer mecanismos de transmissão geracional, tanto biológica como social. Se queremos considerar processos de formação, transformação e desaparecimento de atores, o aspeto temporal é incontornável, pois é no tempo que a mudança acontece, mas é também

108 Ainda que em termos diferentes, é sensivelmente nesta linha que se desenvolvem a maioria das críticas à abordagem que Wendt faz da identidade em RI. Essas críticas procuram enfatizar o caráter inteiramente social, relacional, extrínseco do self no sistema internacional. Veja-se, em especial, Zehfuss (2001), Neumann (2004), Mitzen (2006), Schiff (2008) e Guillaume (2009).

109 Tradução livre da autora. No original: “symbolic framing of actions and actors is capable of altering strategic settings abruptly. […] New actors can thus be born or disappear ‘overnight’

without accompanying change in the cultural ‘raw material’, which is typically quite stable.”

(Cederman e Daase, 2003: 13).

97

no tempo que acontece a identidade, se a entendermos como perceção de continuidade.

Por fim, a sua dimensão espacial envolve um processo de corporização através da formação de fronteiras. Também estas não devem ser tomadas como dadas, antes a sua construção deve ser problematizada, incluindo a problematização da sua natureza. No caso do Estado no sistema internacional moderno, defendem os autores, dever-se-á problematizar em especial a questão da exclusividade territorial ditada pelo princípio da soberania, ou seja, essa territorialização que se caracteriza por um modo de organizar o espaço em função de um exercício de poder que envolve o controlo exclusivo de pessoas e de recursos (cf. Ruggie, 1986; Ruggie, 1993;

Albert e Brock, 2001: 34).

Todos estes pontos remetem para dinâmicas internas, mas também para o contexto de interação mais alargado no qual emerge uma dada identidade corporativa. Podemos ver no sistema internacional a origem de categorias políticas que permitem imaginar e organizar comunidades, de mecanismos que asseguram a sua reprodução e de modos institucionalizados de organizar o espaço.

Antes de aprofundar esta questão da constituição do ator a partir do sistema em RI e para o poder fazer sem redundar numa visão passiva do primeiro, vou ainda considerar os fundamentos de uma conceção reflexiva do self.

98