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Uma Entidade Sui Generis: O Debate sobre a Identidade do Ator Internacional

3.2 Da Natureza do Self em RI

3.2.2 Uma Entidade Sui Generis: O Debate sobre a Identidade do Ator Internacional

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contingente e voluntarista das identidades, coloca a racionalidade e a capacidade de escolha do indivíduo como um antídoto a essas dinâmicas e liga-se à ideia de reformular a autodeterminação em termos de democracia e de direitos humanos.

Mas este ponto de vista apresenta insuficiências importantes no estudo da autodeterminação e do self. Deixa por explicar certo tipo de fenómenos como, por exemplo, a possibilidade de sacrifício individual em prol de valores coletivos; ou seja, deixa por explicar fenómenos que vão para além de uma conceção demasiado utilitarista de racionalidade e que convocam sobretudo valores simbólicos e intersubjetivos. E, do ponto de vista desta tese, o principal problema é que, ao reduzir a explicação de fenómenos coletivos e estruturais à agregação de fatores individuais, o ponto de vista liberal – como aliás também o realista – deixa por explicar uma série de efeitos estruturais do sistema internacional ao nível da conceção de entidades que, ainda que resultando da agregação de indivíduos, acabam por ganhar configurações institucionais próprias e por tornar-se atores em si mesmos.

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como uma espécie de ‘pessoas’ que interagem e adquirem uma personalidade própria. Isto reproduz-se na linguagem quotidiana e nos media, já que países, movimentos rebeldes, grupos terroristas, grandes empresas, os mercados, organizações internacionais, etc. são constantemente retratados como selves que

‘dizem’, ‘fazem’ e ‘reivindicam’ as mais variadas coisas. Está também expresso em muitos documentos oficiais.

No direito internacional94, por exemplo, a existência destas entidades é abordada a partir de dois pontos de vista. Do ponto de vista do sistema, o teste decisivo quanto à existência “de uma personalidade ou entidade corporativa distinta”

dos seus membros – sejam eles indivíduos, Estados ou outro tipo de grupo social – é o de saber se tal entidade “tem, em relação aos seus membros, direitos que lhes pode exigir que cumpram” ou, dito de outra forma, se é “capaz de ser beneficiária de obrigações que incumbem aos seus membros”95 (TIJ, 1949 apud TIJ, 1975a:

parágrafos 148-149). A partir do ponto de vista dos atores, a personalidade internacional é “o ente individual ou coletivo a quem [o direito internacional] atribui a capacidade de ser titular de direitos e obrigações e de desencadear processos por si regulados” (Lopes, 2003: 117).

A questão da ‘realidade’ destas entidades e da sua natureza, ou seja, a questão do seu estatuto ontológico, está no centro de um debate importante na vertente reflexivista de RI96. Ainda que focado no Estado, este debate pode ser lido em

94 Sobre os vários conceitos jurídicos de ‘pessoa’, cf. Ngaire (2003).

95 Tradução livre da autora. No original, respetivamente: “qu’elle ait vis-à-vis de ses Membres des droits don’t elle ait qualité pour leur demander le respect”; “capable d’être bénéficiaire d’obligations incombant à ses membres” (TIJ, 1949 apud TIJ, 1975a: parágrafos 148-149).

96 Este debate emerge com o artigo de Alexander Wendt “Anarchy is What States Make of It” (1992).

Mais de uma década depois, a Review of International Studies publica um simpósio em que se debate a tese de Wendt de que os Estados são pessoas reais (Jackson, 2004a; 2004b; Neumann, 2004; Wendt,

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relação ao ator internacional em geral (e, aliás, a maioria dos autores que nele intervêm sugere isso mesmo). Basicamente, tem abordado duas questões inter-relacionadas. É o Estado – ou o ator internacional em geral – algo que realmente existe? É este algo uma pessoa? Existem várias combinações de respostas a estas duas questões.

Este é um debate bastante sofisticado e complexo, em que se entrecruzam conteúdos de RI, de teoria social, de ontologia filosófica, de ontologia científica ou prática, de filosofia da ciência, jurídicos e éticos (cf. Jackson, 2004). Está em causa saber quem/quais são as entidades fundamentais da política internacional ou mundial, questão esta estreitamente relacionada com o debate mais geral, nas ciências sociais, sobre a relação agente/estrutura ou individualismo/holismo. No plano ontológico, estão em causa questões, também elas gerais, sobre a natureza das coisas do mundo, ou mais específicas, sobre o tipo de entidades a que se refere uma dada abordagem teórica. O debate tem ainda implicações éticas, sobretudo em questões de responsabilidade institucional e de culpa coletiva.

Do conjunto da bibliografia essencial entretanto publicada sobre o assunto, podem-se sistematizar as várias questões e posições em torno dos eixos que passo a apresentar97.

Desde logo, surge a questão de saber se o Estado (ou o ator internacional) deve ser tomado como um dado prévio, como uma construção ou como uma contingência (Bartelson, 1998: 298-317; Lebow, 2003: 333, n. 70). As teorias 2004; Wight, 2004). Sobre o tópico geral da ontologia do ator internacional, outros trabalhos importantes são Ashley (1995 [1988]), Ruggie (1993), Walker (1993), Bartelson (1995; 1998), Ringmar (1995; 1996; 2002), Doty (1996), Neumann (1996b), Campbell (1998), Weber (1998), Hall (1999), Wendt (1999), Zehfuss (2001), Mitzen (2006), Schiff (2008) e Guillaume (2009).

97 Note-se que a síntese que de seguida apresento é, necessariamente, uma simplificação de um debate cuja análise, por si só, poderia constituir uma tese.

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monista e pluralista do Estado, de base positivista, veem-no um dado, ou seja, como algo natural que não chega a ser problematizado. Essa problematização vai ser feita na perspetiva do Estado como uma construção, ou seja, como uma entidade gerada e constituída socialmente, seja por referência a um contexto estrutural (Wendt, 1992;

1999; 2004) ou a um processo histórico (Ruggie, 1993; Hall, 1999). Encontra-se também na visão do Estado como uma contingência e, desse modo, uma espécie de ilusão coletiva, o que, por sua vez, pode ser abordado em termos de desconstrução (Walker, 1993; Ashley, 1995 [1988]) ou de genealogia (Bartelson, 1995). Uma vez que os positivistas não chegam a problematizar a existência do Estado, o debate tem-se detem-senvolvido sobretudo entre as várias vertentes do construtivismo e pós-estruturalismo.

Uma segunda questão é a de saber se o Estado (ou o ator internacional) ‘é’ ou

‘é como se fosse’ algo. Está aqui em causa um confronto entre uma visão de realismo científico que procura uma ‘essência’ (Wendt, 2004; Wight, 2004), por um lado, e, por outro, uma estratégia que se assume como agnóstica face à ‘realidade’ material dessa entidade, ao mesmo tempo que aceita a realidade da existência da crença e do discurso sobre ela, em correlação com uma atitude pragmática de considerar que é heuristicamente útil assumir que ela, pelo menos, é ‘como se’ existisse (Ringmar, 1996; Jackson, 2004b; Neumann, 2004; Schiff, 2008). Esta estratégia instrumental opera sobretudo a partir de uma abordagem hermenêutica de desconstrução ou de análise genealógica de formas narrativas, com destaque para metáforas (Ringmar, 1996; Jackson, 2004b; Neumann, 2004), ou de performatividade (Doty, 1996;

Campbell, 1998; Weber, 1998).

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Em terceiro lugar, vem a questão da antropomorfização do Estado (ou do ator internacional). Ou seja, em relação a esse ‘algo’ que o Estado ‘é’ ou ‘é como se fosse’, surge a questão de saber se é uma pessoa, ou seja, uma entidade que pensa, sente e age (Ringmar, 1996; Jackson, 2004b; Neumann, 2004; Wendt, 2004; Mitzen, 2006; Luoma-aho, 2009), ou outro tipo de ‘coisa’ (Neumann, 2004), por exemplo, um “conjunto institucional de estruturas” (Wight, 2004), ou uma “estrutura de atuação coletiva” (Franke e Roos, 2005).

Finalmente, em relação ao sistema no seu conjunto, coloca-se a questão de saber se o Estado (ou o ator internacional) precede e constitui o sistema, ou o inverso: é a questão da prioridade ontológica, que coloquei logo na introdução do capítulo e que discutirei mais detalhadamente na próxima subsecção.

Subjacente à hipótese central desta tese está já uma certa perspetiva em relação a este debate que importa agora explicitar. Não se trata neste ponto de avançar argumentos em prol de uma ou de outra posição do debate mas, inversamente, de retirar do debate aquilo que é útil à clarificação e demonstração da hipótese teórica e à compreensão do caso empírico, com base numa postura de pluralismo e pragmatismo metodológico (cf. Flyvbjerg, 2001).

A hipótese da tese – a autodeterminação constitui os selves que a reivindicam – remete imediatamente para uma abordagem construtivista à génese e constituição das entidades que formam o sistema internacional. Ontologicamente, o ponto relevante é o de ver os grupos sociais no momento e nos termos em que se representam a si mesmos e em que são representados por outros como entidades (cf.

Ayyash, 2010: 118, n. 3). Assim, direi que o ator internacional, no mínimo, existe como representação. A maior parte das vezes, a representação de Estados,

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movimentos de autodeterminação, organizações internacionais, etc., apresenta aspetos antropomórficos. Tais entidades são vistas como agentes, atores, jogadores, em suma, pessoas, ou seja, entidades corporizadas, distintas entre si e dotadas de intencionalidade, racionalidade e agência. Estas representações revelam-se sob inúmeras formas, materiais e conceptuais: estátuas, hinos, mitos, peças jornalísticas, normas de direito internacional, regras de protocolo diplomático, etc. Direi então que o ator internacional, no mínimo, é representado ‘como se fosse’ uma pessoa.

Parafraseando du Gay, pode ser que esta assunção tenha qualquer coisa de ficcional, porém, não deve ser tratada como uma ilusão (2007: 21, 68)98. Ela baseia-se na cultura das sociedades e nas práticas políticas e, ao baseia-ser institucionalizada, produz efeitos de realidade. Estes efeitos não podem ser simplesmente removidos apenas por eventualmente não serem compatíveis com um dado argumento filosófico. Efeitos deste tipo são, por exemplo, o da atribuição de direitos e de deveres a entidades coletivas, como é o caso do direito de autodeterminação. Neste caso específico, é de notar que estão ainda em causa efeitos natureza material (para quem queira reduzir o conceito de realidade a uma dimensão material), quando se coloca em causa a ‘corporização’ dessa entidade, nomeadamente em termos de território e de população.

Ao mesmo tempo, também julgo que não se deve perder de vista o caráter instrumental de uma posição deste tipo (como, aliás, do seu contrário). Como notam Klotz e Lynch, às vezes, será mesmo útil usar a metáfora antropomórfica, a qual permite uma análise sociopsicológica de atores corporativos. Mas, outras vezes, será mais adequado desagregar essas entidades nas suas diversas componentes: líderes,

98 Du Gay argumenta nestes termos em relação à ideia de ‘pessoa’ como um ‘agente livre’.

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populações, fronteiras, etc. (2007: 85). Para Zalewski e Enloe (1995), por exemplo, um dos contributos mais relevantes da entrada em RI do conceito de identidade está em colocar a questão sobre quem é que realmente fala pela ‘nação’ e sobre quem é que, nesse processo, é silenciado e marginalizado. As autoras associam esta questão a uma crítica da focalização de RI nos governos estatais, a qual produz a ilusão de que os representantes governamentais “aparecem como se de facto falassem por todas as pessoas que vivem no território do seu Estado” (1995: 284).

O estudo da autodeterminação proposto nesta tese implica uma articulação de ambas as estratégias. A primeira, convoca imediatamente o aproveitamento das teorias sociais e psicossociais do self para abordar a formação e constituição das entidades que compõem o sistema e a política internacional. Esta é a estratégia no centro do argumento teórico e requer, num dado patamar, ver essas entidades como dotadas de unidade e coesão. Mas a possibilidade de usar este argumento para olhar um caso empírico implica também a segunda estratégia e isso por duas razões. Em primeiro lugar, porque observar a génese e constituição de um self em processo de reivindicação ou de exercício de autodeterminação é observar processos de delimitação de populações e territórios, dinâmicas de liderança política, etc., ou seja, remete para os componentes dessa entidade coletiva em processo de constituição. Em segundo lugar, porque estes processos, as mais das vezes, são processos que envolvem a projeção de dois ou mais selves cujos contornos corporativos e traços identitários se incompatibilizam e geram conflito, sendo necessário colocar entre parêntesis a ideia de unidade e coesão de entidades como, por exemplo, um Estado.

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3.2.3 Identidade Corporativa e a Relação Generativa entre o Ator e o